domingo, 31 de janeiro de 2021

O tempo não cura todas as cicatrizes


Não faço a menor ideia do que significa para um pai ou uma mãe perder um filho. Não mesmo. E é possível que eu nunca venha a entender de fato tal acontecimento, tendo em vista que não sou pai. No máximo, posso imaginar o tamanho dessa dor e mesmo isso é ainda muito pouco em se tratando da palavra compreensão. Logo, um casal como Martha (Vanessa Kirby) e Sean (Shia LaBeouf), protagonistas do filme que pretendo resenhar aqui, estão num plano muito mais complexo do que minhas vãs palavras serão capazes de entender. 

Em Pieces of a woman, do diretor húngaro Kornél Mundruczó, responsável pelo extraordinário Deus branco, vemos uma casal que fez a escolha de realizar o parto do seu bebê em casa, de forma humanizada, com uma parteira. Porém, ao contrário do que eles imaginavam, o processo termina de forma amarga e a criança morre. E a morte do bebê leva o relacionamento do casal a um outro patamar. 

Sean até tenta seguir com sua vida, mas não consegue entender muito menos dialogar mais com sua esposa. Ela simplesmente se fechou em seu próprio mundo e não permite que os familiares façam parte dele. Daí para mentiras e traições é um passo mais do que natural. E do outro lado dessa modorra existencial, encontra-se Elizabeth (Ellen Burstyn), mãe de Martha, a maior interessada num processo criminal contra a parteira, que ela considera a maior culpada de todo esse caos pelo qual a família se encontra nesse momento. 

Contudo, é preciso levar em consideração que Elizabeth é uma mulher que acredita unicamente no poder do dinheiro, das aparências, do sistema que sempre facilita tudo para os privilegiados e não consegue lidar com o fato de que, no futuro, seu "círculo de amizades" se lembrará dela como a mãe da mulher que perdeu um filho. Para ela, a tragédia maior é o que os vizinhos e amigos irão pensar dela. Eles, na visão de mundo dela, a verão como uma pessoa menor. 

E a consequência mais do que natural desse turbilhão de desespero pelo qual a família passa é a sensação de que, na verdade, nenhum deles se conhecem realmente. Estão tão preocupados com status social ou "o que os outros irão pensar ou dizer quando souberem que..." que acabam por não viverem suas próprias vidas. Em outras palavras: são pessoas sem alma própria. 

O trabalho de Vanessa Kirby na cena do parto é interessantíssimo e pode até, quem sabe, aparecer entre as atuações indicadas ao Oscar desse ano. Confesso que fiquei surpreso ao vê-la tão bem. Talvez pelo fato de estar acostumado a assisti-la em filmes blockbusters do gênero ação. Não conhecia essa faceta dramática dela! Já o jovem e sempre rebelde LaBeouf está apenas ok e eu gostaria muito de ver o personagem interpretado por um ator de mais pujança. Talvez sua participação no longa rendesse mais. 

Percebi em certo momento uma subtrama brevemente mencionada sobre uma suposta rivalidade entre parteiras e a comunidade médica que, se bem trabalhada, renderia por si própria um grande filme. Uma pena que o diretor decidiu tomar um outro caminho. Aliás, a parte tribunal da história me soou um tanto quanto vazia e desnecessária, talvez pelo fato da direção não estar interessada em realizar um filme-denúncia contra a profissão das parteiras. E olha que eu cheguei a pensar que o longa enveredaria por esse caminho!

Feitas suas escolhas (nem todas elas surtiram o efeito desejado, pelo menos em mim) acabo me deparando ao final com um grande ensaio sobre a dor e o sofrimento por conta da perda de um ente querido. Porém, acredito que eles poderiam - se quisessem - contar sua história num tom menos melodramático. Acabaram por recorrer ao velho artifício de fazer o público ir às lágrimas e terminaram num meio termo incômodo. 

De certeza mesmo, enquanto os créditos começam a ser exibidos na tela, somente uma: o tempo, por mais que o deixemos passar, não cura todas as feridas. E, honestamente, cheguei a um ponto da minha vida em que não acredito que ele, o tempo, sirva para isso. 

O que precisamos, no final das contas, entender é que a vida nos impõe desafios e nos faz passar por tragédias para que possamos refletir sobre o quanto ela, vida, não passa de um grande "e se". Não controlamos de fato nossos caminhos, embora tentemos recorrentemente. E só nos sobra como legado desses desafios e tragédias levantar a cabeça e recomeçar do zero. 

