segunda-feira, 27 de abril de 2020

O Sr. conserta tudo


É difícil ser mediador num mundo onde a sociedade decidiu se apaixonar por conflitos, guerras, terrorismo e a eterna ânsia pelo poder. À primeira vista, a sensação que me fica, é a de que essas pessoas se limitam a aceitar a derrota, pois não há quem consiga detê-los (e quando digo eles, refiro-me aos donos do poder, que não se cansam de tramar suas artimanhas, que por sua vez só fazem mesmo é piorar o mundo cada vez mais). 

Contudo, existem aqueles que aceitaram o desafio de confrontar a guerra de frente, por acreditar que ainda é possível manter o diálogo, mesmo em tempos de matança e ódio exacerbado. O embaixador da ONU Sérgio Vieira de Mello foi uma dessas pessoas. 

Timor Leste, Indonésia, Cambodja, Iraque... Sérgio esteve na parte do mundo onde a guerra, mais do que um enfrentamento, é um estilo de vida. Vive-se por ela, acredita-se piamente - em alguns casos - que não se pode ser respeitado ou mesmo feliz sem estar envolvido com ela. E o resultado disso tudo é catastrófico. 

O diretor Greg Barker realizou, em 2009, um documentário sobre Sérgio, mas acreditou que não era o suficiente para explicar a importância desse homem para as novas gerações. Consequência: decidiu transpor essa história para um projeto ficcional junto à Netflix. E ei-lo aqui. 

Primeiramente é preciso um aparte: vi muitas críticas na internet associando a maneira como Sérgio (que é vivido no longa pelo ator Wagner Moura, que por sinal está ótimo, uma das melhores coisas do filme) é ficcionalizado ao agente secreto James Bond. E desde já adianto que não concordo. Para mim, me pareceu uma maneira de diminuir ou o projeto ou a figura de Wagner, que vem se mostrando contrário ao que hoje está sendo chamado no país de "o novo Brasil". Em outras palavras: as pessoas não conseguem mais dissociar o artista do indivíduo.

O filme pega emprestado um estrutura narrativa parecida com a do filme As torres gêmeas, de Oliver Stone. Abre a história com o atentado sofrido na Embaixada de Bagdá, onde Sérgio ficou soterrado por horas até seu falecimento, e depois vão intercalando essas cenas dos destroços com flashbacks de sua vida política, seus embates junto à adversários e o romance com Carolina Larriera (a lindíssima Ana de Armas). Honestamente, não sei se a escolha agradará a todos. Confesso que preferia uma cronologia mais tradicional, principalmente depois de ter visto o excelente documentário. Mas entendo a necessidade de sofisticar a história com um certo requinte. 

Sensacionalismos e distorções à parte, vemos a luta de Sérgio contra o governo norte-americano que quer impor sua política ao Iraque logo após a queda do ditador Saddam Hussein. E o assunto, todos sabem, não poderia ser outro (embora o longa não mencione isso): o petróleo. 

As músicas, embora poucas, são pontuais e muito bem-vindas (é sempre bom ouvir Cartola e Caetano Veloso em qualquer projeto que seja!). A maneira como o diretor intercala o material de arquivo, as notícias dos telejornais, com a trama, também é muito bem construída e ajuda a estabelecer o contexto e diminuir possíveis pontas soltas. E no geral, achei que ele não errou tanto assim. Desde que você, lógico, guarde as devidas proporções entre vida real e filme de cinema. 

A grande mensagem por trás de Sérgio está bem explicada nas palavras do general de Timor Leste que, em determinado momento da trama, o chama de "sr. conserta tudo" (eu assisti o filme em versão dublada, então não sei se na versão original, com legendas, eles usam uma expressão parecida). Sérgio era exatamente isso. Ele acreditava em debates e não em armas, e fez de tudo pela independência do Timor Leste bem como pelo fim das imposições norte-americanas com o Iraque (detalhe: prestem atenção em suas conversas com Paul Brenner, representante da Casa Branca no país; elas são fundamentais para entendermos o clima que pairava por lá naquele período). 

