terça-feira, 29 de novembro de 2022

O abismo que nunca chega


Certos livros perturbam (às vezes até demais). Já outros, atendem de cara nossas mais loucas expectativas. Entretanto, há um terceiro tipo que me agrada ainda mais: aqueles que unem essas duas vertentes, ou seja, atendem minhas expectativas justamente porque perturbam. São tão realistas em suas intenções que me fazem repensar e/ou desconstruir minhas próprias ideias ou o próprio mundo que me rodeia. 

Favelost, do escritor, músico, agitador cultural e poeta Fausto Fawcett, que eu enfim consegui ler depois de perseguí-lo em vários sebos sem sucesso por quase dois anos, faz parte - com folga - desta terceira categoria. E não há momento melhor para lê-lo do que no Brasil de hoje, cheio de fanáticos e ignorantes tolhendo a liberdade alheia e distorcendo qualquer tipo de debate ou discussão. 

O livro de Fausto, outrora vocalista da saudosa banda Os robôs efêmeros que tanta saudade deixou lá pelos idos de 1980 tocando "Kátia Flávia - Godiva de Irajá", está anos-luz do que possa ser classificado como um romance tradicional. Na verdade, cabe melhor na ideia de uma grande crônica do absurdo, que é o que virou o país e o mundo nos últimos anos. 

Acompanhamos habitantes mezzo perturbados mezzo irônicos como Jupiter Allighieri e a Eminência Paula nos introduzindo no convívio com essa sociedade louca, por demais catastrófica, imediatista e que não abre mão do menor dos privilégios, pois somente assim eles se considerarão "sobreviventes da nova era". 

Favelost é cheio de ecos à grandes obras literárias (o que não significa que elas tenham sido as referências do autor para construir seu trabalho) como O uivo, de Allen Ginsberg e Zero, de Ignácio de Loyola Brandão. Bebe na mesma fonte de águas turvas e nada insípidas, muito menos incolores ou inodoras. E mesmo assim destila seu veneno e sua acidez muito bem construída desde o primeiro parágrafo. 

Fawcett costuma dizer em suas raras entrevistas que sua literatura nada tem a ver com o gênero ficção-científica, pois ele se limita a retratar a realidade. No entanto, é visível o flerte com essa linguagem. Eu poderia (até com certa folga) situar sua narrativa no ano de 3105, por exemplo. Quem sabe até colocá-lo lado a lado com Deckard, protagonista do clássico sci-fi Blade Runner - o caçador de androides. Mas, infelizmente, o que ele narra é atualíssimo, vil, por vezes grotesco de tão desumano, e mesmo assim por demais necessário para que consigamos entender que mundo é esse no qual estamos atolados até o pescoço. 

A frase que pontua toda a angústia do cidadão que escreve sobre o absurdo cotidiano ao qual sobrevivemos é "o Brasil é o abismo que nunca chega". E nisso, ele, Fawcett, está corretíssimo. 

Para aqueles mais acostumados a love stories açucaradas e livros de auto-ajuda, Favelost será leitura árdua e temo até em dizer: muitos vão chamar - obra e escritor - de condenados (expressão que anda em voga na boca dos falsos moralistas). Contudo, se você como eu ainda admira quem tem culhões e sabe colocar suas ideias no papel, não deixe de ler. 

Da ideologia da falsa felicidade construída à base de consumo banal e desenfreado à amores eletrônicos e fúteis que não passam de um dia, quiçá uma semana, o "romance" de Fawcett nos entrega uma reles molécula da realidade líquida e disforme que Zygmunt Bauman tão bem esmiuçou em seus formidáveis livros. E não satisfeito vai mais além e debocha. De tudo e de todos. 