E o resto é apenas algum escritor de auto-ajuda milionário tentando vender fórmulas de sucesso efêmeras e inúteis (pelo menos, na maior parte de nossas vidas).    


quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Uma nova versão de mim


O ano de 2020 que encerrou - e já foi tarde, a meu ver - nos ofereceu um terrível legado para ficar guardado nos anais da história: foi um ano de feminicídios. Atos bárbaros, praticados pela covardia e a opressão masculina, que já nos provou por a mais b estar a cada dia mais sofisticada. Nunca antes tantas mulheres morreram em tão pouco tempo e tanta gente encarou isso como algo tão natural. 

Às vezes tenho a impressão de que a sociedade já se encontra em modo anestesiado e perdeu completamente o senso de absurdo das coisas. Vivemos num país doente e preferimos simplesmente nos acostumar a essa ideia, pois é melhor, para muitos, do que lutar contra. 

Contudo, para nossa felicidade (minha e das pessoas que ainda não desistiram totalmente do país e do mundo) ainda existem pessoas dispostas a falar contra tanta brutalidade de forma simples e eficaz. E elas, com certeza, merecem todo o meu respeito. Eu até poderia fazer desse texto um enorme desabafo radical contra os opressores e assassinos, mas prefiro dividir minhas impressões sobre o genial e extraordinariamente humano livro de poesias Meu corpo, minha casa, da poeta indiana Rupi Kaur. 

Rupi repete a fórmula de sucesso de seus livros anteriores - os também indispensáveis Outros jeitos de usar a boca e O que o sol faz com as flores - e apela para o sentimento, os traumas e a força de vontade para que as mulheres consigam lutar contra a sombra negra proporcionada pela misoginia, um mal-estar sem fim de nossa civilização.   

Ela, inclusive, abre seu livro com duas frases imprescindíveis: "depois de tanto tempo separados minha mente e meu corpo enfim voltam a se encontrar" e "nunca estive num lugar tão sombrio quanto este", deixando claro para os leitores que o tema em questão - no caso, o abuso sexual - exige cuidado e muita inteligência ao ser esmiuçado, pois pode provocar reações controversas dependendo de quem o leia. 

Dividido em quatro tomos: mente, coração, repouso e despertar, nos traz um acúmulo de dores, mas também de muita esperança, para os dias que virão. Rupi nos diz que vê sua vida parada no tempo, enquanto a das outras pessoas prossegue normalmente. Vê no sexo, na maneira como ele aconteceu na sua vida, de forma abrupta, brutal, covarde, um quase assassinato. E confessa: não vê o menor prazer nele. Afinal de contas, teve sua infância roubada por homens inescrupulosos por causa dele.

Ela chega a gritar em certo momento: "Quero de volta a minha vontade de viver!" E sabe de antemão que esta não será um tarefa nada fácil. O abuso que a acompanha não está presente somente nos romances e flertes, mas também em falsas amizades e coleguismos. Entretanto, embora solitária ela não está sozinha nessa luta. E é justamente quando ela percebe sua força interior que o livro começa a ganhar um novo contorno. Trata-se de encarar o bom combate, como disse certa ocasião em um de seus livros o escritor Paulo Coelho.  

Rupi tem muitos medos acumulados dentro de si: o de envelhecer, o de não poder escrever nunca mais, o de não conseguir atender às expectativas do mundo e da sociedade... Mais: ela guarda dentro de si toda a vergonha do mundo. Aqueles que a violaram produziram isso nela e hoje preferem o esconderijo da negação, algo bem compatível com a realidade fake news na qual estamos vivendo. Em poucas palavras, ela habita entre o romantismo do passado e a preocupação com o futuro e isso, por si só, já é espinhoso em demasia.  

E, por isso, na segunda metade da coletânea, decide enveredar pelo otimismo, apontando possíveis caminhos e soluções que enfrentem de igual para igual a maldade visceral dos homens. Esmiuça várias definições de eu te amo, nos entrega uma lista de como sobreviver aos covardes e suas artimanhas, exalta a masturbação como um direito a se conhecer melhor, não admite fingir ser menos inteligente diante de certos modelos masculinos, fala da vida de refugiado e da dificuldade do pai, um homem trabalhador, para colocar comida na mesa quando ela era criança. 

E tudo isso porque, palavras dela, "estou despertando da noite mais longa da minha vida". 