Ao final de quase duas horas de projeção, um sentimento amargo, de derrota. De que o mundo perdeu um grande homem que, infelizmente, sabia onde estava se metendo e pagou o preço. Não é à toa que a sociedade prefere se esconder atrás de frases como "o mundo não é simples" (proferida pelo presidente da Indonésia), pois elas justificam o eterno desejo de destruir, de conquistar, de desrespeitar o próximo. Viramos um mundo consumido pelo poder (político e também de fogo). E enquanto tratarmos tudo sob a ótica da guerra, continuarei descrente, acreditando que a tão sonhada paz não passa de um enorme delírio. 

Logo, como consertar o que prefere permanecer quebrado? Me digam vocês, se souberem...

P.S: se tiverem tempo, após assistirem Sérgio procurem pelo longa-metragem Ao vivo em Bagdá, de Mick Jackson. Acho que ele dialoga de forma interessantíssima com esse filme aqui!

quinta-feira, 23 de abril de 2020

O mundo segundo Anne


Nunca me esqueço de minha irmã, ainda pequena, assistindo o desenho O fantástico mundo de Bobby no SBT e de seus olhinhos brilhando, vidrados na tela da televisão. Bobby era um menino extremamente imaginativo, que transformava a realidade e o cotidiano familiar numa aventura de proporções inimagináveis. Ele era como Calvin das tirinhas de jornal Calvin e Haroldo, capaz de transformar o simples e o corriqueiro numa aventura intergaláctica, numa reunião dos cavaleiros da távola redonda ou mesmo num passeio pela pré-história. Bastava a sua mente assim o desejar. 

Pois bem: em tempos de quarentena por conta do Covid-19 muita gente na internet disponibilizou um pouco de tudo em termos de cultura: filmes completos, peças de teatro, espetáculos de circo, livos em pdf ou epub e até mesmo graphic novels as mais diversas. Eu mesmo acabei por baixar umas 15, dentre elas uma versão extremamente mágica de O diário de Anne Frank. E é preciso dizer logo de cara aos meus leitores: se algum de vocês não conhece ou nunca ouviu falar de Anne Frank, na boa... Você(s) tem sérios problemas! 

O álbum, criado pela dupla Ari Folman e David Polonsky, parte do diário original de Anne (há centenas de passagens do livro presentes aqui) para construir uma narrativa que flerta com o mágico e o surrealismo. E este é, com certeza, o maior legado da obra. Digo isso porque seria chover no molhado simplesmente transpor para outro formato uma história que já é consagrada por si só. E de repetições o mercado cultural já anda cheio. 

Annelies Marie Frank tem apenas 13 anos e já uma garota diferente da grande maioria das garotas de sua idade. Ela é praticamente uma precursora desse feminismo que anda em voga nos dias de hoje e se sente deslocada de praticamente tudo. Não quer se envolver amorosamente - embora nutra uma paixão platônica pelo jovem Peter Schiff - e não acredita 100% nas suas amizades de colégio. Do que gosta mesmo é de ler (e isso faz dela, por si só, uma pessoa esquisita, quase uma ovelha negra dentro da própria família). 

Sua única e verdadeira amizade é Kitty, o diário que ganha de presente de aniversário pelos seus 13 anos e com ele divide o seu melhor, realiza seus maiores desabafos e confissões. Praticamente o transforma num amigo imaginário. Porém, com a chegada do nazismo à sua vida e a de seus pais em 1942, tudo muda e a família precisa fugir (para a Holanda) e depois se esconder num anexo do prédio onde seu pai trabalhava, E é nesse momento que a história se transforma numa espécie de "o mundo segundo Anne". 

Como pertence a uma família judia, Anne, seus familiares e os amigos com quem dividirá abrigo, se tornam aqueles que não podem nada, que não têm direito a absolutamente coisa nenhuma. Não podem nadar na mesma piscina que os demais, não podem andar na rua depois do anoitecer, nem andar de bicicleta, e os livros que eram escritos por eles eram queimados em praça pública. Em suma: tornam-se párias para o restante da sociedade. 

Como consolo resta a Anne o mundo particular o qual cria para sobreviver e as "conversas com o diário", verdadeiro amigo do peito nessas horas. 

A paleta de cores proposta por David Polonsky é encantadora e inebriante. Ele brinca com as cores e sabe usá-las a serviço da imaginação da garota. E haja imaginação! Acredito que a ideia de buscar referências em telas famosas como O grito, de Edvard Munch; O retrato de Adele Bloch-Bauer, de Gustav Klimt e O nascimento da vênus, de Sandro Botticelli, bem como a lembrança à uma fala de Apocalipse now, de Francis Ford Coppola e a menção às pirâmides egípcias tenha partido do roteirista Ari Folman. E o resultado dessa combinação - que vem a calhar - é um caderno de notas cheio de requintes e muito bom gosto. 

