segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

O extraordinário mundo onírico


Dizem os especialistas que nós, seres humanos, sonhamos praticamente todos os dias. Embora eu nunca lembre dos meus, acho o tema por demais fascinante. E desde que li A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud, volta e meia procuro por matérias e artigos científicos sobre o assunto (provavelmente motivado por meu lado psicólogo em formação, que eu não levei adiante pois escolhi comunicação social como área de formação na universidade). 

Contudo, frustrações à parte, de tempos em tempos me deparo com eventos e artefatos culturais que trazem o interesse de volta à minha rotina. Como aconteceu com a exposição Sonhos - história, ciência e utopia, que estreou no Museu do Amanhã no último dia 18, e provavelmente será meu último programa cultural nesse ano de 2024.  

A mostra, idealizada pelo neurocientista Sidarta Ribeiro, nos pergunta na cara dura se na correria do dia a dia, estamos sonhando menos? Difícil pra mim responder tal interrogação, pois minhas experiências oníricas nunca se reproduziram em memória (uma pena!), temática por sinal que dialoga diretamente com o mundo dos sonhos. E não somente ela. Sonhos despertam emoções, propõem futuros e jornadas a longo prazo, podem servir de pontes para o mundo espiritual (as civilizações antigas, por sinal, desenvolveram muitos estudos acerca disso). 

E principalmente: são capazes também de oferecer novas descobertas científicas. Algo, aliás, que estamos precisando muito, num mundo que desmente o científico a todo momento em nome de fanatismos baratos e ideologias absurdas. 

Fiquei encantado com a exposição, a começar pelo uso das cores. Entre tons de azuis e lilases (uma tonalidade que eu adoro desde sempre, embora pouco use como vestimenta no meu dia a dia), vislumbramos a sonhada utopia, subtema da mostra. Por algum motivo que não sei explicar ao certo, enquanto atravessava os corredores lembrei-me do filme Viagem ao Mundo dos Sonhos (1985), clássico do diretor Joe Dante, e da minha juventude à flor da pele, imaginando mundos - e sonhos - impossíveis, 90% deles não realizados até hoje. 

Se quem idealizou a mostra tinha essa intenção, de me fazer viajar no tempo e em lembranças que eu considerava perdidas, acertou em cheio. Recomendo o programa para cinéfilos nostálgicos e pessoas extremamente bem resolvidas com as suas próprias jornadas de vida até aqui. Aposto que seus cérebros serão ativados a todo momento com fatos e feitos gloriosos (e, por que não dizer, curiosos) de suas próprias existências.

Não quero me alongar sobre detalhes e imagens específicas presentes no salão, pois é daquelas experiências que precisam ser apreciadas de forma individual, que cada um chegue a seu próprio denominador comum. Sonhos, para mim, são como o DNA. Cada um tem sua própria cadeia; logo, defini-los de forma coletiva chega a ser um absurdo. Mais que isso: uma falta de respeito. Logo, aproveitem. Vai até 27 de abril.

P.S: Feliz 2025. 


quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

R.I.P Ney Latorraca


Eu não sei se chamo de ironia ou de bizarro, mas... a vida é definitivamente um sopro. Nos acostumamos com a presença das pessoas que marcaram nossa vida e nossa formação cultural, até que num istmo de segundo nos damos conta de que elas não estão mais entre nós, se foram. Zapeio entre clipes musicais no you tube e, eis que de repente, vislumbro um vídeo, na verdade uma conversa, entre os atores Stepan Nercessian e Maitê Proença. Stepan pergunta por onde anda Ney Latorraca ("ele está sumido", diz ele). Maitê responde que Ney anda recluso, que cansou de ser o palhaço da turma, que prefere ficar em casa, em paz.

Corta para: eu, hoje, logo cedo, sabendo da notícia da morte de Ney Latorraca, aos 80 anos. Que tristeza! Nem tivemos a honra de vê-lo, pelo menos mais uma vez, no palco ou na tela. 

Difícil - na verdade, quase impossível - lembrar de Ney e não associá-lo automaticamente ao seu personagem Barbosa, do antigo programa humorístico Tv pirata. Barbosa, além de engraçadíssimo e de pouquíssimas palavras, foi fruto de uma época em que a tv era mais corajosa, ousada, sem medo de enfrentar moralismos e falsos conservadores de meia tigela. 

Já os fãs do bom teatro certamente preferirão lembrar dele, ao lado do também magistral Marco Nanini, em O mistério de Irma Vap, um fenômeno de audiência da nossa dramaturgia e, por muitos anos, detentor de recordes de bilheteria. Quem não teve a honra de vê-los no palco não faz a menor ideia do que perdeu. 

Em Vamp, uma telenovela que rompeu com padrões da tv nacional nos anos 1990 ele era o impagável vampiro Vlad Polansk, que infernizava a sedutora rockstar Natasha (Claudia Ohana), a quem via como sua musa eterna. Lembro até de uma sátira que ele fez ao clipe Thriller, de Michael Jackson, hilária! Procurem na internet, deve ser fácil de achar. 

Ele também foi o Arandir de O beijo no asfalto, longa-metragem de Bruno Barreto adaptado da peça clássica do dramaturgo Nelson Rodrigues, e protagonizou junto com Tarcísio Meira - eterno galã da Globo - uma das cenas de beijo mais polêmicas (e mais corajosas) da história do nosso audiovisual. 

Também não consigo, não importa o quanto eu tente, me esquecer dele como Ernesto Gattai na minissérie Anarquistas, graças a Deus (baseado em livro homônimo da escritora Zélia Gattai, esposa de Jorge Amado), do serelepe Esmeraldo de Memórias de um gigolô, adaptado de Marcos Rey, um autor que eu adorava ler e reler na minha adolescência por causa da coleção vaga-lume da Editora Ática - num trio delicioso com Bruna Lombardi e o então galã Lauro Corona - e, finalmente, do Alexandre no especial de fim de ano que depois foi remontado como telefilme Alexandre e outros heróis, inspirado no universo de Graciliano Ramos (para mim, seu último grande personagem na telinha). 

Somem a tudo isso ainda trabalhos como as séries de tv Plantão de polícia e Beto Rockfeller; os longas Ele, o boto (de Walter Lima Jr.), Ópera do malandro (de Ruy Guerra) e Carlota Joaquina, princesa do Brazil (de Carla Camurati); as minisséries A casa das 7 mulheres e o eterno clássico Grande sertão: veredas, e certamente os apaixonados por nostalgia terão muita coisa para relembrar de sua rica carreira. E um aviso aos desavisados sobre o ator, que sequer conhecem seu trabalho: estejam aptos a serem surpreendidos a todo momento. Latorraca fazia um tipo de humor cada vez mais raro em nosso país. E isso era pra poucos (e, claro, gênios).

Fica com Deus, meu caro! Você era único e com certeza é mais um que vai fazer muita falta no mundo das artes nesse século XXI cada vez mais sem referenciais...  


domingo, 22 de dezembro de 2024

De irmãos à rivais


Enquanto o ano se encerra melancólico em meio às tragédias da rodovia de MG e do avião bimotor em Gramado e começam a pipocar as listas de melhores do ano (filmes, livros, hqs, peças de teatro, etc), eu chego ao fim de 2024 quase me esquecendo de que nesse ano a obra-prima Era uma vez na América, de Sergio Leone, completou quatro décadas de existência.

E o mais triste: a nova geração - dos youtubers, tik tokers e companhia infelizmente ilimitada -, que se diz cinéfila atualmente, mal sabe do que eu estou falando. 

Era uma vez na América é daquelas experiências cinematográficas que todo grande amante da sétima arte deveria viver (e reviver) de tempos em tempos, pois é absolutamente magnífico e cheio de camadas, propostas, releituras possíveis. 

Acompanhamos os amigos, praticamente irmãos, Noodles (Robert de Niro) e Max (James Woods, que eu gostaria muito de saber por onde anda nos últimos anos), que passaram a vida em Lower East Side curtindo, farreando, praticando pequenos furtos. Desde moleques entendiam que aquelas ruas pertenciam a eles, eram como suas segundas peles. E o que mais poderiam desejar da vida além disso? Nada. 