Melhor parar por aqui, pois não quero estragar todo o elán do livro que promete muitas tiradas e reflexões interessantíssimas, tanto sobre os seres humanos quanto as corporações desse século XXI cada dia mais Tempos Modernos, de Charles Chaplin. Certo? Então... Agora é com vocês. Tomem coragem, pelo menos uma vez na vida, e entrem nesse inevitável campo de batalha. Até porque o mundo não vai deixar você fugir desse jeito. Não mesmo. 


terça-feira, 22 de novembro de 2022

O tremendão


Antigamente quando eu me excedia

ou fazia alguma coisa errada

naturalmente minha mãe dizia

"Ele é uma criança, não entende nada"

por dentro eu ria satisfeito e mudo

Eu era um homem e entendia tudo...


É, Erasmo, não foi só você não, meu caro! Eu passei por isso também e foram várias vezes (até porque minha mãe, que Deus a tenha lá em cima em bom lugar, jogava duro a maior parte do tempo).

A canção "Sou uma criança, não entendo nada", que integra o box Mesmo que seja eu com os discos do cantor Erasmo Carlos gravados nas décadas de 1970 e 1980, espelhou de forma nítida a minha infância e puberdade, bem como acentuou a minha relação de admiração por um cantor e compositor que, injustamente, sempre foi visto - pela crítica e por quem nada entende de música - como a sombra do rei Roberto Carlos. Em uma palavra: ignorância. 

E eis que hoje, 22 de novembro, dia do músico (que ironia!), ligo o celular e me deparo com a notícia de que Erasmo, o eterno tremendão, nos deixou aos 81 anos de pura sabedoria, após ter sido internado de novo. Logo ele, que no dia de finados, ao ser liberado pelo hospital, fez piada, dizendo: "não me quiseram". A MPB, assim como chorou recentemente com Gal Costa, verte lágrimas profundas novamente, pois perdeu um dos seus gênios mais incompreendidos. 

O menino que nasceu em 1941 em plena Tijuca efervescente de rebeldia, que virou do avesso a Rua do Matoso junto com Tim Maia e Jorge Ben em suas múltiplas travessas de roqueiro em formação, que fundou tanto The Sputniks (1957) como The Snakes (1958), que trabalhou ainda novo na Rádio Nacional com Carlinhos Imperial e viu na música o único caminho possível para se chegar em algum lugar, aprontou tudo e tirou todas de letra. 

Com Roberto Carlos, Wanderléa e companhia ilimitada agitou as jovens tardes de domingo e apresentou ao mundo a Jovem Guarda (que os puristas, é claro, nada entenderam e ainda debocharam). Na verdade, a crítica nunca o entendeu de fato e quis rotulá-lo. Impossível. Ele sempre foi mais irrequieto do que ela. 

Os sucessos, pergunte a qualquer fã, eles conhecem de cor: "É preciso saber viver", "É proibido fumar", "As curvas da estrada de Santos", "Emoções", "Detalhes", "Jesus Cristo", "Além do horizonte", "Se você pensa", "Nossa senhora", etc etc etc... Contudo, eu gosto de exaltar o fato de que certas canções sempre tiveram mais a cara dele do que da dupla. Falo de músicas como "Todos estão surdos", "Sentado à beira do caminho", "Minha fama de mau" e o clássico eterno "Festa de arromba". Isso, sem contar, seus hits solo como o inoxidável "Pega na mentira", "Mulher (sexo frágil)" e "Mais um na multidão" (em parceria com Marisa Monte).

São mais de 600 composições que não saem da boca do povo e por lá permanecerão pela eternidade. Agora mesmo, enquanto escrevo este arremedo de artigo-homenagem, uma vizinha aqui do lado ouve "cavalgada". E, provavelmente, chora. É, Erasmo...

Entre os que colecionam e amam seus álbuns dois são sempre citados com paixão: Carlos, Erasmo (1971) - cheguei a ouvir pessoas falando dele doentiamente - e Erasmo Carlos convida (1980), em que dividiu o microfone com outras estrelas do naipe de Maria Bethânia, Nara Leão, Gilberto Gil, Rita Lee, Caetano Veloso e, claro, o amigo do fé, o irmão camarada, dentre outros. 

