quarta-feira, 26 de abril de 2023

O hoje nunca pareceu tanto com aquele ontem


Parece loucura dito por um cara que começou a ler com míseros 10 anos de idade e hoje, mais de três décadas depois, lê praticamente de tudo - de bula de remédio à relatório policial -, mas a verdade é que nunca havia lido 1984, clássico da ficção científica escrito por George Orwell e publicado em 1949. Conhecia a fama da obra através de relatos de críticos literários e celebridades e assisti por duas vezes a adaptação cinematográfica feita por Michael Radford e que traz o ator John Hurt na pele do protagonista. Mas o livro original nunca havia encarado de frente. Até semana passada. 

E peço desculpas por isso aos amantes da literatura.

Enfim... Hoje, após terminar a leitura da última página desse clássico atemporal, me pego perguntando a mim mesmo, perplexo, sentado no sofá da sala: "como pude esperar tanto tempo? Eu devia estar louco, só pode! Não existe uma razão plausível para tanto adiamento."

1984 é, definitivamente, uma obra-prima irretocável, secular, de uma grandeza ímpar. E mais: a prova viva de que a expressão distopia não se resume apenas à esfera literária. Estamos vivendo de fato tempos negros, quase apocalípticos e Orwell, maliciosa e inteligentemente, enxergou tudo isso com décadas de antecedência. E ainda tem gente que quer condenar ou cancelar um gênio desses!

Acompanhamos a saga de Winston Smith em meio a um mundo, a uma realidade melhor dizendo, indigesta. À sociedade não é dado o direito a pensar ou mesmo deter qualquer tipo de conhecimento. Memória, então, esqueçam! Tudo é minimamente controlado pelo Grande Irmão e seus asseclas. 

A novilíngua muda a forma de falar, de se expressar, o tempo todo. No final das contas nós, seres humanos, não passamos de cobaias ou experimentos incompletos que outra coisa não esperam senão o abate ou a eterna escravidão. Quem não é leniente com os fatos, quem não obedece o sistema com unhas e dentes, paga com a vida e antes disso é torturado, para servir de exemplo aos demais. 

E mesmo assim Winston escolheu pensar, investigar o passado, se apaixonar, em suma, fazer suas próprias escolhas. Resultado: precisa ser apagado da história para que sua decisão não influencie os outros, não repercuta. Em outras palavras: ele precisa ser contido, pois do contrário virará um símbolo da rebeldia e da resistência. E o mundo acredita piamente que divergências tornam a vida pior. Ponto final. 

Agora pare e pense em todos aqueles filmes hollywoodianos que você viu nos últimos, sei lá, 20, 30 anos, e que abordaram de alguma forma o futuro (ou um possível futuro) e se pergunte quantos tomaram o livro de Orwell como referência... Sim, ele é atual nesse nível. E não fica datado um segundo sequer, tendo em vista que o mundo real caminha exatamente para o mesmo ponto com as mesmas consequências catastróficas. É, eu sei... Parece mediúnico (e talvez até seja).

Há tempos não lia ficção científica desse nível e após terminar essa leitura avassaladora tomei uma decisão radical: preciso retomar meu convívio com o gênero, com as distopias, os ciberpunks, os William Gibsons e Isaac Asimovs. O mundo ganhou contornos macabros na última década e é preciso estar atento aos sinais. Não custa nada e ler - sobre esse ou qualquer outro assunto - não faz mal a ninguém. 

Quer dizer: se você não perdeu a lucidez ou não se entregou à ignorância (como o sábio Orwell e este que vos escreve) realmente não. Agora é com vocês. Deem uma chance a esta obra-prima. Detalhe: é mais fácil de encontrá-la do que parece, mesmo com tanta gente inculta detonando ela quase todo dia. E no final das contas a ideia que me ficou na cabeça é a de que o hoje nunca pareceu tanto com aquele ontem. E isso é por demais terrível para simplesmente deixarmos pra lá.  


sexta-feira, 21 de abril de 2023

Nina (ou 20 anos é tempo demais).


Muito antes da expressão playlist ganhar contornos de objeto pop meu pai adorava fazer coletâneas de músicas em fitas cassetes e eu - meros 12 anos nessa época - ficava de perto observando-o, tentando aprender o esquema. Ele inclusive pedia emprestado vinis importados a seus colegas de Petrobrás e saía à caça de raridades, artistas ímpares, donos de vozes insuperáveis e únicas (me pai era fanático por grandes vozes).