O problema: o passar do tempo, que sempre traz novas escolhas, propõe novos caminhos, nem sempre positivos, e por vezes, é capaz de deformar o caráter do mais ingênuo dos seres humanos. Com a chegada da idade surgem também a ganância, o desejo sempre prepotente de querer ser mais do que os outros e daí para a competição é um pulo. E o resultado dessa equação são sempre vidas estilhaçadas ou corrompidas, por vezes de forma covarde e sem volta. 

Assisti o longa de Sergio Leone pela primeira vez (e também a segunda e a terceira) numa época em que as videolocadoras - hoje extintas - adoravam exibir seus filmes sobre criminalidade e máfia. As fachadas das lojas viviam repletas de exemplares como Scarface, O poderoso chefão (cuja terceira parte os cinemas exibiam naquele momento), Os bons companheiros, Serpico, Bonnie e Clyde - uma rajada de balas, e tantos outros espécimes inesquecíveis que até hoje, na minha modesta opinião, não tiveram concorrentes.

Ele era, naquele período, o que menos marketing produzia nas prateleiras e, entretanto, um dos que mais arrebanhou a minha admiração (tanto que por mais ou menos uma década cheguei a reassisti-lo num nível avassalador, quase decorando suas falas). E as memórias são tão fortes e bem-vindas que sou capaz de lembrar agora, neste exato momento, da primeira vez que o vi, onde estava, a que horas foi, etc etc etc. 

Hollywood carece - e muito! - de um regresso a esses tempos gloriosos. Parece cada dia mais perdida em meio a filmes vazios e um público cada vez mais infantilizado e grosseiro, incapaz de respeitar o gosto e a opinião alheia. E que, pelo amor de Deus, essa crise criativa não perdure por mais uma década. Precisamos urgentemente de grandes ideias novamente, o quanto antes. 

P.S: pena que Sergio Leone, infelizmente, não está mais entre nós para nos ajudar nesse recomeço. Seria extraordinário poder contar com ele - de novo.    


terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Baú de desafios, memórias secas e enfrentamentos


Há muito tempo ouço falar da escritora Conceição Evaristo, de sua obra ímpar, sua escrita precisa, mas nada de ter acesso a suas obras em livrarias e sebos. Parece impressionante, mas tudo que é minimamente interessante no Brasil do ponto de vista cultural é uma saga para se obter. Até quando teremos que conviver com esse descaso? 

Parece haver um profundo interesse por aqui apenas pela divulgação de bundas, palavrões, grosserias, humor chulo e divas fúteis. O resto... o público que se vire sozinho!

Mas eis que, finalmente, meu trajeto cruza com Becos da memória num quiosque desses de rua, a módicos dez reais, e enfim posso dizer (estava engasgado na garganta por muito tempo): "que autora sublime!". Difícil até mesmo classificar seu livro numa categoria específica, tamanha a grandeza de sua narrativa, que passeia do prosaico ao poético, como aliás, é dito na própria contracapa da obra. 

Romance? Antologia de contos? Ensaio sobre a miséria humana? Crônica do lado B dessa sociedade controversa e fragmentada? São muitas as leituras possíveis, o que só engrandece ainda mais seu conteúdo. Ao fim da última página lida, ficou-me a sensação de se tratar de um grande baú, repleto de desafios; memórias secas, árduas; vidas sofridas, adulteradas, pela metade; um receptáculo de enfrentamentos hostis, dolorosos, tudo junto compondo um grande painel de cicatrizes profundas.

Seu Ladislau, Maria-velha, Maria-nova, Vó Rita, Tio Totó, Mãe Joana, Negro Alírio, Nega Tuína, Custódia, Dona Santina, Dora, Ditinha, Titão, Bondade e tantos outros, mais do que meros personagens dessa saga sem fim que é o sobreviver, são tipos que vemos nas ruas a todo momento. São seres humanos que, no fundo, não sabem o que é ter um dia de paz. 

E nesse sentido Becos da memória dialoga - e por demais! - com a obra-prima Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. O que é mais um motivo (dentre inúmeros já ditos aqui) para ler esta pequena joia em forma de literatura contemporânea. Livros como esses não podem - nunca - morrer no esquecimento! 

Sobrou-me, ao fim deste post, uma certeza: eu preciso ler mais coisas dessa senhora. Urgentemente. Mais do que isso: o país precisa. E nem faz ideia do quanto. 


quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Um regresso aos bons tempos de leitor de gibi


Na carência  - e ela anda em alta ultimamente - de boas ideias e eventos culturais interessantes a comentar, deparo-me com alguns exemplares pocket de Striptiras, do cartunista Laerte, sendo vendidos a preço de banana (e compro todos, é lógico!). Uma coisa que aprendi com sebos e feiras de livros é não deixar as grandes oportunidades passarem...

E não que voltei no tempo coisa de umas duas décadas e me relembrei dos dias em que ia à Madureira, subúrbio do RJ, num antigo sebo num subsolo da loja Ultralar & Lazer, para comprar ou trocar quadrinhos sempre que me desse na telha? Pois é.

Striptiras é caos puro, mas no melhor sentido da palavra. É sempre delicioso ler as tirinhas de Laerte e se deparar (de novo e de novo e novamente) com seu humor ácido, com seu traço típico, com sua verve e coragem típicas. Nada parece estar em seu lugar, mas ao mesmo tempo nós, leitores, no fundo, não queremos que esteja. Pois, do contrário, não testemunharemos sua genialidade. 

Gato & Gata (e sua love story que tinha tudo - absolutamente tudo - para ser impossível), o Zelador (e sua eterna incapacidade de ser minimamente profissional), Virgínia Helena (segundo Laerte, a última beldade da história das HQs brazucas), Fagundes (o puxa-saco de mão cheia), Grafiteiro (o detonador do futuro) e tantos outros personagens icônicos que nunca caberão no discurso do politicamente correto de hoje em dia. 

E foi essa justamente a questão que me fez querer relê-los: onde foi parar o underground carioca, a cara de pau dos que desafiavam o sistema e as convenções sociais? Por que é tão difícil encontrar 10% disso na atual cultura carioca? Onde foi parar os culhões dessa gente contemporânea? Enfim... Que bom que nos resta o passado e sua eterna capacidade de esbarrar em nós de tempos em tempos, para lembrarmos do que valia a pena!

P.S: fiquei com vontade de reler Febeapá, do Stanislaw Ponte Preta, também. Será que encontro fácil para comprar (mesmo de segunda mão)?   


domingo, 8 de dezembro de 2024

30 anos sem o maestro


Eu não sei explicar com exatidão o que certos artistas possuem que os tornam tão ímpares, e mesmo assim eles o são. Talvez seja sua capacidade de encantarem o mundo fazendo o simples, porém bem feito (e digo isso em tempos de MPB e world music cada dia mais vulgar e tatibitate). De certeza, mesmo, apenas uma: Tom Jobim, que este ano completa três décadas de falecido, faz parte desse seleto grupo. 

E infeliz daquele ouvinte que crê que ele é apenas o autor de "Garota de Ipanema", um clássico do nosso cancioneiro para qualquer fã de boa música que se preze!

Tom cantou, compôs, arranjou, e encantou - muito. Não somente aos fãs da Bossa Nova (da qual fez parte ao lado de João Gilberto, Vinícius de Morais e outras feras), mas de todas as tribos e gerações. 

Quando parecia ter se realizado definitivamente, veio o show no Carnegie Hill, a ida para os EUA, as gravações com Frank Sinatra e o restante do mundo, que se tornou estreito demais para explicá-lo. Fez trilhas sonoras para longas americanos, foi regravado por artistas internacionais os mais diversos, foi enredo da escola de samba Estação primeira de Mangueira (em 1992) e, principalmente, se tornou uma marca registrada dentro da música popular brasileira.