O gigante gentil, outro apelido com que foi agraciado pelos amigos, teve marca de roupa e também se aventurou pelo cinema. Assistam, assim que possível, Roberto Carlos e o diamante cor-de-rosa (1968), Roberto Carlos a 300 quilômetros por hora (1971) - ambos do diretor Roberto Farias - bem como Os Machões (1972), de Reginaldo Faria. Há também uma participação dele, nostálgica, em Paraíso Perdido (2018), de Monique Gardenberg. Erasmo era múltiplo, debochado e arisco. E isso era o que mais os fãs gostavam nele! 

São poucos os artistas que passaram por inúmeros desafios e sobreviveram, deram a volta por cima. Erasmo é desses. Foi vaiado no Rock in Rio 1985 (por uma geração que, certamente, não entendeu - e não entende até hoje - o que ele cantou), fez ode à maconha em "De noite na cama" e foi mal compreendido, enfrentou um tumor no fígado, perdeu um filho e a primeira esposa, Narinha, foi desacreditado pelas gravadoras num certo momento, pois não entendiam o seu estilo, a sua marca pessoal, e ainda assim... continuou grande.

Na última entrevista que vi com ele, num videocast, disse sua última frase antológica: "hoje em dia o tosco é enaltecido", referindo-se à pobreza musical dos dias de hoje. Soberbo e sucinto! Como foi em toda a sua vida e carreira. Mestre, onde quer que você esteja neste exato momento, fica em paz, com Deus, e com a certeza de que sua obra é - e sempre será - maiúscula. Se tem algo de que eu me ressinto na vida é de não ter feito parte da sua geração. E muito obrigado, por tudo.  

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Saramago, 100 anos


O escritor e poeta português Gonçalo M. Tavares - autor de Short Movies e Jerusalém - disse em um dos seus textos que "a melhor maneira de respeitar um autor é fazer alguma coisa com o que ele escreveu". E eu sempre tentei fazer exatamente isso com Machado de Assis, nosso maior autor. É muito fácil chamá-lo de gênio, mas sempre o tornamos inacessível para grande parte do público leitor brasileiro (e eu sempre tentei apresentá-lo aos mais jovens da forma mais palatável possível). 

Contudo, é preciso também deixar claro aqui. A mesma frase - ou aforismo - cai como uma luva para explicar o mestre José Samarago, que hoje comemora com toda justiça o seu centenário. E mais: não acredito que conseguimos até hoje dimensionar a grandeza deste homem, único vencedor do Prêmio Nobel de literatura em língua portuguesa (em 1998).

Saramago, o garoto nascido na província do Ribatejo, filho de trabalhadores rurais, que se formou como serralheiro mecânico pois a família não tinha como pagar sua universidade, mesmo depois de publicar em 1947 o seu primeiro livro, Terra do pecado, não fazia ideia da reviravolta que sua vida tomaria anos mais tarde. Inclusive, reza a lenda, que sua trajetória começou a tomar um novo rumo quando foi demitido do jornal onde trabalhava, o Diário de Lisboa, durante a Revolução dos cravos. 

Sua obra literária é carregada de um realismo profundo; repleta de elementos sociais e políticos, bem como uma crítica religiosa e anticlerical ferrenha (o que o levou, muitos vezes, a ser excomungado pela crítica literária). Mestre na arte da paródia - fruto da intertextualidade que seus livros mantêm com autores clássicos como Camões, Fernando Pessoa, Antônio Vieira e Almeida Garrett -, também dialogava com fragmentos do chamado realismo mágico, tornando seu trabalho uma alegoria fascinante.

Outra marca forte em seu trabalho era a maneira bastante particular com que tratava a linguagem em seus textos. Nada de aspas, travessões, dois pontos, ponto e vírgula... Apenas vírgulas pontuais. E um detalhe: sempre lutou junto às editoras para que seus livros viessem escritos no português de Portugal e não na variante brasileira. Sim, corajoso o moço! E bem fez ele, pois lutou até o fim por sua língua e nação. 