E assim descobri figuras fenomenais da indústria fonográfica como Marvin Gaye, Barry White, Carole King, Aretha Franklin, Joe Cocker, Antônio Marcos, Belchior, Gonzaguinha, Gal Costa, Os novos baianos, Os mutantes, etc etc etc (e haja etc).

Contudo, houve uma vez em que ouvi, em êxtase, uma voz diferente de absolutamente tudo que já ouvira até então. A música em questão era "Feeling good" e semanas depois me deparo com a foto da cantora numa revista antiga: uma mulata que mais parecia um furacão, dona de uma sonoridade assustadora. Virei fã na mesma hora. Seu nome: Eunice Kathleen Waymon. Quer dizer, Nina Simone.

Hoje, para a infelicidade dos fãs e de qualquer um que respeite a boa música, a indústria fonográfica completou 20 anos sem Nina. E isso é simplesmente imperdoável. A mulher que praticamente revolucionou a black music (pelo menos, para mim) continua tão viva em minha mente - e meus ouvidos - que chega a doer. 

Até hoje quando uma canção sua toca nas rádios ou nos streamings eu mantenho a mesma reação. Fico estupefato com a sua capacidade de fazer algo tão grandioso parecer tão simples, tão fácil. E então me dou conta de que não é e sim ela, Nina, que me enganou de novo. 

Ela é absurdamente gigante e sem fazer esforço. 

Não consigo imaginar minha existência, daqui até o fim da vida, sem ouvir clássicos como "Sinnerman", "Don't let me be misunderstood", "I put a spell on you", "Ain't got no, I got life", "To love somebody", "Mississippi goddam" e tantas outras. E não somente a voz. Sua presença de palco e posicionamento político sempre foram impactantes ao extremo. 

Nina teve uma vida difícil, enfrentou tudo e todos e muitos tentaram destruir sua carreira ao preço que fosse. Nenhum deles conseguiu. E ela, por sua vez, manteve irretocável seu legado para todo o sempre. E se você, caro leitor, por um descuido ou desvario não conhece a obra de Nina Simone e precisa de um farol para começar a procurar por ela em algum lugar, recomendo o extraordinário documentário What happened, Miss Simone?, projeto da Netflix dirigido por Liz Garbus. Em uma palavra: visceral. 

Aposto que depois dessa experiência você vai ficar viciado ou, no mínimo, intrigado. Como eu fiquei, vendo meu pai fazendo aquelas fitas (que passei a escutar escondido dele antes de chegar do trabalho).

P.S : 20 anos? Sério? É tempo demais. E o pior: já foi tanta gente boa embora depois dela e a renovação... putz! sofrível. A música mundial definha dia a dia e os imbecis viciados em dubstep e playback ainda aplaudem. 


quarta-feira, 19 de abril de 2023

Sr. Superman


São 85 anos. E permanece não somente conservado - como bom kriptoniano que é - como também relevante na cultura pop. O Superman, aniversariante de hoje, continua atiçando a curiosidade de milhões de fãs ao redor do mundo. E a cada releitura feita ganha novas direções e questionamentos. 

Ele foi um pouco de tudo nessa longa jornada: Clark Kent, Kal-El, o algoz do Lex Luthor (e olha que eles até foram meio amigos naquela série Smallville, que o SBT exibia nas tardes de domingo!), foi affair e até marido - em algum momento - da Lois Lane, namorado da Lana Lang, repórter do Planeta Diário, amigo do Jimmy Olsen, enfrentou Zod e seu exército, viajou ao espaço em busca de respostas quando a vida dele entrou em depressão, encarou Brainiac e Darkseid de frente, foi membro da Liga da Justiça (tá, eu sei... com um bate-boca aqui e ali com o Batman, mas tá valendo), disputou uma corrida com o Flash para saber quem era o homem mais veloz, foi morto pelo Apocalipse e trazido de volta numa saga histórica cujos gibis viraram praticamente cults...

E também foi odiado, mal escrito, mal adaptado, revisto, remontado, transformado em alguns momentos naquilo que não é, refém de atores canastrões que deram a vida à ele, etc etc etc.

Desde sua primeira aparição na Action Comics 1 em 1938 a criação da dupla Jerry Siegel e Joe Shuster vem dando o que falar. Teve até uma versão vermelha/comunista que fez um enorme sucesso na Rússia (para desgosto dos americanos fanáticos por suas obras). E atualmente James Gunn, chefe-mor do departamento de criação da DC Comics, promete um novo longa, Superman: legacy, aguardado (e também temido) por muitos fãs ansiosos por um novo destino para o herói.