É possível para o leitor ir além do discurso amargo do holocausto (o que não faz da graphic novel um instrumento vazio ou mesmo alienado. Pelo contrário). Anne narra as agruras da guerra - a falta de comida, o dia a dia das pessoas que vão para os campos de concentração, pessoas vendendo a localização de judeus, os vizinhos que vê da janela sendo presos, as visitas surpresa dos soldados da SS para vistoriar a casa à procura de foragidos, etc... - e nem por isso deixa de preencher sua vida com "ilusões satisfatórias". Afinal de contas, trata-se de uma adolescente. Mas, bem no fundo, ela também entende que precisa amadurecer rápido, que sua juventude foi roubada pelo regime. 

Logo, quanto antes entender o que está acontecendo, mais cedo ela se sentirá apta a enfrentar toda essa situação (mesmo que entre uma lágrima e outra). 

Ao final das mais de 200 páginas meus olhos marejam de lágrimas e vejo no posfácio do álbum que o nome de Anne Frank - através de sua fundação - está mais vivo do que nunca. E é bom que esteja. Os leitores certamente agradecem. E que o mercado quadrinístico transponha outras obras célebres para este formato também. 

P.S: A cada dia dessa quarentena que vem dando o que falar no país fico mais orgulhoso da formação cultural que venho construindo. Quem diria que o isolamento social propiciado por um vírus iria me proporcionar tudo isso!

P.S 2: uma semana depois de escrever este texto vejo matéria da Folha de São Paulo em que videobloggers estão postando vídeos com versões contemporâneas da história de Anne Frank em seu esconderijo. Só mesmo personagens imortais (como ela) conseguem tal feito!

domingo, 19 de abril de 2020

A seleção natural


É... Não tá fácil, não! Na verdade está piorando...

Na TV, senadores confabulam (leia-se: guerreiam com unhas e dentes), sem chegar a um acordo, pelo chamado contrato verde-e-amarelo que, na prática, exclui diversos direitos trabalhistas outrora adquiridos. É uma terra de lobos comendo lobos a política partidária. Enquanto isso, a sociedade definha entre um aviso de morte por covid-19 e outro. É o agora, atingindo nossos olhos e consciências como um dardo envenenado. 

E mediante toda essa insensatez e falta de escrúpulos achei extremamente enriquecedor - há quem certamente me chamará de maluco - assistir ao longa-metragem da Netflix O poço, do diretor Galder Gaztelu-Urrutia. E digo isso porque, mais do que nunca, precisamos entender (mesmo que vendo na marra) o mundo caótico que ajudamos a construir. 

O poço traz uma plataforma (e nesse sentido, o título em inglês mostrado no IMDb faz bem mais sentido para mim) onde diferentes seres humanos, que se cadastraram para participar dessa suposta experiência, se intercalam, uma dupla por andar. Detalhe: o período em que cada dupla permanece no mesmo andar é de um mês. Após isso, eles vão para um outro, escolhido pelos administradores aleatoriamente. Parece simples de entender, mas o que realmente interessa não é o local, mas a mentalidade de seus moradores. 

E é difícil classificar o novato Goreng (Ivan Massagué) como um protagonista desta trama. Pelo contrário. Ele me parece mais uma engrenagem de um indústria que trabalha com produção em série, como em Tempos Modernos, do sempre genial Charles Chaplin. 

Aliás, qualquer correlação feita aqui com o mercado de trabalho de forma geral é muito bem-vinda. O filme expõe de forma lúcida (sem perder o seu percentual de enigmático) o eterno regime de castas no qual estamos amordaçados desde que o mundo é mundo. 

Há de tudo no poço: homens e mulheres desesperançados por natureza, reféns de seu próprio niilismo; uma mãe desesperada que procura seu filho perdido no meio dos moradores; um fanático religioso que acredita piamente que somente Deus poderá tirá-lo daquele lugar miserável; canibais contemporâneos à espera de que qualquer pessoa morra a qualquer momento para que ele(a) não morra de fome; etc...