Dentre os livros que publicou nenhum obteve mais atenção da mídia do que o polêmico O evangelho segundo Jesus Cristo (que chegou a ganhar uma montagem teatral aqui no Brasil). Nele, mostrou um Jesus mais humano, menos divino, repleto de defeitos morais e apaixonado por Maria Madalena, o que levou os religiosos mais extremos à fúria. Já O ensaio sobre a cegueira (que ganhou, em 2008, adaptação para o cinema do diretor Fernando Meirelles) é certamente seu exemplar mais famoso, aqui e no mundo. E tem motivos de folga.

Perdi as contas de quantas vezes reli a história da sociedade que acorda completamente cega após a passagem da chamada "treva branca" e vê o mundo entrar num completo caos. Recomendo. Leiam o livro e, se possível, vejam o filme, que também é brilhante.

Outras obras publicadas que, a meu ver, também merecem o tempo do leitor desta humilde homenagem são: Memorial do Convento (um clássico que eu li ainda no ensino médio), A jangada de pedra (que também ganhou versão na tela grande, pelas mãos do diretor George Sluizer em 2002), a magistral série de diários Cadernos de Lanzarote (publicados entre 1994 e 1998, e que expõem o autor a nu), O homem duplicado (também adaptado em 2014, por Denis Villeneuve) e os mais recentes, mas não menos interessantes, As intermitências da morte, A viagem do elefante e Caim.

Entretanto, procurem a fundo e encontrarão também contos, poemas e até uma peça teatral criada por ele. Saramago era eclético e metódico em tudo o que fazia. E não à toa dizia que "a leitura é, provavelmente, uma outra maneira de estar em um lugar" e "eu suponho que tenho todos os direitos do mundo de escrever sobre tudo aquilo que eu entender". Ele tornou seu trabalho parte dessa nova realidade. 

Em 18 de junho de 2010 nos deixou, mas sua Fundação por aí continua, agora administrada pela esposa, Pilar del Rio. E não somente ela, mas um legado impressionante e uma cultura ímpar (o que me faz pensar a todo momento qual a pinimba que o Nobel tem com o nosso idioma. Já tivemos tantos autores formidáveis. É recalque, isso? Só pode!)

Faltou mencionar algo? Claro que sim. Um autor dessa grandeza... Sempre falta. Mas eu que não sou louco de falar demais e acabar entregando o que não devo. Melhor encerrar com o meu mais profundo obrigado. Por tudo. 

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

A voz que não desafinava


Não é à toa que a palavra música pertence ao gênero feminino. É para que não nos esqueçamos jamais de vozes eternas, que vieram ao mundo com o único propósito de embalar as nossas vidas e os nossos sonhos. Elis Regina, Whitney Houston, Elza Soares, Adele, Billie Holliday, Tina Turner, Ella Fitzgerald, Mercedes Sosa... São tantas, inúmeras, cada uma com o seu estilo, sua vida, seus dilemas. 

Hoje - é triste dizer isso, mas não tem outro jeito - a música popular brasileira chora e lamenta (muito!) a perda de uma das suas maiores vozes. E digo mais: se passarão décadas até que outra a suceda no mesmo nível. O país viu partir, aos 77 anos, a cantora Gal Costa. 

Talvez os fanáticos por Elis se irritem com o que vou dizer agora, mas... Para mim, Gal era com folga a maior cantora do Brasil. Ela pontuou toda a minha relação com a música nacional desde que eu me entendo por gente e ouvinte. 

A menina Maria da Graça Costa Penna Burgos tinha um sonho. E mesmo trabalhando como vendedora numa loja da Roni Discos ou sentindo a ausência do pai (que faleceu quando ela ainda era uma adolescente), nada a demoveu dele. Seu destino era cantar. Mais do que isso: brilhar. E assim o fez. A começar pela estreia em junho de 1964 no show Nós, por exemplo, realizado na inauguração do Teatro Vila Velha, em Salvador).