O poder da indústria dos quadrinhos na sociedade contemporânea é realmente impressionante. Se nem a kriptonita conseguiu destruir a essência do Sr. Superman, nem o transformou num ancião decadente, cheios de vícios e lamentações, pergunto-me aqui o que conseguirá. Provavelmente nada.

Os mais chatos volta e meia o acusam de ter um senso de moralidade exagerado, gostariam de vê-lo quebrando as regras de vez em quando. Acham que ele deveria ser mais como o cavaleiro das trevas, seguindo a premissa dos "fins justificam os meios" na hora de combater o crime, mas ele simplesmente não consegue e sua própria identidade secreta e personalidade ímpar já deixam claro isso. 

E tudo bem. São comic books, não tratados filosóficos sobre a psique humana, pelo amor de Deus! Parem de problematizar tudo! Até porque ele completará seu centenário em 2018 - se Deus quiser - não dando a menor trela aos haters e xiitas que andam tornando a cultura pop cada dia mais chata e radical.

Super, dane-se essa gente insuportável! Seja você mesmo e ponto. Ah! E feliz aniversário.    

domingo, 16 de abril de 2023

O fim de uma era na Broadway


Foi tanto tempo em cartaz - mais especificamente 35 anos ininterruptos - que quando o famigerado dia chegou nem os fãs mais ardorosos acreditaram. Refiro-me, claro, à O fantasma da ópera, musical de Andrew Lloyd Weber que chega à sua derradeira apresentação na Broadway hoje.

E, of course, deixando órfãos e chorosos uma multidão de fãs. 

O musical, que é inspirado no clássico francês homônimo escrito por Gaston Leroux, é desses trabalhos que a humanidade em sua grande maioria sempre tratará como obra-prima ao longo dos séculos. E mesmo quem não morre de paixão pela história de amor obsessiva de Erik (o fantasma que habita o subsolo da ópera) pela jovem solista Christine ainda assim reconhece os méritos da história e tudo que ela fez pela história do teatro e dos musicais. 

Lembro de ler o romance quando tinha meus 16 anos e fiquei tão encantado ao chegar à última página que corri para uma videolocadora perto de casa (sim, faz tempo isso!) à procura de uma adaptação para os cinemas. Mas ainda não era a versão musical que consagrou a trama de uma vez por todas. 

Weber fez um trabalho magistral e, em muitos aspectos, praticamente recriou a narrativa com um olhar mais moderno, despojado. Quem nunca viu o espetáculo, não sabe o que está perdendo. Para mim pelo menos, é junto com Cats e Alô, Dolly os maiores fenômenos da história da Broadway.

Há uma versão para a sétima arte de 2004 dirigida por Joel Schumacher que eu adoro e volta e meia reassisto quando passa na tv a cabo. Gerard Butler - o Leônidas de 300 - interpreta o fantasma e Emmy Rossum vive Christine. Procurem! A direção de arte, por sinal, é de uma elegância assustadora. 

Mas como o assunto aqui é a montagem teatral que deixa os palcos (para a tristeza dos fanáticos), pergunto-me o que a Broadway fará para virar essa página gloriosa e onde encontrará um outro texto que repercuta por tanto tempo. Tarefa árdua, não tenham dúvidas! 

O mercado de espetáculos há anos não é mais sombra do que já foi na era de ouro e não faz muito tempo precisou até recorrer ao Homem-Aranha para conseguir fazer bilheteria (e teve muito espectador que não gostou nada da ideia). Isso fora o estrago que a pandemia da covid gerou 2 anos atrás, quase falindo estabelecimentos. 

Mas eles devem saber o que fazem, não é mesmo? Do contrário não teriam tomado essa decisão. De certeza mesmo, apenas uma: é o fim de uma era que certamente vai deixar muitas saudades. 


quinta-feira, 13 de abril de 2023

Quem é esse cara?


São os últimos dias da exposição The art of Banksy: "without limits" - uma exibição não autorizada no Shopping Eldorado em Pinheiros (SP) e do que pude ver fiquei ainda mais intrigado com a figura misteriosa e provocadora do artista que mais repercutiu nas artes visuais nos últimos anos. 

Ainda continuamos a nos perguntar quem é Banksy e porque ele permanece avesso a mostrar sua identidade ao mundo. Para ele, o que interessa de fato é o seu trabalho e nada mais. Pouco importa se é homem, mulher, gay, trans, branco, negro, asiático, rico, pobre, etc etc. 