Quase ia me esquecendo: o elevador que traz a comida diária para os moradores do poço é o retrato do que existe de mais vil (e não menos verdadeiro) no que conhecemos como sociedade contemporânea. Ali se vê claramente a mentalidade egoísta do homem, incapaz de enxergar além de seu próprio umbigo e convicções. Quem comeu, comeu; quem não comeu, que reze, peça a Deus por dias melhores. 

Neste momento a trama ganha uma conotação quase darwiniana, pois a seleção natural que se constrói diante de nossos olhos é sórdida, diria mesmo macabra (entendo perfeitamente os espectadores que classificam o longa dentro do gênero terror). Trata-se de uma luta inumana por aquele que deveria ser um direito básico universal garantido ao homem: o de sobreviver. E, no entanto, percebemos que nossa existência aqui não tem nada de garantido. Não há certezas no mundo dos homens. Apenas possibilidades e a maioria delas injustas.

Enquanto a sociedade procura por heróis de plástico e líderes tendenciosos a quem possam seguir inutilmente, como cachorrinhos de madame, o mundo real - aquele que nunca quisemos encarar de fato, frente a frente, pois é mais fácil ser covarde ou demagogo - nos coloca uns contra os outros e ainda disponibiliza as armas, para que nos matemos mais rápidos. 

Eu já prevejo alguns leitores entediantes e repetitivos dizendo: "que crítico maquiavélico esse rapaz! não apresentou nenhuma notícia feliz ou sinal de esperança para o futuro" e eles podem se manifestar à vontade. Mas me parece à primeira vista impossível uma solução para o mundo enquanto empurrarmos o lado duro da vida para debaixo do tapete. O contrário disso sempre me soou como hipocrisia e dela, que conheço de cor e salteado, eu já ando cheio. Mesmo.

P.S: desde Mãe!, de Darren Aronofsky, um filme não mexia tanto com a minha cabeça como esse aqui. E a minha cabeça precisava de uma sacudida forte.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

O pai do romance policial brasileiro


...e a semana negra continua! Meu Deus!!! Não bastasse o Moraes Moreira, agora mais essa. 

Nem bem abri o meu perfil no facebook e me deparo logo de cara com a triste notícia do falecimento do escritor Rubem Fonseca, aos 94 anos, de infarto, em sua residência no Leblon. A matéria sobre sua morte está no blog do colunista Lauro Jardim, do jornal O Globo. Uma pena! 

É difícil começar a falar sobre Rubem, pois ele foi o responsável direto por eu começar a me interessar por gêneros literários. Quando iniciei minha vida de leitor, aos 13 anos, por volta de 1988, 1989, eu escolhia minhas leituras de forma um tanto aleatória. Muitas vezes uma capa psicodélica ou o nome exótico de algum autor (por exemplo: Salman Rushdie, mestre por trás do polêmico Versos satânicos) chamava mais a minha atenção do que a sinopse do livro. Vocês sabem... Coisa de adolescente! 

Da guerra fria e a espionagem de Jack Higgins às fábulas de Esopo, da pirotecnia de Murilo Rubião às tragédias cariocas de Nelson Rodrigues (o anjo pornográfico), das tirinhas de jornal - minha favorita era o Recruta Zero - aos contos de João Antônio... Até que me deparo com Agosto, obra síntese da bibliografia de Rubem, que traz como pano de fundo o suicídio do presidente Getúlio Vargas. 

Pronto. Eu não queria mais outra vida. 

Vieram O cobrador, O selvagem da ópera (sobre Carlos Gomes, criador da ópera O Guarani), Feliz ano novo, Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (que eu venho procurando nos últimos meses para reler, sem sucesso), O caso Morel, A grande arte (que foi adaptado aos cinemas pelo diretor Walter Salles), Os prisioneiros, A coleira do cão, Lúcia McCartney, Diário de um fescenino, Bufo & Spallanzani e muito mais... E todos, sem exceção, me causando uma excelente impressão. 

Quando me peguei fazendo um grande apanhado crítico de sua obra, me dei conta de estar diante de um artífice do mundo criminal. Digo mais (embora leitores mais antigos certamente queiram me desmentir): considero Rubem Fonseca o pai do romance policial brasileiro. Ou, no mínimo, aquele que popularizou o gênero em nossas terras com maestria. 