Sua voz era única, capaz de duelar até mesmo com os riffs da mais potente guitarra (duelo esse que ela encarou de frente, ao vivo). Deu voz à artistas sensacionais da MPB que, não fosse a perspicácia e o talento dela, provavelmente hoje teriam morrido no ostracismo. Que o digam o poeta Waly Salomão (de quem gravou "Vapor barato") e Luiz Melodia (sua interpretação de "Pérola negra" é única!). 

Deixou registrado em nosso cancioneiro milhares de sucessos que certamente estão sendo ouvidos e reouvidos nesse exato momento: "Um dia de domingo" (que celebrizou num dueto marcante com Tim Maia), "Chuva de prata", "Baby" (faixa indefectível do álbum seminal Panis et circensis), "Barato total", "Festa do interior", "Divino maravilhoso" (expressão citada até num longa de Glauber Rocha), "Brasil", "Tigresa", "Sorte", "Vaca profana"... E um detalhe à parte: ninguém, absolutamente ninguém, cantou "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, como ela.

No quesito discos gravados o meu coração fala mais alto, pois é praticamente impossível não me lembrar dos exatos dias em que ouvi seus melhores trabalhos a primeira vez. E a segunda. E a terceira. E todas as demais. A música de Gal é mediúnica nesse sentido. Sua expressão corporal, então, nem se fala... Como esquecer da turnê de Fa-tal: Gal a todo vapor, a ousadia, os seios de fora, a coragem, sem pudores ou receios? Aquilo entrou para a história e permanece, vivo, mais do que nunca. 

E justamente por não conseguir ser preciso ao esmiuçar tamanha coragem, tamanho enfrentamento, deixo abaixo - até porque é preciso fazer com que essa "nova geração" fascinada por artistas de plástico conheça a voz e a atitude dessa moça - um top 5 básico da discografia dela:

Gal Costa (1969);

Fa-tal: Gal a todo vapor (1971);

Cantar (1974);

Doces Bárbaros (1976)*;

Caras & bocas (1977).

*Só a reunião com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia já renderia um artigo próprio e inesgotável de ideias. Este é um álbum para se ouvir todo ano, pelo menos umas 30 vezes ao ano, até o fim da vida. Ouçam. Pelo amor de Deus, ouçam! Agora, se possível. 

E como um precioso bônus track ainda vale uma fuçada no extraordinário Acústico MTV, que ela lançou em 1997, repleto de clássicos da MPB repaginados ("Falsa baiana", "Força estranha", "Como 2 e 2", "Paula e Bebeto", "London, London", "Lanterna dos afogados, entre outros). Tem fã que diz que esse é o ato final da carreira dela. Eu, tenho minhas dúvidas. 

Gal faleceu sem ter visto a cinebiografia que fizeram sobre ela (Meu nome é Gal, dirigida pela dupla Dandara Ferreira e Lô Politi, e com a atriz Sophie Charlotte interpretando-a). Uma pena! Como também foi uma pena ela precisar cancelar seu show no recente festival Primavera Sound por conta de uma cirurgia no nariz. Enfim... A vida não permite avisos, ensaios, estreias. Ela simplesmente acontece.

Como resumir essa força da natureza? Impossível! O máximo que dá para dizer nesse momento tão triste é que Gal Costa era a voz que não desafinava. Pronto. Agora vão lá descobrir quem ela era nos you tubes e spotifys da vida.

E chega, gente. É hora da despedida. Fica com Deus, moça! E você vai fazer uma falta danada aqui embaixo. Ô se vai!  

terça-feira, 8 de novembro de 2022

A cirurgia é a nova forma de arte


"Estica aqui, aumenta ali, corrige acolá, diminui um pouquinho aquela curva do...". Sim, passamos de seres humanos à objetos que precisam ser anatomicamente consertados ou remendados o tempo todo. Em outras palavras: nos tornamos reféns do bisturi, artefato cada dia mais relevante e imprescindível nesse século XXI baseado em corpos, poses e opiniões contraditórias. 