Suas intervenções nas ruas das principais capitais do mundo continuam dando o que falar. E nunca me esqueço daquela cena que vi no you tube em que uma tela dele, que foi vendida num leilão, logo após ser arrematada por uma fortuna foi destruída diante de uma multidão de incrédulos. Assim é Banksy, perturbador, irrequieto, rebelde por natureza.

No extraordinário documentário Exit through the gift shop até tentam desvendar sua persona bem como suas decisões e escolhas polêmicas de carreira, mas no final acabam apenas por alimentar ainda mais a sua aura de mistério. Ele permanece uma incógnita por natureza, e é provável que continue desse jeito até o fim da vida.

Ele diz na abertura da mostra em São Paulo: "quero viver num mundo criado pela arte, e não apenas decorado com ela". Estaria ele se colocando, como indivíduo, em segundo plano? Alguns críticos de arte certamente diriam: é possível.  

Classificá-lo apenas como grafiteiro, como muitos já o fizeram, é perda de tempo. Banksy está muito além disso. Sua obra ridiculariza, debocha, de personagens consagrados da cultura pop (até o Ronald McDonald virou piada nas mãos dele), ironiza guerras, propõe levantes e manifestações sociais, questiona políticos e artistas famosos, em suma: pretende virar a ordem mundial de ponta a cabeça, se necessário. 

Em alguns momentos eu o vejo até como um intelectual das imagens, propondo novos conceitos e atitudes. Mas depois penso comigo: "ele jamais se veria na figura de um intelectual. Está sempre espezinhando e divergindo dessa gente. Não. Não mesmo". 

Quem ainda não foi conferir a expo, corra! O sr. "não me encaixo em padrões" já, já sai de cartaz e depois você vai ficar com cara de tacho, resmungando porque não viu pelo menos um fragmento da rebeldia dele. E pior: vai continuar perguntando "quem é esse cara, afinal de contas?".

Para quem quiser saber mais sobre a exposição (que vai até 30/04) entre em: https://www.artofbanksy.com/saopaulo


segunda-feira, 10 de abril de 2023

50 anos sem Picasso


O tempo continua voando. E me assustando.

Os jornais e tabloides me informam que o pintor espanhol Pablo Picasso completou este ano 50 anos de sua morte e imediatamente eu me lembro de Guernica (1937), sua tela mais famosa, sobre a guerra civil. Tenho tara por esse trabalho desde moleque. Para mim, um dos maiores da história das artes plásticas. 

Picasso é amado e odiado com a mesma intensidade até hoje. As feministas não perdem a chance de atacá-lo, sempre que podem. E o pintor contribuiu - e muito! - para isso. Pela maneira como tratou as mulheres com quem manteve relacionamento ao longo da vida. Ele praticamente as devorou. 

Elas, as feministas, o vêem como retrato máximo da misoginia dentro da cultura pop. É o problema dos gênios: passam dos limites, se acham deuses em todos os aspectos de sua vida. Acham que podem fazer e acontecer, menosprezar e usar os demais. Acabam atraindo para seu legado artístico e pessoal a pecha de, entre outras coisas, monstros ideológicos. 

Em 1996 o diretor de cinema James Ivory realizou Os amores de Picasso e chamou Anthony Hopkins para interpretar o pintor mais controverso da história. Quem conseguir encontrá-lo em algum streaming, assista-o. Trata da única mulher que decidiu enfrentá-lo, que não se submeteu a seu poder e intransigência. É interessante a proposta. 

Lembro de ler um pequeno volume biográfico sobre ele, da  editora LPM. Sua vida era tão performática e polêmica quanto sua arte. Picasso não era apenas um pintor cubista. Não. Era um ser humano cubista, fragmentado, complexo, difícil de entender, de explicar. E às vezes acredito que sua morte o libertou. Encerraram-se as perguntas e dúvidas por parte dos fãs e detratores. Restaram, ao fim, as dúvidas e o eterno mistério. 

E ele, com certeza, funciona melhor como mistério. Como homem apenas ele simplesmente não bastou. Como, aliás, costuma acontecer com os grandes em qualquer segmento da história.      


quinta-feira, 6 de abril de 2023

Por que a MPB não é mais assim?