Mas não pensem que ela deixa de dar suas alfinetadas, não!. Longe disso. Rupi relembra o genocídio Sikh ocorrido em 1984, questiona o modelo feminista atual, que só se interessa por alçar mulheres a condição de poder (algo que eu sempre critiquei na postura empoderada de certas mulheres vazias do nosso país) e diz que a classe precisa, isso sim, retomar as rédeas de suas vidas. 

Ao fim das pouco mais 200 páginas, que eu li de uma toada só, como se fosse um único poema narrativo, chego a conclusão de que a autora construiu uma nova versão dela mesma, uma versão aprimorada, corajosa, que sabe os desafios que deverá continuar enfrentando, mas agora de forma mais lúcida, sem dar tanta trela àqueles que só queriam (e ainda querem) lhe usar. Grande Rupi. Desejo a você toda a sorte do mundo.

E que bom seria se nós, homens de verdade, aprendêssemos um pouquinho só com suas sábias palavras!


domingo, 24 de janeiro de 2021

Nêmesis subterrâneo


O gênero terror no cinema se sofisticou nos últimos anos e, para mim, meio que perdeu o seu encanto, aquilo que fazia dele um diferencial. Por mais que víssemos efeitos de quinta geração e cenas toscas, no fundo era justamente isso que nos agradava. E com a chegada do CGI, do 3D, do 4K ou qualquer outro modelo de sofisticação cinematográfica aquilo que o terror tinha de inovador deu lugar a um exagero no que se refere à perfeccionismo criativo. 

Em outras palavras: hoje em dia se exige muito mais da pós-produção e da definição da imagem do que do roteiro (que, muitas vezes, é feito por escritores que não entendem de fato a essência do gênero). Vejam, por exemplo, O lobisomem, com Benicio del Toro. Traz o personagem clássico tratado de forma impecável do ponto de vista visual à serviço de uma história meia-boca e forçada. Logo, torna-se impossível não idolatrar o terror feito no passado. 

A quadrilha dos sádicos; Pague para entrar, reze para sair; Evil dead - a morte do demônio; O exorcista; A profecia; O bebê de Rosemary, entre tantos outros exemplares únicos, souberam aliar o trash, o escatológico, soluções baratas, efeitos práticos e o muitas vezes chamado de improviso, a um roteiro que sabia tocar no âmago de seus mais ardorosos fãs. E o resultado dessa equação eram sustos, gritos e muita diversão.  

E uma das primeiras lembranças que eu tenho disso em minha cabeça é o clássico Alligator, de Lewis Teague, que os cinéfilos raiz certamente se lembram das inúmeras repetições na programação de filmes do SBT num passado nem tão distante assim. 

A jovem Marisa compra um pequeno crocodilo numa dessas exibições públicas em que homens enfrentam feras e o leva para casa. O pai, indignado porque o animal infestou a casa de fezes, o joga na privada, dá descarga e ele vai parar nos esgotos. 12 anos depois, já imenso, torna-se uma fera indestrutível que está tirando as vidas de milhares de pessoas. Mas o que assombra mesmo àqueles que devem investigar o caso é o tamanho da criatura. 

O crocodilo sofreu uma variação hormonal porque comia cães mortos que serviam de cobaia para uma instalação suspeita que pretendia criar uma espécie de hormônio sintético revolucionário. Sinistro, eu sei... Mas também bem a cara do cinema daquela época. 

Chamado para liderar as investigações, o detetive David Madison (Robert Foster) corre pela cidade atrás do nêmesis subterrâneo que continua aumentando seu número de vítimas. A única capaz de realmente o ajudar é a mesma Marisa (Robin Riker), agora doutora especialista em anfíbios e répteis. Mas acreditem: não será um trabalho nada fácil e nem sempre a polícia o apoiará em suas decisões.

As cenas em que a criatura invade a cidade, destrói o asfalto das ruas, adentra uma festa chique, mata um garoto que é jogado dentro da piscina e estraçalha um caçador contratado pelo prefeito para abatê-lo, já entraram para a história da sétima arte e desse filme B (sim, nunca esse longa se pretendeu algo mais do que isso e é exatamente essa característica um dos maiores charmes da produção até hoje). 

Para os fãs da boa e velha matança Alligator é o protagonista ideal e o diretor não faz média ou cria estilo. Ele mostra suas intenções de forma nua e crua. E confesso: em alguns momentos parece até que ele tomou suas decisões criativas mais brilhantes na última hora. E isso é simplesmente sensacional! 

Para as novas gerações, acostumadas à Annabelle, Invocação do mal e a série Supernatural (fenômeno televisivo) recomendo que procurem o filme, deem a ele uma chance, mas vejam com olhos sábios, entendendo que se trata de um cinema anterior a tudo o que você conhece sobre cinema, portanto visionário nesse sentido. 