E a pergunta que não me sai da mente é: o que sobra depois disso? Resposta sincera: praticamente nada. Resposta oficial: um mundo de possibilidades (quais, exatamente, já é assunto para outro texto, pois eu preciso pensar mais a respeito). Contudo, a tecnologia não para, avança a galope e promete um mundo no futuro ainda mais tenebroso. 

E é exatamente desse mundo tenebroso que o diretor David Cronenberg fala no mórbido, porém necessário, Crimes do futuro

Cronenberg é um cineasta ligado, em sua origem, ao universo da maquiagem e do body horror. E fez disso um talento raro, para pouquíssimos na sétima arte (que o digam seus clássicos A mosca, Videodrome e Gêmeos - mórbida semelhança). Porém, nos últimos anos atrás das câmeras, vinha se dedicando a outros territórios, chegando a adaptar uma HQ - Marcas da Violência - e se propondo a falar de Freud, Jung, máfia russa e até mesmo as consequências do Occupy Wall Street no mundo. 

Mas, saudoso de seus primeiros anos na direção, se reinventa e nos apresenta um retrato sórdido (digo mais: sarcástico) e por vezes doentio do mundo contemporâneo e dos exageros à vaidade. 

Seu protagonista, Saul Tenser (Viggo Mortensen, parceiro recorrente nos últimos projetos) é aquilo que podemos chamar de "um artista do horror pós-moderno". Realiza cirurgias complicadas e as transforma num show business macabro que enche os olhos dos admiradores que assistem suas performances. Sua alma gêmea, Caprice (Léa Seydoux) é, em tese, a única capaz de seguí-lo até o inferno, se preciso. E eu digo em tese, pois há mais gente querendo esse lugar. 

Lang Dotrice (Scott Speedman) e Timlin (Kristen Stewart) também veneram o talento deste showman insano a ponto de lhe propor as mais nefandas ousadias. A questão mesmo é: será que ele topará? Saul parece tão devotado à sua própria vaidade e talento que todo o resto parece banal diante de seus olhos. Nem mesmo o elogio ("a cirurgia é o novo sexo") proferido por Timlin é capaz de quebrar sua armadura de empoderado. E aqui começa justamente o legado do longa.

Cronenberg desenha bem uma sociedade afeita ao efêmero e à estrelismos os mais diversos, na qual o mais importante é ser venerado pelos demais e comer plástico é sinônimo de avanço social. Muitos espectadores chatos talvez digam de forma leviana: "isso é papo de filme; na realidade não é bem assim, não!". Entretanto, quando me dou conta do que andam chamando de artista, gastronomia e show business hoje em dia, eu chego à conclusão de que, na verdade, não tem nada de ficção aqui. Não mesmo. 

Se preparem, adeptos e fãs de longa data do diretor, para as deformações e máquinas exóticas costumeiras do seu cinema presentes aqui (e nesse sentido, o filme me lembrou muito de Existenz, outra bola fora da curva dentro da sua carreira). 

Ao fim, enquanto os créditos correm após a satisfação estampada no rosto do protagonista ao provar plastic food pela primeira vez, me pego num sentimento dúbio entre o niilismo e o apavoramento com os dias que ainda virão. Não é de hoje que a sociedade mundial vem me assombrando com suas escolhas equivocadas e, porque não dizer também, monstruosas. Da destruição da arte para favorecer as NFTs à crise dos refugiados, passando pela proposta de controle populacional ao preço que for, caminhamos para um abismo às gargalhadas, achando tudo de mais terrível extremamente natural. 