Para aqueles que não conhecem nada sobre o artista (o que, desde já, vou logo dizendo: é uma lástima), faço duas belas sugestões: 1) o documentário A Música segundo Tom Jobim, de Nelson Pereira dos Santos (2012), que traz um interessante conjunto do repertório desse gênio, tendo como intérpretes vozes mundo afora; e 2) o disco antológico Elis & Tom (1974), que completou cinco décadas de existência - e deslumbre - esse ano. 

Aposto que depois de apreciarem essa dupla magistral, vão querer saber ainda mais sobre esse mestre da música brazuca.

Termino este breve post pensando no quanto a partida do maestro e o passar das décadas só fez empobrecer ainda mais o nosso mercado fonográfico, cada vez mais refém de modinhas, dancinhas, artistas fúteis, caras e bocas desnecessárias e uma indústria vazia e extremamente apelativa do ponto de vista sexual. Uma pena. 

Já tivemos uma das melhores músicas do mundo e deem uma boa olhada no sobrou, no que o mercado transformou em cultura... 


quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Cérebro podre? Sim... pra dar e vender


Milhões de cérebros danificados ou comprometidos pela cultura nociva do "eu acho" ou do "isso deve ser verdade, eu quero que seja verdade e ponto final...". Assim chegou à conclusão o Dicionário Oxford em 2024 ao escolher "brain rot" como a palavra do ano. E honestamente... acho que acertaram em cheio!

Mas o que significa "brain rot"? É algo, mais ou menos, como cérebro podre ou podridão cerebral. Mas com um adendo: o cérebro em questão apodrece por conta das notícias inúteis (fake news, junk literature, etc) consumidas sem critério ano após ano e formando uma sociedade altamente imbecilizante, mas cheia de marra.

Acreditem: o caso é bem mais grave do que sonha a nossa vã filosofia (e a de Shakespeare, claro!, também). Nunca estivemos diante de uma revolução dos idiotas - como já bem disse, no passado, o dramaturgo Nelson Rodrigues - tão grande quanto a atual. Não mesmo.

O amigo inseparável deles? O telefone celular, principal responsável pela propagação de toneladas indecentes de um contéudo de péssimo gosto, de baixo calão e, muitas vezes, sem o menor comprometimento com a verdade, que dirá com a opinião pública. Vivemos, isso sim, a era do que existe de mais fajuto, inventado e sem valor da história da humanidade. E ainda gargalhamos diante disso tudo. 

Lembram-se da gangue liderada por Malcolm McDowell em Laranja mecânica, de Stanley Kubrick, com aqueles imbecis saindo às ruas para tocar o rebu, quebrar, matar, indiscriminadamente? Então... Viramos uma versão online, confinada, mais covarde disso, mas não menos letal. E é preciso que fiquemos de olhos abertos, atentos. Porque o futuro promete algo ainda pior no radar, a dependermos de certas figuras públicas degradantes. 

Por ora só nos resta... o quê, no final das contas? rezar? aguardar? por quanto tempo? Olha! eu não faço (mesmo) a menor ideia. De concreto mesmo é que o mundo parece ter enlouquecido de vez.


sábado, 30 de novembro de 2024

Quarentona porralôca


Muito antes dos nerds começarem a encher o saco do resto da humanidade e os fãs de filmes de super-heróis passarem a acreditar que ditam a produção cinematográfica do mundo, uma doidivanas, quarentona, alcoólatra, ninfomaníaca, desbocada e desprovida de bom senso, já provocava o senso comum com suas tiradas cheias de desejo e malícia.

De quem falo? Da Rê Bordosa, claro! Criação do mestre Angeli para a antiga revista Chiclete com banana, suprassumo do underground carioca nos anos 1980. E não é que a própria personagem completou quatro décadas de existência? Bom saber disso. 

Rê Bordosa, bem como a grande maioria dos personagens desse segmento (e eu não vou citar todos eles aqui, pois somente mencioná-los já renderia um livro best-seller; por ora fique em mente com a seguinte informação: procure saber mais sobre Angeli, Aroeira, Laerte e toda aquela rapaziada abusada das HQs independentes) era fruto de uma época bem mais corajosa do que a atual. 

Naqueles dias em que a redemocratização começava a dar as caras e se expressar já não era mais um problema, essa mulher escancarou os limites do sexo e do erotismo. Prova viva de sua coragem é que até a roqueira Rita Lee chegou a ser a voz da personagem (refiro-me ao longa animado Wood & Stock: sexo, orégano e rock'n'roll, de Otto Guerra). 

Era ótimo poder concordar com Rê Bordosa, mas ainda melhor discordar dela. A moça não tinha papas na língua e enfrentava quem quer que fosse em nome da sua liberdade (e, por que não dizer também?, libertinagem). Nunca sabíamos o que esperar dela, qual seria sua próxima artimanha, e esse era o maior sex appeal da personagem. 

Ela também fez história no teatro, com o espetáculo "Rê Bordosa, o ocaso de uma doida" (1995), co-escrita por Betty Erthal - que interpretou a eterna desbocada - com Angeli. Dois anos depois, um novo projeto - "Rê Bordosa, vida e morte de uma porralôca" foi realizado, mas o manuscrito permanece inédito até hoje. Uma pena! 

E a chegada de mais essa quarentona me faz pensar - de novo - no quanto o tempo avança de forma assustadora e no quanto este projeto de colunista envelheceu. Mas, mesmo assim, é bom demais relembrar de uma época mais interessante do que os atuais (e indigestos) dias!  


quinta-feira, 28 de novembro de 2024

O último natal? Que seja, pelo amor de Deus!


Vem aí mais um especial de fim de ano do Roberto Carlos na Rede Globo... É sério? Sim, infelizmente. Não tinham comentado nas redes sociais que o do ano passado era o último, por conta da pífia audiência e repercussão? Pois é, mas... Não. Vai ter mais um. Mas dizem (leia-se: quem assistiu a gravação no Allianz Parque) que desta vez tem um clima de despedida.

Tomara.

O especial de fim de ano do Roberto Carlos na Rede Globo é uma história que já tem cinco décadas de existência e, cá entre nós, já poderia ter chegado ao seu término há, pelo menos, 10 anos. No barato. 

Roberto Carlos já foi (e eu empreguei o verbo no passado, não se esqueçam!) o rei da jovem guarda, há quem diga da MPB. Também já foi o maior vendedor de discos do país, líder em direitos autorais no ECAD por décadas. E muito por conta disso foi, por anos, um grande negócio para a emissora exibir seus shows na época natalina. 

Contudo, o tempo passou - e ele sempre passa numa velocidade e direção diferentes da que gostaríamos -, a MPB ganhou uma nova cara (não necessariamente mais interessante; na verdade, mais escrachada, vazia até) e ele, Roberto, angariou uma má fama em decorrência de suas próprias escolhas de vida. Vide o famigerado caso da biografia proibida.

Durante anos, acompanhamos o cantor e compositor de sucessos como "Emoções", "Sentado à beira do caminho", Cavalgada", "Café da manhã" e "Jesus Cristo", entre outros inúmeros hits, recebendo seus convidados (a nata da mesma MPB a qual ele foi rei) em apresentações, digamos, tradicionais. 

O problema? O mundo do show business e da classe artística hoje está na contramão do que vende Roberto Carlos. Vivemos a estética das multidões (como bem escreve o intelectual Pierre Bordieu), dos megafestivais, de preços extorsivos e estruturas astronômicas. Nunca foi tão difícil encontrar um show simples como agora. E Roberto quer permanecer clássico numa era em que o gigantesco fala mais alto. 

Resultado: seu programa chega ao ocaso refém da mesmice, da cafonice e não assimilando o que as novas gerações querem receber. Logo, melhor parar. Que seja agora, em 2024, fechando uma data redonda. E que vá cuidar da vida - e da fortuna - que acumulou ao longo da carreira. Acreditem: será bem mais sensato da parte dele. 


domingo, 24 de novembro de 2024

A bomba atômica ainda não foi desmontada


Vejo matéria no jornal comentando, no último dia 22, as duas décadas de How to dismantle an atomic bomb, do U2. É o último álbum da banda que eu realmente gostei (na verdade: que eu embarquei como um todo). E, lógico, que eu precisava comentar algo aqui.