11 anos depois do lançamento da versão original o diretor Jon Hess dirigiu Alligator 2: a mutação, que não faz jus ao legado do crocodilo assassino. Ou seja: mais um pisada de bola do mercado hollywoodiano (e olha que eu tenho uma enorme dificuldade de chamar esse longa de uma continuação direta do primeiro!).

Faltou dizer alguma coisa? Sim. Que os produtores de cinema daquele período sabiam ganhar o seu público sem tanto esforço ou tecnologia de ponta. E isso, naquela época, era chamado de talento. 


quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

O tempo é o que você faz dele


Se não tivesse me formado em comunicação social dez anos atrás, certamente teria escolhido como meu curso de graduação a área de psicologia e muito por conta do meu eterno fascínio por psicanálise. Sempre demonstrei um gigantesco interesse pela mente humana e o inconsciente, pois vejo no ser humano - na verdade, sempre vi - um animal confuso, deveras contraditório, que tem uma enorme dificuldade de se relacionar com sua própria espécie. 

Contudo, mesmo depois de formado numa outra área, acabei fazendo da psicologia e da psicanálise um tipo de formação informal. Procuro por tudo o que verse sobre os temas em todos os lugares: filmes, livros, quadrinhos, peças teatrais, pinturas, etc. E uma figura que sempre me abriu as portas para este universo complexo, mas não menos intrigante, foi o pintor espanhol (e, para mim, eterno provocador) Salvador Dalí. 

A história de vida de Dali já rende uma narrativa ímpar, cheia de revezes, conflitos e, é claro, genialidades absurdas. Como, por exemplo, a pequena obra-prima - e digo pequena, pois trata-se de um óleo sobre tela de apenas 24cm x 33cm, logo praticamente uma fotografia - A persistência da memória, realizado pelo artista em 1931. 

A persistência da memória se encontra entre aquele grupo de obras-primas da pintura mundial que você sempre fica na dúvida se coloca na categoria de puro delírio ou estudo de caso. E ela é um pouco de ambos. 

Olhamos para a paisagem desértica, o clima árido, a árvore seca, os relógios derretidos e o outro, repleto de formigas, e pensamos a priori (pelo menos, os iniciados em história da arte): estamos diante de um homem extremamente derrotista ou nonsense. Porém, ao analisarmos parte a parte nos deparamos, isso sim, com uma mente brilhante, recheada de boas ideias e referências. 

Dalí quer nos apresentar uma ideia diversificada sobre o tempo. E por isso, busca na Teoria da relatividade, de Albert Einstein, respostas que o façam ver o tempo sob um outro prisma. E os relógios vem bem a calhar nesse sentido. Os derretidos fazem alusão a maleabilidade temporal, ou seja, a capacidade que temos de dar ao tempo a dinâmica que desejarmos. Ele pode passar de forma rápida ou lenta, dependendo de nosso interesse ou motivação. Já o coberto por formigas refere-se à putrefação de suas próprias obras, que para ele tinham uma longevidade distinta da que pensavam os galeristas de seu tempo.  

Já a árvore seca, que também carrega um relógio faz menção às origens do pintor por tratar-se de uma oliveira, árvore muito comum da região da Catalunha onde Dalí viveu por muitos antes. E o estágio de secura é uma maneira do artista desconstruir os ciclos da natureza, que envelhecem dando lugar à outros. Perto da árvore ainda encontramos uma figura disforme que, muitos especialistas atestam, poderia ser um autorretrato de Dali (ou ele, mais uma vez, brincando com sua própria existência que, um dia, também deixará de existir). 

No final das contas, o que os observadores precisam levar em consideração é que todas essas imagens levam à questionamentos metalinguísticos, pois tudo o que Dalí faz, na verdade, é tirar essas figuras do cotidiano (a árvore, os relógios, o deserto, etc) de suas zonas de conforto e introduzi-las em outras áreas de discussão. E é nesse exato momento que entra em questão a psicanálise. 

Através de seu método "paranoico-crítico", ele cria situações que exploram o inconsciente, a fantasia e coloca seus objetos em situações incomuns, insólitas, dando a elas novos significados e contextos. Só citando um exemplo rápido: há quem diga que a inspiração para que ele criasse os relógios derretidos veio da textura do queijo Camembert que ele comia naquela noite, ao lado de sua esposa. Dalí era isso: um artista que desconstruía a todo momento o que seus olhos viam. E por isso tornou-se um ícone não só das artes plásticas, como também do mundo da moda e do design. 