E acreditem: isso é tudo o que o mundo não está sendo nas últimas décadas, pelo menos. E em meio a tanta negatividade travestida de exibicionismo, só me resta agradecer ao diretor - mestre em descortinar ao longo da carreira o amargor do que chamamos de natural impunemente - por mais essa peça rara dentro do seu currículo cinematográfico. Que venha o próximo!    


quarta-feira, 2 de novembro de 2022

De Cambuci para o mundo


Como é triste ser hater!

A humanidade adora rótulos, só não gosta mesmo de se ver rotulada. Apontar o dedo acusador para falhas e escolhas alheias virou um esporte nacional nas últimas décadas, principalmente quando a vítima é oriunda da periferia, do gueto ou pertence à etnia negra, indígena, etc. Contudo, quando eles - os acusados, os que sofrem bullying - chegam lá, atingem um patamar nunca antes imaginado ou visto, é notória a grandeza de suas histórias.

Foi exatamente assim que me senti desde o primeiro momento em que pisei no Centro Cultural Banco do Brasil para assistir a exposição Os Gêmeos - novos segredos, regresso da dupla de grafiteiros Gustavo e Otávio Pandolfo ao espaço após 12 anos, e vi na rotunda o imenso boneco de braços abertos para o público. Abaixo dele, uma espécie de casa onde os visitantes entravam e se deparavam com milhares de desenhos e ilustrações da dupla se autorevezando num enorme telão de plasma. 

Primeiro desafio: encarar a fila gigantesca de curiosos em êxtase para conseguir um ingresso. E olha que eu fui num dia de semana! Mas acreditem: a espera vale cada segundo. 

São mais de mil itens que abarcam praticamente toda a carreira dos irmãos, dois dos artistas mais famosos do país no segmento e os que melhor souberam conduzir sua carreira internacional até o presente momento. Não é de hoje que fico estupefato diante dos desenhos inebriantes dos dois expostos em ruas nas principais capitais da Europa. E fico possesso de saber que vários desses murais já foram apagados por decisão de gestores pseudo-conservadores, seja por motivação administrativa ou ideológica. Definitivamente, essa gente não entende nem quer saber o real significado da palavra arte!

Retratos de família, críticas sociais e políticas, objetos pessoais, até um boneco dançando break no meio do salão (influência do hip-hop na carreira de ambos) levam a garotada - e, claro, seus pais - ao delírio. O grafite, meus caros leitores, não tem mais nada de marginal, de subarte, de underground. Ele se tornou tão vivo e reflexivo no século XXI quanto qualquer Van Gogh, qualquer Picasso, qualquer Goya. 

E para aqueles que continuam fazendo uma correlação cretina entre a pichação chula, de rua, e esse trabalho artístico por demais complexo e rebuscado, recomendo irem urgentemente à exposição e tirarem a má impressão o quanto antes. 

Fiquei sabendo com detalhes sobre o trabalho dos dois após assistir na tv a cabo ao extraordinário documentário Cidade Cinza (2013), de Marcelo Mesquita e Guilherme Valiengo, que mostra toda a parafernália necessária para que eles criem aqueles murais impressionantes. Fica a dica. E vejo no conjunto exposto aqui não somente um complemento, mas um registro definitivo do trabalho épico realizado pelos dois irmãos. 

O grafite brazuca, aliás, vive um momento interessantíssimo dentro e fora do país. Eduardo Kobra, outro gigante nosso, acaba de criar um painel para a sede da ONU e vem expondo na Europa e nos EUA com certa regularidade. E eu espero sinceramente que essa "brazilian wave" (e pego aqui de empréstimo uma expressão que nos últimos anos vem sendo usada no surf mundial, principalmente depois do aparecimento e vitória do Gabriel Medina) se perpetue mais e mais, alavancando novos artistas. 

E, é claro, que os detratores e invejosos estão se roendo de inveja, porque os caras - aqueles que saíram de Cambuci, em São Paulo, quase que com uma mão na frente e outra atrás - são foda, num nível que realmente não dá pra explicar. E ponto.