Dois de seus protagonistas se consagraram entre seus fãs mais apaixonados: o comissário Mattos, com a úlcera que vivia perseguindo-o, e o criminalista Mandrake (que rendeu até uma série televisiva da HBO com o ator Marcos Palmeira na pele do personagem). Entretanto, mesmo seus personagens menores eram instigantes. E Rubem era fascinado pelos assuntos e temas os mais mórbidos e fora da zona de conforto. Era capaz de falar sobre prosbocídeos (a família dos elefantes) com a mesma naturalidade com que falava de pornografia ou qualquer outra temática mais usual. 

Em outras palavras: mais mestre da pena do que isso, impossível!

O último livro dele que li foi o inusitado O romance morreu (e olha que no compêndio de colunas e crônicas havia espaço para falar até sobre o cantor Michael Jackson) e ele me deixou, em alguns momentos, com a sensação de que o formato anda realmente flertando com a morte - ou o desaparecimento. Mas, lógico, que o título é uma grande provocação. 

Rubem Fonseca é mais um autor fantástico que entra, infelizmente, para aquela lista de ficcionistas em que só nos sobrou relê-los. E isso me parece sempre muito pouco. Contudo, é também o momento de não deixarmos que seu nome morra ou caia no ostracismo. Eis uma boa hora para redescobrirmos o autor, que nos últimos anos andou mais recluso do que nunca (ele nunca foi um exemplo de popularidade, raramente concedia entrevistas, etc) e não teve boas críticas em suas últimas obras.

Ou seja: se você não conhece o seu trabalho, agora é a hora. E caso conheça, como eu, releia-o. Garanto que não vai se arrepender. Palavra de fã de longa data. 

Vai com Deus, mestre!

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Agora pode chorare


É uma notícia ruim depois da outra nesse último mês!

Abro a página do youtube (sempre ele!) e escrevo no campo de busca Moraes Moreira. O primeiro resultado que vejo é uma coletânea, Moraes Moreira - 20 super sucessos. Começo a ouvi-las, viajando no tempo. E logo as lágrimas descem, e fico pensando: "e a MPB perdeu toda essa musicalidade, toda essa capacidade de se reinventar. Que triste!". 

Em meio a tantas mortes por conta da epidemia do novo Covid-19 sou surpreendido pela amarga notícia de que o cantor e compositor Moraes Moreira faleceu hoje, vítima de infarto do miocárdio, em sua residência na Gávea, Rio de Janeiro, aos 72 anos. 

Moraes vai deixar saudades em minha formação cultural. E muito por conta do grupo Novos Baianos, do qual foi um dos fundadores. Espere! Você não sabe quem foram os Novos Baianos? Então pare de ler este texto agora, pois ele não é para você. Os Novos Baianos é, para mim, uma das maiores revoluções da história da música popular brasileira. 

Se existe uma palavra que resuma Moraes e os Novos Baianos, essa palavra é sincretismo. Ele foi o homem das misturas sonoras. Provou que ritmos até então considerados antagônicos em nosso cancioneiro podiam conviver (mais: se complementar) de forma brilhante. E foi o que fez. Fundiu rodas de samba, rock e frevo. Associou a baianidade às guitarras elétricas da contracultura americana. Fez do baião e do choro irmãos musicais. 

Em outras palavras: pegue tudo o que essa geração iphone chama hoje em dia de mashup... Moraes Moreira foi um dos precursores disso tudo. 

Em 1968, plena era negra do militarismo, com AI-5 e o que mais você pudesse imaginar de opressivo e retrocesso, ao lado de Paulinho Boca de Cantor, Luiz Galvão, Pepeu Gomes e Baby Consuelo, abriram as portas do chamado pós-tropicalismo. O show  "Desembarque dos bichos depois do dilúvio", em Salvador, foi o pontapé desse inconformismo, dessa revolução sonora. Dois anos depois, o grupo gravava É ferro na boneca, e o restante... É lendário!

Mas não pense que ele se resume a sua participação ao grupo (que trilhou sua estrada até 1975). Não, senhor! Não dá pra esquecer de "Santa Fé", trilha sonora da novela da Rede Globo Roque Santeiro, e os sucessos carnavalescos - que cantou no trio elétrico de Dodô e Osmar - "Pombo correio", "Vassourinha elétrica" e "Bloco do prazer". Um criador de hits, sem dúvida!