A banda abre o trabalho avassaladoramente com "Vertigo" (e naquela época eles, de fato, pareciam viver uma grande vertigem musical, diferentemente do que veio depois, a chatice ideológica, os discursos engajados, a música sonolenta, as turnês milionárias e óbvias em excesso, etc).

Com "Miracle drug", Bono diz que quer viajar dentro de nossa cabeça e passar o dia lá... e parece, por um momento, conseguir. Diz mais. Que as canções estão no nossos olhos. E eu me lembro dos maiores hits da banda ao longo da carreira, e penso: "é verdade, eles ainda estão comigo!".

Já em "Love and peace or else" temos um quase libelo anti-guerra, anti-violência. A banda diz que precisamos de paz e amor (já se passaram 20 anos e ainda precisamos, Palestina e Ucrânia que o digam!). Ao fim perguntam, quase no desespero: "Onde está o amor?". Como eu gostaria de saber, meus amigos...

"City of blinding lights" é outra pedrada na fuça. É a minha favorita do disco. Se na canção anterior eles perguntam sobre o amor, aqui querem saber o que aconteceu com a beleza que tinha dentro deles. "Foi a globalização e a falta de tato que fez tudo sumir, gente! Infelizmente..."

A partir de "All because of you", o grupo já pegou a manha, já entendeu o que precisa fazer para manter o nível de interesse do ouvinte. E faz isso de um jeito ímpar (algo que se perdeu nos últimos anos, confesso). E vale uma conferida, com carinho, também em "Crumbs from your table", "Original of the species", "Yahweh" e "Fast cars". Elas merecem a sua atenção.

Ao fim da audição um sentimento de saudade profunda. O U2, infelizmente, hoje não é mais esse. Uma pena! Mas, contudo, penso: "faz parte da história de todas as bandas esse distanciamento. O melhor sempre fica pelo meio do caminho. A própria música pop não é mais a mesma. Na verdade, virou um arremedo de cultura. E isso também é muito triste. 

As bombas atômicas continuam em voga, não foram desmontadas. Pelo contrário... Há até imbecis que se mobilizam por uma terceira guerra mundial (tudo que o mundo, em tempos de aquecimento global, inteligência artificial e fake news, não precisa - mesmo!). Ainda bem que ainda é possível ouvir de novo a mensagem desse álbum poderoso. 

Que ele permaneça vivo em tempos de caos e hipocrisia. 


quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Acredite se quiser!


O mundo da arte, infelizmente, se rendeu ao mercado nocivo das provocações, das criações inúteis, dos artistas como sinônimo de escandalizar ou tirar sarro da cara da sociedade contemporânea. E não bastasse tudo isso ainda somos convidados a aplaudir esse circo dos horrores segundo a visão torpe do mundo opaco da internet e das redes sociais, com comentários vazios, levianos, voltados única e exclusivamente para o consumo barato. 

Pego-me estupefato com a notícia de que "a arte da banana" (é assim que se referem a ela no google), obra conceitual do italiano Maurizio Cattelan, foi vendida por R$ 35 milhões em um leilão. Mais do que isso: que haviam 7 (sete) compradores disputando ela com unhas e dentes. 

A obra em questão não passa de uma reles banana presa a uma parede por uma fita isolante, como visto na foto acima. Detalhe: a peça chegou a ser mordida duas vezes enquanto exposta, por pessoas que pensavam se tratar de uma reles fruta para ser consumida no ato. Sim, é bizarro, eu sei...

E se levarmos em consideração que Vik Muniz já transformou lixo em quadros famosos (vejam, quando puderem, o documentário Lixo extraordinário) e Damien Hirst usou fezes de morcego e serrou animais em seus "experimentos", pergunto-me: o que sobrou de lúcido ou, ao menos, de inventivo nas chamadas artes visuais?

Andy Wahrol tornou a banana famosa no passado, bem como Carmen Miranda. E acho praticamente impossível dissociar a imagem da fruta do icônico álbum da banda de rock Velvet Underground. Logo, nada mais justo - na visão de artistas e marchands, é lógico - que Cattelan ousasse ainda mais e a transformasse num objeto ainda mais valioso e cobiçado. 

Tristes tempos esses em que vivemos no qual o fútil virou objeto de luxo extorsivo para agradar a burgueses imbeciloides e seus sonhos de consumo cada vez mais atrozes...


segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Começar tudo de novo


Nada é mais triste (bem... perder os pais é certamente pior!) e desolador do que ser um refugiado. Ver o seu país de origem entrar em colapso - seja pelo conflito armado ou pela crise econômica que assola o mundo - e precisar abandoná-lo, por vezes as pressas, em alguns casos quase ameaçado de morte. 

Quando o país de Azzi naufragou de vez, ela custou a entender porque precisou sair corrida de lá, com seus pais, para tentar uma nova realidade em outro lugar do mundo. E tudo precisou ser feito de forma quase cronometrada. Um deslize e o futuro poderia vir abaixo num piscar de olhos...

Ao chegar ao novo país (agora, seu novo lar), essa menina precisou reaprender tudo, a começar pela própria língua, além de novos costumes, amigos, opiniões, etc. E nunca é uma tarefa fácil. 

Em Um outro país para Azzi, de Sarah Garland, a autora - que também passou pelo mesmo dilema -, conta-nos uma história seca, complexa e árdua, mas sem perder a pureza da idade de sua protagonista. Nos divertimos com a inocência de Azzi, nos preocupamos com sua dificuldade ao tentar aprender um novo idioma, nos surpreendemos com sua própria surpresa ao entender que precisará fazer novos amigos. 

Independente de que desafio ela terá de encarar, com certeza fará isso com muita perspicácia e curiosidade, atributos que não perdeu mesmo em meio a toda essa tragédia. 

É possível enxergar a história tanto como uma HQ quanto um livro infanto-juvenil. Sua narrativa, atualíssima, se presta a ambos formatos. Além disso, possui momentos de brilhantismo dignos de nota, como a travessia pelo mar rumo ao novo continente e também a decisão de manter presente a cidade natal sob escombros, após tantas batalhas que não levaram o país a lugar nenhum.

Sarah não especifica de que país de origem vem Azzi, mas todos, logicamente, sabemos bem de que região do mundo ela fala. Está em todos os tabloides, campanhas dos médicos sem fronteiras, discursos políticos, da ONU, doações de combate à fome. Só mesmo os alienados e estúpidos para não reconhecerem de onde vem toda essa paranoia. 

Recomendo a leitura não somente aos filhos, mas principalmente aos pais. Alguns deles já deviam ter aberto os olhos para o tema há mais tempo. Quem sabe, agora...  


quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Mosfilm, um centenário para a sétima arte russa


Assim como os EUA tem hollywood, a índia tem bollywood e a Itália teve a  Cinecittà, é impossível falar do cinema russo e soviético sem mencionar a palavra Mosfilm. O maior estúdio de cinema da terra de Dostoiévski, Tolstói e Tchékov chega ao seu mais que justo centenário entregando ao público cinéfilo de todo o mundo por volta de 2500 longas-metragens, muitos deles tão icônicos quanto vários dos maiores clássicos do cinema americano. 

E ao contrário do que muitos detratores pensam (e regurgitam, em falas preconceituosas), não se trata apenas de uma cinema político ou de viés comunista. Há, isso sim, opções as mais diversas, para os mais variados tipos de público.

Entre suas obras mais conhecidas, é possível perceber temas recorrentes dentro do catálogo da empresa, tais como: as duas guerras mundias, Afeganistão, conflitos bélicos envolvendo a rússia com outros países da região, após o fim da União Soviética; comédias que satirizam abertamente os Estados Unidos, maior rival geopolítico do país; documentários que analisam de forma nua e crua o horror do nazismo; etc.