Com A persistência da memória ele fez com que sua obra atravessasse a Europa e tornou-se um artista internacional consagrado. Para quem quiser conhecer de perto o pequeno grande quadro ele se encontra exposto no Museu de arte moderna de Nova York, o MoMA desde 1934. E é uma das grandes estrelas do catálogo.  

P.S: recomendo aos leitores deste artigo não somente procurar mais sobre a obra de Dalí, que é inebriante em todos os sentidos, como também a respeito do movimento surrealista, fundado por André Breton. Tratava-se não somente de uma arte simbólica como uma grande ode à liberdade de criação (algo que o mundo anda precisando - e muito! - atualmente). 


domingo, 17 de janeiro de 2021

Memento mori


Não conheço uma pessoa remotamente sã que seja capaz de explicar o que é a vida. E que bom que assim seja. 

A vida é complexa, nos faz sorrir, chorar, sentir dor, nos irritar, pensar em desistir de tudo, em continuar tentando, lutando, sobrevivendo, aguentando até onde dá, só mais um dia, só mais um, e de repente dá tudo errado e você volta e recomeça e faz de novo e não satisfeita ela te desafia de novo, quer te colocar no chão como um pugilista malvado, mas você não deixa e chama ela para um outro round e mais um e mais outro... Ufa! Não é mole, não! A vida não é para principiantes.

E qual não foi a minha surpresa ao ver a Disney Pixar falar sobre a vida (e, é claro, a morte) para um público que a priori sequer começou a entender o que ela é de fato. Mais uma vez a casa do Mickey calou a minha boca, fazendo aquilo que os filmes adultos não têm tido coragem de fazer.

Em Soul, animação dirigida por Pete Docter, acompanhamos a trajetória de Joe, um professor de música num colégio infantil cujo maior sonho é trabalhar como pianista de jazz, algo que ele vem labutando há muitos anos sem sucesso. Quando a oportunidade aparece, podendo acompanhar a lendária Dorothea em seu quarteto, ele morre e se desespera ao conhecer o que chamamos de pós-vida. Tão desesperado que acaba furando a barreira e indo parar no pré-vida, onde crianças estão sendo preparadas para o início de suas existências. 

Ele sabe que seu lugar não é ali, mas o considera melhor do que simplesmente morrer e aceita trabalhar como mentor para uma dessas novas jovens almas. O problema: recai sobre ele a difícil missão de ser o mentor de 22, um alma rebelde, extremamente relapsa e que não tem o menor interesse em viver. Mas ele precisa encontrar uma maneira de fazê-la acreditar que a vida vale a pena. Até que um acontecimento inusitado ocorre e todo o seu plano inicial vai pelo ralo. 

Antes de qualquer outra coisa que eu diga sobre Soul é imprescindível que eu elogie o conjunto de vozes escolhidas para este projeto. Jamie Fox e Tina Fey - que dão voz, respectivamente, à Joe e 22 -, Alice Braga, Angela Bassett, o apresentador de tv Graham Norton... Eu não costumo recomendar a versão original em inglês para quem não conhece o idioma, mas se tiverem a oportunidade de ver ambas, legendado ou dublado, assistam. O trabalho deles é sensacional. Bem como as escolhas musicais para a trilha sonora. 

Dito isto, vamos à minha impressão principal: durante toda a projeção me veio à mente uma expressão latina chamada "memento mori" ou, numa tradução livre, "lembre-se de que é mortal". E esse, para mim, foi justamente o conselho que Joe não ouviu ao longo de toda a sua vida.

Ele passou tanto tempo pensando em realizar o seu maior sonho - o que, de certa forma, era uma maneira de também realizar o sonho do pai, já falecido - que acabou por esquecer de viver. E esse me parece um dilema que acompanha grande parte da humanidade. Projetamos nossas felicidades em realizações extraordinárias, impérios gigantescos, e na maioria das vezes, desaprendemos a entender a necessidade do simples, dos pequenos gestos em nossas vidas. 

Colocamos como prioridade uma suposta felicidade que tentamos explicar para os outros e não conseguimos. Corremos atrás de uma riqueza que não levaremos conosco quando não estivermos mais por aqui. E ainda assim, achamos tudo isso, toda essa distorção, extremamente natural. 