Recentemente, Moraes andou alfinetando sua colega Baby por conta de declarações "conservadoras" dadas por ela (que hoje em dia é pastora evangélica) a respeito de um espetáculo teatral que homenageia a banda que marcou os anos 1970. E é triste que ele tenha falecido justo agora, pois tenho certeza que muita gente rancorosa (e religiosa) irá dizer que ele pagou pelo que disse à Baby. Infelizmente o país anda cheio de demagogos e ressentidos. Mas não acredito que isso macule o legado que ele construiu. 

Se eu só pudesse salvar uma música de todo o seu cancioneiro, eu provavelmente morreria prematuramente. Digo isso porque não consigo ouvir Acabou chorare (álbum eleito pela revista Rolling Stone em 2007 o melhor álbum brasileiro de todos os tempos) sem pensá-lo dentro de um contexto. Cada faixa, isoladamente, não representa o mesmo para mim. 

Antes do começo da pandemia, há pouco mais de um mês, o músico, que tem mais de 40 discos gravados, vinha preparando um novo projeto de inéditas (queria que um grupo de cantoras interpretasse suas canções). Infelizmente ficou na vontade e os fãs só podem agora imaginar o que poderia ter saído disso. 

Certamente algo genial. Como ele. Valeu, mestre! Por tudo!

domingo, 12 de abril de 2020

Catarse alucinógena


Gosto de Hunther S.Thompson. Mesmo. Lembro-me da primeira vez que eu li um livro de sua autoria, comprado num sebo no Largo do Machado. O nome da obra em questão era Screw Jack e me deparei com um dos relatos literários mais alucinados que eu tinha lido até então. O tempo passou e eu corri atrás de outros exemplares de sua bibliografia. E acreditem: aqui no Rio de Janeiro, assim como o poeta americano Charles Bukowski, Thompson não é um autor fácil de ser encontrado. Mas achei outros. A duras penas, mas achei. Dentre eles, o mítico Medo e delírio em Las Vegas

No ano seguinte à minha leitura do livro - era uma versão pocket da LPM - fico sabendo da existência da adaptação cinematográfica realizada pelo diretor Terry Gilliam (de quem sou fá há anos, desde os tempos do Monty Python!). E começa então uma nova corrida, desta vez para assistir o fatídico filme. E o tempo passou, passou, passou, e o filme entrou para minha lista sempre cheia de "filmes a serem assistidos um dia". 

Passaram-se quase 12 anos e eis que, finalmente, e graças à quarentena do coronavírus, eu encontro o filme no catalógo do Now disponibilizado gratuitamente entre um montante de longas-metragens os mais diversos. E desde já adianto: valeu a pena esperar. 

Medo e delírio em Las Vegas traz Raoul Duke (Johnny Depp, num dos muitos alter-egos de Thompson) acompanhado de seu advogado, o Dr. Gonzo (Benicio del Toro), numa viagem rumo à terra dos cassinos e da perdição para cobrir uma corrida de motocross. Mas essa, meus caros leitores, é a última coisa que Raoul e seu amigo farão nessa terra onde "o que acontece por ali, fica por ali mesmo". 

O que Raoul e Gonzo apresentam para os espectadores - de preferência, os de mente mais aberta - é um dos retratos mais surreais que eu já vi até hoje da dependência química. E ambos são viciados no que quer que seja, da cocaína ao éter, passando por comprimidos e o que mais você puder imaginar. Eles enlouquecem literalmente, têm visões de todo tipo, volta e meia se dizem perseguidos por forças obscuras e por inimigos imaginários, na melhor faceta Gilliam de ser (afinal de contas, se trata de um mago das imagens - e quem quiser se inteirar mais pela carreira do diretor, procure por O mundo imaginário do Doutor Parnassus e 12 macacos). 

E dessa grande catarse alucinógena, repleta de reviravoltas as mais inverossímeis, vemos como pano de fundo a verdadeira América. Aquela que gosta de se vender para o resto do mundo através de seus heróis - Lincoln, Kennedy, etc - e seu discurso de vencedora, mas que adora varrer para o tapete suas desilusões, seus vícios e seu verdadeiro modo de vida. 

A dupla Depp/Del Toro funciona bem durante toda a jornada, e me peguei a todo momento perguntando o que foi que aconteceu com o ator de Edward mãos de tesoura e Piratas do Caribe nos últimos anos. Onde foi parar toda essa ousadia e coragem para interpretar personagens alucinados? Engraçado. E tem fãs que dizem que artistas não desaprendem a atuar. Às vezes, eu sinceramente tenho as minhas dúvidas. 