A pergunta que eu mais me tenho feito nos últimos anos, sei lá, dez anos é "por que a MPB não consegue mais ser encantadora, sarcástica, bem feita, cheia de composições interessantes?". Sério. É tanta coisa ruim, tendenciosa, manipulativa. Tantos reboladores de bunda sem talento, que nem cantar ao vivo conseguem, são reféns do playback e do autotune. Deus! retrocedemos à idade da pedra musical. 

Não há mais espaço para deboches, ironias, a nudez nas capas dos discos virou assunto de Estado. Encaretamos. Não. Tornamo-nos cafajestes morais, isso sim. Que saudades dos loucos anos 1980, o rock dando as caras, o Circo Voador, o Asdrúbal trouxe o trombone, Renato Russo e Cazuza eram os poetas da juventude, outrora chamada de filhos da revolução. 

E nesse sentido que deleite poder ouvir de novo o vinil de Voo de Coração, do cantor Ritchie, que completa quatro décadas de existência esse ano. Acompanhado de seus parceiros do antigo grupo Vímana, Lobão na bateria e Lulu Santos na guitarra, apresenta uma obra-prima daqueles tempos em que podíamos conversar, namorar e divergir sem tantas restrições. 

Quando moleque eu chamava esse disco de "crônica perfeita para entender os casais enamorados" e após ouví-lo de novo, depois de tantos anos, essa sensação permanece. Um misto de sonoridade videogame com letras atraentes, por vezes ardentes. Seu maior hit, "Menina veneno", até hoje transpira sensualidade em festas e bailes retrôs. 

Mas não somente ele. "Pelo interfone", "A vida tem dessas coisas", "A carta", "Casanova"... O conjunto da obra é ímpar. E olha que são menos de 40 minutos de pura ginga, adolescência à flor da pele e malandragem oitentista. E pensar que trocamos isso por bobagens como sertanejo universitário, sarradas, arrocha, música gospel e outras porcarias ainda maiores. 

Coloco Voo de coração com folga ao lado de outras obras seminais do nosso cancioneiro como Rádio pirata ao vivo (do RPM), As quatro estações (do Legião Urbana) e Cabeça dinossauro (do Titãs), para ficar por ora apenas nos que mais mexeram comigo naqueles tempos de camisetas descoloridas e bermudas jeans surradas. 

E o pior de tudo: saber que tem gente hoje em dia chamando qualquer coisa, qualquer um, de rock, de música. Afundamos mesmo? Parece. 

Ainda bem que resta a memória. E essa é inabalável, eterna. Vão lá escutar esse achado. Quem não tiver - como eu - o LP, tem completo no you tube para ouvir. Nada de desculpas inúteis em tempos de internet disponibilizando praticamente tudo. Agora é com vocês. 


terça-feira, 4 de abril de 2023

O filme que é a cara do cinema nacional


Vejo em vários perfis no twitter que Central do Brasil, de Walter Salles, comemora 25 anos em 2023 e fico assustado. Tudo isso?

Parece que foi ontem que fui ao cinema para vê-lo e saí em êxtase com toda a mise-en-scene criada. E o longa ter duas indicações ao Oscar no ano seguinte foi mero detalhe, cereja no bolo. O filme fala por si só! 

Acompanhamos Dora (Fernanda Montenegro, sempre magnífica), que escreve cartas para iletrados na estação da Central do Brasil, e Josué (Vinícius de Oliveira) numa jornada à procura do pai do menino e nos deparamos com um Brasil que sequer sabíamos que existia. Pura ignorância nossa. 

Tudo é irretocável no longa: o road movie bem construído, a luz precisa, a romaria das devotas, a sensação de estarmos diante de algo simples, porém genial em suas intenções. Waltinho é mítico em seu cinema. Pena que desaparece de tempos em tempos e ficamos órfãos de sua arte. Isso não pode, meu filho! Assim os fãs choram. 

Até hoje muito brasileiro odeia A vida é bela, de Roberto Benigni, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro, por causa da genialidade de Walter, Fernanda e Vinícius. Levamos o Urso de Ouro em Berlim, o Globo de Ouro, o Bafta... Putz! Custava? Sério. E ainda dizem que o Oscar de melhor atriz pra Gwyneth Paltrow por Shakespeare Apaixonado foi comprado pelo Harvey Weinstein. 

Tá de sacanagem. Os americanos sempre estão de sacanagem com a gente no Oscar. Quando o "Brasil ganhou", Orfeu negro, o diretor era francês... Precisa dizer mais alguma coisa?

Pois é... Sobrou rever e rever e rever essa obra-prima que os gringos nunca vão entender. E quem perdeu foram eles mesmos.