Dizer que a censura não foi um fator que permeou o cinema da União Soviética é, no mínimo, admitir covardia, e o país sempre teve problemas para distribuir certas obras, vistas como "inimigas da pátria". Mas, mesmo assim, o estúdio sobre driblar suas dificuldades logísticas e seguir em frente. 

Na prática a Mosfilm se trata de uma área de 34 hectares, com 15 pavilhões de cinema, o maior dos quais tem 2.000 metros quadrados, aberto ao público e sempre repleto de turistas fazendo tour e conhecendo um pouco da história da sétima arte russa (guardadas as devidas proporções, difícil não comparar imediatamente com o Prozac, das organizações Globo). 

O símbolo do estúdio é a gigantesca escultura “Trabalhador e mulher do Kolkhóz”, da artista soviética Vera Múkhina. A obra de arte pesa 185 toneladas e foi criada para o Pavilhão Soviético na Exposição Mundial de 1937, em Paris. E ele foi escolhido para representar o cinema russo após a Segunda Guerra Mundial, em 1947.

Para quem procura dicas por não saber por onde começar a fuçar no catálogo da empresa recomendo A Greve (1924), de Serguey Eisenstein; Quando Voam as Cegonhas (1957), de Mikhail Kalatozov, Velas Escarlates (1961), dirigido por Aleksandr Ptushko; Guerra e Paz (1967), de Serguêi Bondartchuk; Os Sinos da Noite (1973), de Vassily Shukshin; O Espelho (1975), de Andrei Tarkovski, Não posso ser! (1975), de Leonid Gayday; Dersu Uzala (1975), de Akira Kurosawa e Moscou não acredita em lágrimas (1979), de Vladímir Menchov - e isso como um leve aperitivo, por que o menu é vasto e interessantíssimo. 

E como arremate desse singelo post, não custa avisar que a Cinemateca brasileira realiza, até dia 24 de novembro, a 10ª Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo, excelente porta de entrada para quem quer saber mais tanto sobre o estúdio quanto a produção audiovisual do país. Fica a valiosa dica!


terça-feira, 12 de novembro de 2024

Até as últimas consequências


"O Brasil contemporâneo tem um gigantesco fascínio por um passado que nunca passou de uma era tenebrosa e hipócrita; e simplesmente não dá pra entender o porquê disso". Essa foi a primeira coisa na qual pensei ao fim da projeção do extraordinário Ainda estou aqui, novo filme do diretor Walter Salles e representante do país na categoria melhor filme internacional do Oscar. 

Acompanhamos a jornada de Eunice Paiva (Fernanda Torres, brilhante!), que teve sua vida colocada de cabeça para baixo depois que os agentes da ditadura levaram o seu marido, Rubens Paiva (Selton Mello), ex-deputado, para depor. A partir de então devotou sua vida a encontrá-lo ou, ao menos, descobrir o paradeiro do seu corpo. 

Rubens nunca mais voltou para casa e, assim como ele, muitos outros pais de família, viraram "desaparecidos" segundo a lógica ditatorial, num país que adora fabricar ilusões. Escusa mesmo, nessas terras inglórias, é a verdade. Entretanto, sua esposa não desistiu de acreditar, de seguir em frente, voltou à faculdade, estudou direito, tornou-se referência na questão indígena e foi até as últimas consequências até descobrir que fim seu amado cônjuge levou.

Walter Salles - magnificamente - passeia do poético (a relação de Eunice e Rubens com os filhos) à catástrofe (os depoimentos insólitos, a catarse da violência proposta pelo regime militar, a sensação de vazio extremo em meio a uma realidade que se recusa a caminhar). E tudo isso conduzido de forma sublime por uma trilha sonora inebriante, uma fotografia de marejar os olhos e uma reconstituição histórica impecável. 

E depois disso tudo ainda tem infeliz que abre a boca pra falar que o cinema brasileiro vai de mal a pior!  

Ao fim da sessão sou pego por um sentimento dúbio: um misto de gosto amargo na boca por ver retratado um passado que não queremos rediscutir seriamente (e sim ovacionar cegamente e sem parâmetros), mas também as lágrimas orgulhosas de saber que a sétima arte do meu país ainda é capaz de produzir algo desse porte. 

E como cereja do bolo ainda vislumbro a grandiosidade de Fernanda Montenegro, interpretando Eunice já no fim da vida, com Alzheimer, sem proferir uma única palavra, mas dizendo tudo com um simples olhar. Fantástica!

Como bem diz no twitter um meme ao qual associam o cineasta Martin Scorsese: "isso é cinema".

P.S: quase esqueço de comentar... que alegria poder ver na plateia da sala de projeção milhares de jovens, querendo saber mais sobre esse período negro, não se rendendo a um moralismo fútil e vazio, baseado em privilégios. Ainda é possível ter esperança no futuro, nunca é tarde (embora o mundo todo dia pareça contradizer essa frase com imagens terríveis). Assistam. O longa merece a presença de vocês. 


sábado, 9 de novembro de 2024

Elas voltaram?


Direto dos anos 80! É... impressionante como a década continua repercutindo até hoje. E depois do retorno dos LPs (os famigerados vinis), agora chegou a vez das fitas cassete. Sim, ele começaram a reaparecer mundo afora para alegria de fãs nostálgicos e colecionadores. 

E dependendo de onde elas forem reaparecendo ao redor do mundo serão exatamente isso: um objeto da nostalgia, tendo em vista a dificuldade para encontrar toca-fitas que as reproduzam. 

Eu não sou um expert no formato. Na verdade eu preferia os LPs. Mas como esquecer da relação de amor e ódio envolvendo elas? Amor por lembrar das inúmeras playlists que fiz ao longo da adolescência, gravando canções nas rádios fluminense, cidade e transamérica (eu ficava puto quando a voz do radialista entrava no meio ou quase no fim da música!) e ódio toda vez que a fita desenrolava e você tinha que usar uma caneta para enrolá-la de novo.

Quem viveu sob a era do CD, do DVD, do streaming, certamente não entende o que foi esse período. E o porquê lembramos dessa época com tanto carinho e saudade. A volta das fitas é como uma espécie de regresso de uma época bem menos sofrida e preocupada que a atual. 

Eu possuía três específicas que eu não emprestava pra absolutamente ninguém: uma do Phil Collins - Serious Hits live (que eu ouço volta e meia, agora na versão deezer ou spotify), um show do Queen gravado direto da rádio 89 e o álbum Vivid, do Living Colour (que eu tenho até hoje, embora nunca mais tenha ouvido depois que o meu walkman deu tilt de vez). 

Espero sinceramente que voltem a fabricar também os reprodutores. A geração nostálgica (e também a atual) merecem conhecer ou reviver essa experiência.  


segunda-feira, 4 de novembro de 2024

R.I.P Quincy Jones


O século XX continua, infelizmente, nos abandonando a conta gotas...

Certos músicos são eternos, lendários, e isso já se tornou clichê, de tanto que nós repetimos a frase. Entretanto, alguns artistas deveriam ser imortais, pois vê-los partir me faz pensar no quanto a indústria cultural está empobrecendo e não podemos fazer nada para evitar tal fato. Quincy Jones, que nos deixou aos 91 anos, é com certeza um desses. 

Talvez a grande maioria dos fãs do seu trabalho o reconheçam apenas pelo fenômeno Thriller, álbum que produziu ao lado do cantor e compositor Michael Jackson, e também pelo clipe de "We are the world", que reuniu gigantes da música pop com o intuito de combater a fome na Etiópia. Jones - acreditem! - foi muito mais do que isso. 

Que outro músico pode dizer que trabalhou com artistas do naipe de Frank Sinatra, Miles Davis, Ray Charles, Milton Nascimento, Ivan Lins... "Provavelmente pouquíssimos", vocês dirão. Quincy Jones se tornou - pelo próprio mérito e competência - a cara do jazz. 