A mistura Thompson + Gilliam + Depp não só fundiu a minha cabeça de forma permanente, à procura de referências as mais loucas e diversas, como também me deixou com saudades dessa velha hollywood (o filme é de 1998, logo do século passado).

Estamos tão viciados em tecnologias de última geração, óculos 3D enfiados na cara o tempo todo, o vício exorbitante por franquias excessivas e remakes e spinoffs vazios, que perdemos completamente a noção do que significa ser original nos dias de hoje. E até quando o quesito em questão é adaptação, perdemos o gosto por boas histórias, cheias de nuances e tramas rebuscadas, e nos rendemos ao gratuito dos quadrinhos e ao vazio da cultura pop superficial. Uma pena! 

Em outras palavras: Medo e delírio em Las Vegas é cinema que vem desaparecendo com o tempo e ninguém dá a mínima, pois a alienação e a barbárie ditam as regras do mercado cinematográfico atual. Mas se você, como eu, cansou desse óbvio ululante, dessa zona de conforto incômoda e repetitiva, então, meu amigo e minha amiga, essa sétima arte aqui é pra você. E mais não digo.

Pois a decisão de descobri-la é sua, e somente sua...

quarta-feira, 8 de abril de 2020

O pajé do teatro nacional


Primeiramente: longa vida ao mestre, sempre!

Leio em matéria do blog de Miguel Arcanjo no UOL entretenimento que o grande gênio do teatro brasileiro, José Celso Martinez Corrêa, completou neste 2020 83 anos. E a priori acho até pouco (já o considerava na casa dos 90 anos! enfim...), tamanha a sua representatividade para a história das artes cênicas nacionais. 

É difícil (digo mais: impossível) falar de teatro no Brasil sem mencionar o nome deste senhor que, por mais que seus detratores tentem, permanece um poço de lucidez e um marco de nossas artes. Certa vez li num livro sobre indústria cultural que os grandes artistas de nosso tempo e de todos os tempos são lembrados pela capacidade que têm de permanecerem relevantes e lúcidos. No caso de Zé Celso, acredito que a palavra relevância funcione como um adjetivo para seu talento, tamanho o seu papel na cultura desse país (que adora, infelizmente, virar as costas para a sua própria cultura). 

E se você, estudante, leitor ou interessado em teatro, não conhece ou nunca ouviu falar, pelo menos, das montagens de Zé Celso para O rei da vela (obra antropofágica do modernista Oswald de Andrade) e Roda viva (peça cult de Chico Buarque), que ganhou uma nova versão nos teatros recentemente, você não merece - mesmo! - terminar de ler este humilde artigo. 

Zé Celso, mais do que um encenador teatral e um reinventor de histórias, é o melhor exemplo de provocador que eu conheço neste país. Capaz de enfrentar as maiores guerras para defender suas ideais, vistos por muitos como "controversos". Nunca me esqueço de um documentário que assisti sobre a sua carreira artística, em que ele relacionava o poder estatal com o "foder cultural", numa analogia que deixou muitos espectadores dentro da sala de cinema de cabelo em pé, pensando: "quem é esse depravado?". 

A última grande polêmica que ouvi envolvendo ele foi o processo em que se meteu contra o empresário Sílvio Santos por conta da localização do Teatro Oficina em São Paulo. Uma discussão que envolvia até a possibilidade de demolição do espaço (o que seria, a meu ver, uma barbárie!). Contudo, isso não significa que Zé Celso esteja aposentado. Longe disso! Prova viva disso foi seu espetáculo Canudos, visto como visionário por grande parte da classe teatral, e que rendeu inclusive uma versão em DVD - feito raro no formato. 

Como muitos outros brasileiros lúcidos, Zé também se encontra em quarentena por conta da avalanche promovida pelo novo Covid-19. Mas podem ter certeza: sua mente deve estar fervilhando de novas ideias (e provocações). Podem dar tempo ao tempo e esperar a poeira baixar, que vem coisa boa aí. 