John Lennon, vocalista dos Beatles, dizia que "a vida é o que acontece enquanto estamos fazendo planos" e estava coberto de razão. Passamos a vida a planejar e esquecemos completamente de vivê-la, de encarar o dia a dia. Preferimos chamá-lo de chato, monótono, de mesmice. E a vida, na maior parte do tempo, é o que você faz dela. Então, meus caros leitores, carpe diem (impossível não lembrar do mestre Robin Williams dizendo isso aos seus alunos em Sociedade dos poetas mortos!).

P.S: o visual estético do longa é de uma exuberância assustadora. É definitivamente um Oscar bait.   


quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

A festa de momo em dobro


O Rio de Janeiro é realmente um estado surpreendente e nem sempre no bom sentido...

Estava me preparando para postar um artigo sobre outro tema nos grupos onde faço parte quando me deparo na tv com a inusitada notícia de que o projeto do deputado estadual Dionísio Lins (PP) de criação de um segundo carnaval na cidade em Julho, foi sancionado pelo governador interino Cláudio Castro (PSC) e publicado no Diário Oficial. Ou seja: já está valendo. E olha que a maioria dos cidadãos cariocas nem sabiam da existência de tal projeto!

Foi dado ao evento o nome de CarnaRio - carnaval fora de época - e foi criado com a intenção de estimular o turismo e criar novos postos de trabalho no período de férias escolares e acadêmicas. E é bom que se diga logo de cara, para os desavisados, que o carnaval fora de época já é uma realidade em outros estados do país, com um enorme sucesso. 

Ainda não existem outras informações mais precisas sobre como será o evento, mas parece que o CarnaRio acontecerá todo ano na segunda quinzena de Julho, não afetando o carnaval oficial, que costuma ocorrer entre os meses de fevereiro ou março. 

Detalhe: esta decisão foi tomada num período em que o Estado vive um combate à pandemia do Coronavírus e espera por uma vacina, logo uma decisão - para muitos brasileiros - um tanto quanto polêmica ou, ao menos, passiva de reflexão. O próprio presidente da LIESA (Liga independente das escolas de samba), Jorge Castanheira, foi pego de surpresa com a sanção do projeto, que prevê a participação das ligas, agremiações e blocos carnavalescos. 

Eu já fui alvo de muito deboche toda vez que disse que o Carnaval, aqui no Brasil, há anos se transformou num outro tipo de festa. Uma festa que, dependendo do interesse de investidores e patrocinadores, pode ocorrer em qualquer época do ano. Basta que haja vontade política. E eis a confirmação de minhas impressões sobre o tema. Estou louco para encontrar na rua aqueles que volta e meia debochavam de mim, chamando-me de maluco ou sem noção. 

Só não quero ser chamado de profeta, pois tudo na verdade não passa de uma grande obviedade em se tratando de um país como o nosso, fanático por lucros e arrecadações. 

Zé Pereira, fundador do autêntico carnaval, certamente não sorriria se lesse uma notícia dessas. Pelo contrário. Teria recolhido seu bumbo e constatado por a mais b que o carnaval carioca acabou e faz tempo. 

Trocamos a alegria das ruas pelo tumulto e os cordões de isolamento. O empurra-empurra e os xingamentos dos prepotentes que não aceitam nada que seja diferente deles dita o tom da festa. O samba e a marchinhas deram lugar ao "tudo junto e misturado". Quem quer funk, sertanejo, trilha sonora de cinema, música brega, techno, às vezes têm mais vez do que o próprio folião raiz. 

E a Marquês de Sapucaí? Viu o samba no pé das passistas dar lugar a coreografias exóticas e aplausos à carros alegóricos gigantescos. E a última pessoa que tem voz no Sambódromo é o povo. Ele precisa, isso sim, obedecer o horário rígido dos cronômetros porque senão a agremiação cairá para uma série inferior e perderá o direito ao barracão e privilégios junto às emissoras de tv. E chamam isso de carnaval: uma festa para ser assistida e não curtida, sentida. 

Nossos governantes mais uma vez fazem um aceno ao que verdadeiramente importa: suas carteiras e contas bancárias. E os empresários, parceiros para todo o sempre de suas tramoias tendenciosas, certamente irão agradecer. E muito. 

Já ao rei Momo, anfitrião da festa, só lhe resta rebolar e entregar a chave ao prefeito. A partir de agora em dobro. E vai ter gente chamando isso de "O Rio de Janeiro está crescendo de novo"...


domingo, 10 de janeiro de 2021

Quando a lua cheia chegar


Eu não sei exatamente o que aconteceu com o gênero terror em hollywood, mas de uma coisa eu tenho certeza: todas as melhores lembranças que eu tenho sobre o gênero estão comemorando entre três e quatro décadas de existência e sem perder um pingo de sua relevância cultural. No final das contas, acredito que isso se deve ao fato de nós, espectadores daquela época, estarmos interessados num tipo de cinema que, honestamente, não se faz mais nos dias de hoje porque os realizadores atuais muitas vezes preferiram dar mais protagonismo aos efeitos especiais do que a uma boa história. 