Tanto que a revista Time o chamou de "um dos músicos de jazz mais influentes do século XX". Além disso, o cantor, compositor e produtor ganhou 28 Grammys, dois Oscars e um Emmy, ao longo da carreira. 

Contudo, seu maior legado na indústria foi ter se tornado uma figura onipresente no mercado de entretenimento. Me lembro dos tempos em que assistia pela MTV clipes, shows e entrevistas épicas, e era praticamente impossível não ouvir o nome dele pelo menos uma ou duas vezes todo dia. E olha que a concorrência nesse meio sempre foi feroz. 

Não sei como me despedir de lendas, apenas homenageá-las. Fica o legado e a alma musical desse grande artista. Mais um que dificilmente encontrará um substituto à altura em meio a essa geração atual que só pensa em cifras e enriquecimentos, por vezes duvidosos. 

Fica com Deus, mestre!


sábado, 2 de novembro de 2024

Quando um império morre?


Coppola passeia do Império romano aos Estados Unidos da contemporaneidade numa fábula com contornos apocalípticos. Parece louco - e é. Mas que bom saber que o diretor por trás de clássicos da sétima arte como O poderoso chefão e Apocalipse now ainda é capaz de repensar e desconstruir o mundo que nos rodeia, independente de convivermos com uma sociedade cada dia mais alienada. 

Em Megalópolis testemunhamos Nova Roma, uma sociedade que é o apogeu do hedonismo e da falta de caráter ou valores. Seu prefeito, Cicero (Giancarlo Esposito), só arrebanha críticas por seu governo desastroso, embora goste de se esconder atrás de falsa popularidade; a jornalista Wow (Aubrey Plaza) é o retrato vivo da imprensa marrom, mais interessada em ser o próprio espetáculo do que reportar os fatos; e Crassus (Jon Voight) é a acomodação visível de um sistema bancário que nunca pensa além do próprio umbigo - isso para ficarmos apenas nos exemplares indigestos mais visíveis.

Como contraponto a toda essa depravação moral, Cesar Caitilina (Adam Driver), a representação máxima do artista, do gênio; um homem capaz de parar o tempo e que deseja construir Megalópolis, a utopia definitiva. Mas como conseguir realizar tal sonho numa sociedade tão deteriorada e mais afeita à corrupção e aos prazeres efêmeros? A única que parece acreditar em seu talento é Julia (Nathalie Emmanuel), filha de Cicero. O que leva esse amor entre ambos a um impasse.

Como pano de fundo a realidade atroz como a conhecemos nesse século XXI cada vez mais contraditório: herdeiros ambiciosos que almejam o poder a qualquer custo (embora não possuam o menor talento para exercê-lo); falsas virgens sendo leiloadas em eventos milionários; o culto exagerado à cultura pop e seus mitos falaciosos; manifestações e revoltas populares pipocando em todos os cantos; e o povo, cada vez mais miserável e faminto, sem ter a quem recorrer.

Embora tenha flopado nas bilheterias e sido massacrado por inúmeros segmentos - incluindo o mercado exibidor, que se recusou a distribuí-lo, acusando o projeto de "anti-comercial" - confesso que as ideias de Coppola mexeram (continuam mexendo) comigo. Vi um realizador lúcido, no auge de sua forma e ciente dos problemas e mazelas pelas quais o mundo passa, e nada faz para corrigí-las. 

Ao fim da projeção, enquanto alguns tediosos espectadores se retiravam detonando todo o projeto (pelas caras e vestimentas, certamente o tipo de público que normalmente comparece ao cinema só para assistir bobagens super-heroicas e filmes de bonecas, zumbis, vampiros, etc), e depois de ter assistido a algumas entrevistas do diretor para divulgação do filme na internet, saí curioso pelo próximo longa dele - que ele, aliás, disse que já tem um rascunho.

Megalópolis não é cinema para fãs da Marvel ou DC, muito menos àqueles que comparam filmes com Big Macs, pizzas, sabão em pó ou outros produtos de consumo perecíveis. É, isso sim, obra digna de reflexão e questionamentos os mais diversos por quem estiver interessado em repensar a realidade. Algo que anda em falta - e muito! - na sociedade contemporânea das últimas décadas.

Faltou dizer alguma coisa? Não. Faltou vocês assistirem o filme. Mas, de preferência, com a mente aberta. E não querendo colocar tudo na conta do mercado e dos lucros rápidos e exorbitantes. Nem sempre cinema é sinônimo de fenômeno de bilheteria. Falta à atual geração lucidez para entender isso...


quarta-feira, 30 de outubro de 2024

O anticrítico


Se a internet substituirá de vez a televisão eu não sei dizer, mas com certeza ela mudou os rumos do entretenimento (nem sempre no bom sentido, eu sei...). Passeie brevemente pelo youtube e você certamente irá se deparar com um mundo à parte do próprio mundo. Que o digam os canais que subvertem aquilo que conhecemos como clássico! 

A crítica de cinema, por exemplo. Foi dos tabloides e revistas especializadas à blogosfera e, posteriormente, aos sites. E agora encontrou no formato deboche ou sátira um lugar para chamar de seu. Exemplo vivo disso? O canal Chapado crítico, do humorista Bento Ribeiro, filho do escritor João Ubaldo Ribeiro.

Bento fez parte da geração MTV e seu humor, como não podia deixar de ser, é ácido até dizer chega. E em sua persona chapada ele escancara aquilo que a sétima arte tem de melhor e, principalmente, de pior. Aguardamos ansiosos por seus vídeos de 20, 30 minutos; suas tiradas irônicas e comparações surreais com fatos do cotidiano, por seus comentários insólitos e, por vezes, emocionados acerca de certos longas.

Os objetos de estudo dos seus vídeos são, em grande parte, clássicos do cinema hollywoodiano dos anos 1980, mas também há espaço para detonar lançamentos recentes do circuito, bem como películas que prometiam tanto e não entregaram nada (como Coringa: delírio a dois e o execrável Sílvio). 

Adorei suas postagens sobre Stallone Cobra, O enigma do outro mundo e Os aventureiros do bairro proibido (produções que marcaram profundamente a minha geração e que me faziam ver tv até de madrugada numa época em que o veículo valia a pena ser assistido). No fundo, o que Bento nos entrega são anticríticas, vide seu total descompromisso com a formalidade e o egocentrismo de certas figuras desse segmento. 

Convido àqueles que não conhecem ao Chapado crítico que o procurem no youtube o quanto antes. Aposto como passarão a ter uma outra visão - bem humorada, é bom avisar com antecedência - sobre a nobre arte de fazer filmes. E em tempos de negacionismo, fake news e figuras pedantes se achando o máximo só porque tem milhões de seguidores na internet, isso é muito mais do que o mercado anda entregando... 


domingo, 27 de outubro de 2024

Os clássicos morreram mesmo!


Reassisto Star Trek II: a ira de Khan, de Nicholas Meyer, depois de muitos anos e chego a uma devastadora conclusão: hollywood virou realmente uma piada - e de mau gosto. Onde foi parar toda aquela indústria cinematográfica com potencial para transformar sonhos impossíveis em realidade? E por que a atual geração faz tanto esforço para reler esses clássicos e transformá-los em bombas estratosféricas? 

A ira de Khan nos trazia o melhor dos mundos: um mocinho em crise (James Kirk acreditando estar em sua última missão pela Enterprise), um vilão renegado da melhor qualidade (vivido de forma visceral pelo ator Ricardo Montalban, da série cult A ilha da fantasia) e batalhas intergalácticas inesquecíveis que não precisavam de CGI para serem absolutamente inebriantes. 

E o que vemos hoje? Um festival de pastiches, narrativas absurdas, vilões canastrões e personagens infantilizados, criados para atender a uma demanda nerd pobre e culturalmente vazia por natureza. 

Star Trek até tentou se reinventar, rebootando-se, com outro elenco, mas... não dá. Certas franquias são eternas e, honestamente, imexíveis. E, além disso, o encanto, o charme e a nostalgia se perderam em meio ao desejo voraz de lucro rápido e fácil dos chamados CEOs, verdadeiros responsáveis pela crise do cinema americano nos últimos anos. 