E, enquanto a poeira não baixa, uma certeza: certos artistas só envelhecem mesmo no papel. E quando se trata, então, de um pajé do teatro... Sai de baixo!

sábado, 4 de abril de 2020

O quarto reich sempre esteve por aqui


Os puristas estudiosos de história volta e meia encrespam com certas liberdades poéticas presentes em adaptações cinematográficas e televisivas de momentos históricos específicos. E no caso da Segunda Guerra Mundial e o holocausto em particular, eles vão além, chegando a ficar de cabelos em pé. Na boa... O problema é única e exclusivamente deles. E, além disso, a sétima arte nunca se viu engessada unicamente a discursos literários e acadêmicos. Mais: ela se permite ousar toda vez que a situação se apresente. 

Logo, foi com um enorme prazer que assisti a primeira temporada de Hunters, série de tv da Amazon criada por David Weil, e constatei se tratar de uma grande e divertida ousadia. 

Hunters conta a história do jovem judeu Jonah Heidelbaum (Logan Lerman, da franquia Percy Jackson), que vê a avó ser assassinada diante de seus olhos, sem que ele esboce qualquer reação, e descobre que ela pertencia a um grupo de caçadores de nazistas, capitaneado pelo milionário Meyer Offerman (Al Pacino, em seu regresso à tv depois de 17 anos). 

Eu sei... Parece simplista resumir a série num raso parágrafo de cinco linhas. E é. Contudo, Hunters está tão cheia de desdobramentos e reviravoltas que é difícil, à primeira vista, resumi-la em poucas palavras. Trata-se, no final das contas, de um grande ensaio sobre a América contemporânea - leia-se: pós eleição de Donald Trump - e o fascismo que nunca deixou de estar entre nós, embora a segunda guerra já tenha acabado há mais de 70 anos. E olha que a narrativa televisiva se passa em 1977!

O grupo que acompanha Jonah e Meyer é bastante eclético e reflete bem a estereotipia que convive a duras penas na terra do Tio Sam. Há o ator decadente, que sobrevive dos poucos fãs que ainda se lembram dos tempos em que ele era uma grande promessa de hollywood; uma versão um pouco mais engajada da musa da Blaxploitation, Cleópatra Jones; um ex-soldado da guerra do vietnã, ainda traumatizado pelos horrores que viu e perpetrou durante o conflito e até mesmo uma ex-noviça revoltada, bem na linha Grindhouse de Quentin Tarantino e Robert Rodriguez. 

E não bastasse tudo isso os produtores da série - dentre eles, o fenômeno da atualidade, Jordan Peele - ainda debocham de tudo o que podem e não perdem a chance de usar referências do universo quadrinhos e da cultura pop em geral. Fãs da Marvel, deem uma chance a esse programa! Vocês não vão se arrepender!

Para aqueles que esperam algo mais visceral e contundente, na linha A queda: as últimas horas de Hitler ou A lista de Schindler, procurem outro formato. O que está em jogo aqui é uma grande fabulação, um desejo de zoar também com a própria história passada (e os conservadores vão reclamar, como sempre!). Já se você curtiu a maneira como Tarantino recontou a jornada de Hilter em Bastardos inglórios, assistam até o último episódio pois o desfecho é avassalador.

Desde que li a respeito do projeto pela primeira vez, fiquei interessado na premissa (e, lógico, pela presença de Pacino, o eterno Michael Corleone) e ansioso pela estreia. E ratifico: Hunters é tudo aquilo que eu esperava. Contudo, é preciso ter mente aberta ao assisti-lo, já que a série não se prende a normatismos e discursos literais. Como disse no primeiro parágrafo, "ela se permite ousar". E ousadia é tudo o que o cinema americano não tem feito nos últimos anos. Por isso vem perdendo espaço dia a dia para a televisão. 

O quarto reich proposto pela série sempre esteve por aqui. Não é algo que simplesmente desapareceu por conta da derrota dos nazistas. Não, meus caros leitores! O fascismo sempre se esconde e procura uma nova oportunidade de tomar o poder no futuro. E assim será também depois que a nossa geração não estiver mais por aqui, ad aeternum.

Logo, a decisão de ler essa história de maneira emburrada, enfadonha, resmungando de tudo o tempo todo ou sabendo rir da própria desgraça (e aprendendo com isso) é só sua. Então, pelo amor de Deus, escolham com sabedoria. 

A vida, vocês sabem, é uma só e nunca dura o tempo que nós gostaríamos que durasse...