Fiquei pensando nisso essa semana enquanto assistia a um exemplar ruim do gênero no canal a cabo TNT e me deparo com a notícia de que o clássico eterno Um lobisomem americano em Londres, do diretor John Landis, está completando 40 anos em 2021. E imediatamente a parte nostálgica do meu cérebro começou a trabalhar e me relembrei de todas as vezes que vi o longa. 

Um lobisomem americano em Londres é um marco do cinema de terror de todos os tempos (pelo menos, para este que vos escreve) porque não inventa teorias absurdas, não insulta a inteligência de seu espectador - em essência, adolescente - e também não se torna refém de sustos bobos e artimanhas baratas (algo que tenho visto muito nos últimos anos!). 

Acompanhamos a história dos dois mochileiros David Kessler (David Naughton) e Jack Goodman (Griffin Dunne) que são deixados por um caminhoneiro numa estrada deserta para continuarem sua jornada. Eles até param numa taverna para um breve intervalo e se deparam com a hostilidade dos frequentadores do local. Resultado: "melhor pegarmos nossas coisas e dar no pé". A noite chega, o ambiente fica soturno e eles são atacados por um lobisomem. Jack morre na hora, mas David sobrevive graças a ajuda dos homens que se encontravam no bar. 

Ele é levado para um hospital onde é tratado e interrogado por policiais. Conhece a enfermeira Alex Price (a belíssima Jenny Agutter), por quem se apaixona e logo recebe alta, indo morar com a moça em seu apartamento. Mas com o passar dos dias começa a sentir coisas estranhas. A ter instintos que nunca teve antes. Até que recebe a visita do companheiro morto, que vem lhe avisar que ele se transformará numa criatura igual a que o matou na próxima lua cheia. A consequência disso? Os fãs oitentistas já conhecem de cor e salteado. 

O diretor John Landis - realizador dos ótimos Clube dos Cafajestes e Os irmãos cara de pau - fez história com o longa, chamando a atenção da crítica especializada na época e também do rei do pop Michael Jackson, para quem realizou o antológico clipe Thriller dois anos depois (vídeo este que hoje se encontra catalogado na Biblioteca do Congresso nos EUA). Digo mais: junto com O exorcista, de William Friedkin e O bebê de Rosemary, de Roman Polanski, compõe uma trinca insubstituível no quesito "filmes de terror irretocáveis". 

A cena de transformação de David em lobisomem, que deu ao mestre Rick Baker o Oscar de maquiagem no ano seguinte, é das sequências mais fenomenais que eu vi até hoje. E olha que eu já vi foi coisa marcante nesses mais de 30 anos assistindo cinema! Passei anos da minha vida querendo saber como a cena foi realizada e só tive o meu desejo atendido quando comprei o DVD edição de colecionador do filme e sentei para ver os extras. E continuei impressionado. Imaginem isso sendo feito com a tecnologia de última geração de hoje em dia (e não me refiro a CGI, não!). 

Outro ponto que sempre achei um toque de mestre do diretor é o desfecho do longa, com a morte da criatura num beco, ao som de "Blue Moon", da banda The Marcels. Normalmente se esperaria um final com uma trilha sonora melancólica, quiçá fúnebre, e ele engata num sensacional rock n' roll clássico, como que dizendo para os espectadores de seu projeto: "gente, a vida continua...". 

Entro no site do IMDb para obter algumas informações sobre o filme e me deparo com a informação de que anunciaram um remake dessa obra-prima. Confesso: temi pelo pior na hora. Já não bastasse o detestável Um lobisomem americano em Paris, de Anthony Waller, realizado 16 anos depois, ainda por cima teremos de aturar mais essa infâmia. Enfim... Hollywood é a eterna fábrica de remakes que ela se tornou nos últimos anos. 

Agora, para quem não está interessado em releituras e versões novas "feitas para uma nova geração de cinéfilos", assistam o original. Procurem o DVD com os extras e se divirta. É entretenimento como há anos o cinema americano vem deixando de fazer, para perder tempo com heróis rebuscados e tramas insossas. 