A própria ficção-científica como gênero se perdeu numa espécie de delírio coletivo, onde o que realmente importa são artistas de plástico sendo vendidos como salvadores da pátria e mulheres sem expressão que só precisam ser lindíssimas (ou, às vezes, nem isso) para ganhar uma chance de brilhar. Porém, não brilham, não se destacam, e principalmente, não arrecadam o suficiente para justificar o alto orçamento em cima delas (e deles também, lógico!).

Ao fim, fica um sentimento agridoce (Quê?! não, amargo mesmo!) de que os clássicos morreram mesmo. Pior: deram lugar ao nonsense, ao infantilismo, a piada pronta e repetitiva, a bonecos, tênis, parques de diversões, fast foods e outras baboseiras indigestas que em nada avalancaram o mercado exibidor.

Será que ainda dá para sonhar com dias melhores nesse setor? Sei não... 


quarta-feira, 23 de outubro de 2024

R.I.P Antônio Cícero, poeta, filósofo, etc

 


O século XX está todo indo embora...

Mais um poeta pop partiu? Infelizmente. E dos bons, é bom avisar logo! É por causa de pessoas como Antônio Cícero, que faleceu hoje aos 79 anos, que a MPB merece ser muito celebrada. Não, não é exagero, não! E quem pensa assim certamente nunca ouviu suas canções (ou leu seus livros). Cícero era foda - e ponto. 

Além de poeta, escritor, letrista, crítico literário, professor de filosofia, imortal da Academia Brasileira de Letras... a lista é imensa, e ainda assim insuficiente para explicá-lo.

Deixou ensaios e colunas para jornais (escreveu para a Folha de São de Paulo de 2007 a 2010) célebres, livros extraordinários - como O mundo desde o fim (1995), no qual reflete sobre a modernidade, e A cidade e os livros (2002) -, músicas que marcaram época... Seus amigos diziam que ele "foi grande poeta, tanto no livro como na canção; sabia que letra de música pode ser sim boa poesia".

Estudou em Londres (quando esteve no exílio) e fez Pós em Georgetown, nos EUA. Seu poema mais famoso, "Guardar", entrou para a maravilhosa antologia 100 melhores poemas brasileiros do século, organizada por Ítalo Moriconi. Participou do documentário Janela da alma, de João Jardim e Walter Carvalho.

Mas seu maior legado ficou na MPB, em parcerias com Cláudio Zoli, Waly Salomão, Adriana Calcanhotto, Lulu Santos, Caetano Veloso e com sua irmã, a cantora Marina Lima. Impossível esquecer de "Fullgás", "À francesa", "O último romântico", "Maresia" e tantos outros hits. E parecia tudo tão fácil, do jeito que ele escrevia. 

Cícero estava na Suíça e escolheu o suicídio assistido para deixar este plano. Um direito e uma escolha dele que muitos certamente não entenderão. Ficam a obra antológica e os ensinamentos desse grande mestre que eu tive a honra de assistir numa palestra universitária uma década atrás. Vai fazer falta - e muita. Fica com Deus, poeta!    


segunda-feira, 21 de outubro de 2024

40 anos sem Truffaut


Eu nunca vou me esquecer dele como o cientista Claude Lacombe de Contatos imediatos do terceiro grau, do diretor Steven Spielberg (até porque eu revi o longa umas 20 vezes durante a década de 90 e virou um filme fetiche da minha adolescência). François Truffaut tinha uma elegância que eu não conseguia enxergar nos outros diretores da nouvelle vague (e não estou dizendo com isso que os outros eram piores!) e, por isso, se tornou para mim o diretor mais importante daquela geração. 

Posso dizer com toda a segurança que todos os filmes dele que assisti mexeram comigo de alguma forma, e nenhum em especial me deixou decepcionado, o que já é sinal mais que óbvio de estar diante de um cineasta acima da média (e isso é pra poucos). Além disso, seus textos escritos na Cahiers du Cinéma pautaram minha decisão de escrever sobre cinema de tempos em tempos.

Em 21 de outubro de 1984, aos 52 anos, ele nos deixou, vítima de um tumor cerebral, mas cá entre nós: ainda sinto sua presença, seu estilo e faço questão de rever sua obra sempre que posso. É daqueles artistas que você quer trazer perto do coração, que faz questão de incluir na sua formação cultural, simplesmente porque o trabalho dele faz toda a diferença em meio a tanta gente posando de famoso e popstar hoje em dia. 

Com Antoine Doinel, de Os incompreendidos, ele nos entregou um rito de passagem poderosíssimo; falou de cinema metalinguisticamente em A noite americana; Já o trio Catherine, Jules e Jim entrou para a história da sétima como o triângulo amoroso por natureza; fez do incêndio dos livros em Fahrenheit 451, adaptado da obra de Ray Bradbury, um libelo contra o fascismo; e ainda nos entregou a sereia do Mississippi, Adele Hugo, o garoto selvagem, o homem que amava as mulheres e muito mais...

O único porém em sua carreira? ter vivido pouco, pois eu me pergunto o que ele não teria entregue ao público se não tivesse partido de forma tão prematura. Para quem gosta de ler sobre grandes cineastas, recomendo de olhos fechados O prazer dos olhos - escritos sobre cinema, de autoria do próprio diretor, e Truffaut - Uma Biografia, da dupla Antoine De Baecque e Serge Toubiana. E ainda tem o curto (porém ótimo) documentário François Truffaut - o rebelde, de Alexandre Moix. 

E como eu sempre aviso nesses posts homenagens: não deixem de ir à procura de sua filmografia maravilhosa. Valerá cada segundo do seu tempo!   


sexta-feira, 18 de outubro de 2024

MPB in delirium tremens


2024 acabando e eu quase me esqueço de comentar o extraordinário A tábua de esmeralda, de Jorge Ben (nessa época ele ainda não era Benjor), sem sombra de dúvidas um dos maiores álbuns da história da música popular brasileira, que completa cinco décadas de existência. 

Tudo em Jorge Ben é pura bossa, puro ritmo... Meu pai, que era fã quase doentio do artista, dizia que ele era um animal estranho dentro da MPB (mas no bom sentido da palavra). "Era o único indivíduo capaz de juntar ovnis, jogadores de futebol e mulatas numa mesma canção e, ainda assim, entregar um espetáculo musical à parte", ele completava.  

Enquanto outros artistas abrem seus discos com músicas mais alegres, em A tábua de esmeralda Jorge Ben prefere meio que um caminho alternativo, propondo quase um manifesto com "Os alquimistas estão chegando". A música tem, inclusive, um clima meio de revolução, de "o futuro está logo, chegando, para nós ajudar nesse momento de confusão.

Já com "Errare humanum est" ele faz uma correlação entre deuses e astronautas que automaticamente remete ao livro de Erich von Däniken. E tudo isso é desmentido logo na faixa seguinte, com a swingada  "Menina mulher da pele preta" (que já foi cantada até pela banda Red Hot Chilli Peppers durante um festival de música no RJ).

Ele torce pela paz, pela compreensão, pelas moças bonitas e pelo bem-estar das pessoas; homenageia Zumbi (figura tão massacrada nos tempos atuais por um segmento da sociedade que nem sequer conhece a história do próprio país) bem como outras figuras negras; diz que a vida é bela e que está de bem com ela; convoca, em inglês, os brothers para a luta (que continua, não importa em que época)... Sério. Como diria um outro baluarte da MPB: ele organiza o movimento.

Deve ser a nona ou décima vez que ouço o álbum e sempre saio de cada audição dele com a mesma impressão: a de estar diante da MPB em seu formato delirium tremens. Nada é totalmente real, mas também não totalmente imaginário, ficcional, ilusório. Em suma: uma mescla desses dois mundos, um complementando o outro.

E pensar que a nossa música já foi sinônimo disso o ano todo e hoje nos contentamos vulgarmente com piseiros, calypsos, arrochas, sertanejos opacos e canções monossilábicas! Em que curva da indústria fonográfica perdemos completamente a direção? Enfim... Salve Jorge! Hoje e sempre. E que venha o centenário dessa obra-prima.


segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Mr. Olivetto


Quando estava encerrando meu dia na internet ontem me deparei com a triste notícia da morte do publicitário Washington Olivetto, aos 73 anos. E imediatamente meu cérebro viajou no espaço-tempo. Por quê? Não consigo imaginar minha adolescência sem a presença de seu trabalho icônico na propaganda. Não à toa o considero nosso maior nome nesse setor até hoje. 

Seus comerciais ditaram grande parte da minha relação com a televisão e a própria cultura pop e até hoje faço correlações entre a nova geração de publicitários e seu trabalho visionário, à frente do próprio tempo.

São muitas as memórias nostálgicas do seu trabalho: o Garoto Bombril (1978), com Carlos Moreno: a palha de aço das "mil e uma utilidades"; o Primeiro Sutiã, da Valisère, com a atriz Patrícia Lucchesi (1987) e a frase que virou cult: "o primeiro sutiã a gente nunca esquece"; Hitler, feito para o jornal Folha de S. Paulo (1989), que chocou o público com a mensagem “é possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade”; Vulcabras 752 (1990), apresentado pela cantora e apresentadora Hebe Camargo; o Cachorrinho da Cofap (1994), dos amortecedores, e o slogan "o melhor amigo do carro e do dono do carro" (a raça dachshund ficou conhecida por muitos anos como o cão da Cofap)... A lista é imensa e somente ela já renderia um texto próprio.

Washington fez história na agência DPZ e criou sua própria agência, a W/Brasil, reconhecida internacionalmente (e cujo nome muitos associam à canção homônima de Jorge Benjor). 

Mais do que isso, ele foi gigantesco em muitos aspectos: foi um dos publicitários mais premiados do mundo, conquistando mais de 50 Leões no Festival de Publicidade de Cannes; é o único latino-americano a ganhar um Clio Awards (em 2001); foi eleito duas vezes o publicitário do século pela ALAP (Associação Latino-Americana de Publicidade) e ainda produziu os únicos dois comerciais brasileiros presentes na lista dos 100 maiores do mundo de todos os tempos. Precisa dizer mais alguma coisa? 

A morte de Olivetto, assim como a de Cid Moreira e Rita Lee nos últimos tempos, me faz pensar que estamos nos despedindo do século XX (ou seja: daqueles que produziram algum significado para o século) aos poucos, e isso é por demais triste. Nunca precisamos tanto de referenciais como agora. E só o que vejo ao meu redor é melancolia, uma sociedade que só pensa em guerra e divisão social. Que novos personagens interessantes possam surgir para cobrir a lacuna deixada por estes indivíduos extraordinários. 

E Olivetto... fica com Deus, meu caro! Seu legado será eterno.


sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Vida e morte são apenas capítulos


A morte como "a única certeza que nós temos na vida" é uma catarse cruel, porém necessária, principalmente num mundo cuja sociedade se recusa a olhar para os lados e se foca única e exclusivamente no próprio umbigo (leia-se: poder, status, riqueza, etc). Entretanto, quando se trata da morte de um filho ou ente querido a história muda completamente de figura e temos o costume de rever esse conceito. É exatamente o que acontece com Louis no extraordinário Três sombras, hq de Cyril Pedrosa.

Ele vive com a esposa, Lise, e com o filho Joachim num lugar à parte do mundo. Lá, criam suas próprias regras e fazem suas próprias escolhas baseadas no bem-estar e num estilo de vida alternativo. Pelo menos assim era até que surgem três sombras, que Louis acredita que ali estão para levar Joachim embora. 

Não disposto a permitir tal ato ele foge com o filho numa viagem que mostrará a ele o melhor e o pior da humanidade em proporções quase idênticas. A todo momento ele será posto à prova, traído, enganado, usado, dentre outras artimanhas sórdidas, mas também vislumbrará pílulas de grandeza em determinados exemplares humanos. Contudo, o desfecho dessa saga não será nem de longe aquilo que ele imagina. 

Cyril Pedrosa é um artista sublime. Já foi animador dos estúdios Disney e trabalhou em longas como O corcunda de Notre Dame e Hércules. E aqui nos entrega uma graphic novel muito bem acabada que mescla bem sentimentos e estruturas. Num clima mezzo fábula mezzo tragédia acompanhamos essa jornada desesperada de pai e filho em busca de respostas que talvez nem existam num mundo dito normal. 

O problema: o mundo nunca quis de fato ser normal. Ele prefere, isso sim, ser um desafio constante e precisamos estar preparados para abrir mão de nossos maiores sonhos a qualquer momento ou, no mínimo, lutar com unhas e dentes, até a morte se necessário, para realizá-los.  

Só não digo que fiquei totalmente realizado com a leitura porque - confesso -me bateu uma curiosidade a respeito da escolha do autor pelo preto e branco. Gostaria muito de ter visto o trabalho a cores (e o traço de Cyril é tão poderoso! com certeza o resultado final teria sido um escândalo).  

Ao fim dessa experiência apenas uma pequena (e inebriante) certeza: a de que vida e morte são nada mais do que capítulos e eles nunca duram o tempo que nós gostaríamos que eles durassem. Mas nem por isso eles são menos poderosos e, consequentemente, necessários. 

Uma excelente opção para quem procura uma boa leitura na nona arte fora do universo heróis e histórias sobrenaturais. Procurem!  


terça-feira, 8 de outubro de 2024

25 anos sem o engenheiro das palavras


Eu me lembro com exatidão das três vezes em que li o poema Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto. E principalmente: do prazer inenarrável que foi esmiuçar aquela obra-prima. Impregnado de forte crítica social, mas sem perder sua capacidade de ser nostálgico e mostrar um nordeste eterno, João Cabral nos entregou - assim como Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas - um microcosmos ácido sobre o Brasil. 

O triste nisso tudo? Lá se vão duas décadas e meia em que nunca mais veremos esse mestre em ação na poesia brasileira. E as novas gerações não fazem a menor ideia do que significa não ter alguém dessa envergadura para ler nos momentos de lazer!

João Cabral fez parte da geração de 45 do modernismo brasileiro, um período em que os escritores estavam mais preocupados com a palavra e a forma do que com o conteúdo (o que não significa - de forma alguma - que suas narrativas fossem menos emocionantes ou fortes ou suas sensibilidades menos poéticos. Longe disso!). Vem daí, inclusive, o apelido que ganhou de engenheiro das palavras. 

Ler João Cabral, em alguns momentos, é como adentrar uma grande fenda no espaço-tempo, uma terra particular onde mesmo o senso comum e o cotidiano são coadjuvantes quando colocados lado a lado com suas ideias e impressões sobre o país e o resto do mundo. 

Se tiverem tempo (está cada vez mais difícil, pelo menos para mim, encontrar tempo disponível para ler) conheçam O cão sem plumas, O rio, Quaderna, A educação pela pedra, Auto do frade e Sevilha andando. E isso só para começar os trabalhos! Aposto o dinheiro que for como irão ficar encantados e não desgrudarão mais de sua obra. Eu mesmo volta e meia o releio, para não perder o costume. 

Ao invés do lirismo, Cabral acreditava em conceitos como objetividade, concretude, racionalidade... E transformou seu projeto literário naquilo que ficou conhecido como poesia profunda, baseada na realidade exterior. Ele passou a vida reclamando de uma enxaqueca que o perseguia e que, no fundo, era uma forma de mantê-lo sempre atento, ligado aos fatos, e não displicente na forma como conduzia seu trabalho. 

É definitivamente uma pena sabermos que não podemos mais contar com uma força da natureza dessas produzindo literatura brasileira de alto nível. É mais um daqueles casos em que você se pergunta: "onde estavam os votantes do nobel de literatura que não reconheceram esse gênio anos atrás?". 

Fica em paz, João! Seus leitores irão relê-lo até o fim dos tempos.