P.S: ah que saudade da Sessão das Dez, no SBT, nos anos 80 e 90, que passava relíquias como essa pequena e notória obra prima!!! 


quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

O rei da munganga


Tem dias em que a tristeza bate fundo porque uma pessoa querida, que fez parte da nossa infância e da nossa formação cultural, vai embora. E parte de maneira dolorida. E você fica em casa pensando: "tanta gente escrota no país e justo ele teve que ir embora!". Pois é... É exatamente assim que eu estou me sentindo nesta quinta-feira ao acordar e ver na tv a notícia de que o cantor e compositor Genival Lacerda faleceu, aos 89 anos, vítima do Coronavírus.

Eu lembro exatamente do dia em que vi Genival na televisão pela primeira vez. Era o Clube do Bolinha, na Rede Bandeirantes, e assistíamos na casa da minha avó. Na verdade, era um acontecimento assistir esses programas de auditório na casa da minha avó. Todos os netos se reuniam em frente a tv e sempre tinha um lanche para acompanhar a farra, que adentrava a tarde.  

Genival chegou com seu jeito despojado, seu chapeuzinho, sua camisa florida (gosto que não perdeu com o passar dos anos), mexia com uma bailarina específica que estava sempre irritada, dançando, chamava a galera para cantar junto, dançava com a própria barriga. Era o verdadeiro munganga (expressão referente aos trejeitos, caretas e macaquices que fazia no palco como poucos na MPB). 

Na hora pensei comigo mesmo: "está aí um cara que sabe viver a vida!". Passei a acompanhar sua carreira de perto. Quando não estava no Bolinha, dava as caras no Cassino do Chacrinha ou no programa do Raul Gil, sempre com um enorme sucesso.

E desde já proponho um desafio aos leitores deste humilde artigo: quem aqui pode admitir que nunca ouviu suas músicas? Quem se atreveria? Canções como "Severina Xique Xique", "Radinho de pilha", "Mate o véio" e "De quem é esse jegue" certamente fizeram parte do imaginário popular não somente nordestino (Genival é de Campina Grande, na Paraíba) como do Brasil como um todo. 

Quando penso num artista popular que agradou a gregos e troianos, foi do Oiapoque ao Chuí, penso imediatamente em Genival Lacerda e suas momices. Ele era a cara do forró, da MPB eclética e bem humorada e de um tempo que, dia a dia, parece ficar cada dia mais distante do país por conta dessa nova mania do povo brasileiro em desmentir ou esconder tudo. 

Em 2008 a documentarista Carolina Paiva realizou o longa O rei da munganga (que dá título a este texto) e mostrou de perto a vida íntima, as amizades e a rotina de trabalho de Genival. Lembro de ter assistido o filme na TV Brasil às gargalhadas. Era uma figura ímpar que vai deixar muitas saudades!

Hoje, ao ver amigos do cantor de longa data, como Elba Ramalho, Alceu Valença, Fagner, dentre tantos outros, se despedindo do velho mestre, alguns às lágrimas, confesso que também chorei. 

Genival fez parte da minha infância. Com ele, aprendi que não é preciso ser sofisticado, cheio de rapapés acadêmicos, vestindo ternos e gravatas caríssimos, para entender o outro. Ele fez tudo isso com tão pouco e ao mesmo tempo parecia que ele tinha feito tanto. E, honestamente, ele fez sim. Muito. São pessoas como ele que precisam servir de exemplo e legado à esse país estilhaçado no qual estamos vivendo atualmente, que só quer saber de idolatrar as fake news e um passado fictício. 

Genival, meu caro, não lhe conheci pessoalmente (e desde já me arrependo disso), mas tenha a certeza de que falarei sobre você e ouvirei suas músicas pelo resto da minha vida. Você era o cara! 

Fica com Deus! E todo meu respeito e sentimentos aos seus familiares.  


domingo, 3 de janeiro de 2021

Os restos


Assim como na vida, o mundo do show business é complexo. Quem está de fora muitas vezes vende até a alma por uma remota possibilidade de acesso. E quem se consagrou dentro dele não admite, sob hipótese alguma, que outros venham roubar ou mesmo ofuscar o seu espaço, na maioria das vezes conquistado com muito suor e renúncia. E quando esses dois mundos se chocam, sai de baixo, pois somente os realmente fortes sobreviverão. 

Chicago, 1927. Para um homem ou mulher negra como Ma Rainey (Viola Davis) conseguir celebritismo é preciso ter algo de muito bom ou especial para entregar ao público. E acreditem: ela tem e de sobra. Entretanto, ela precisou enfrentar o mundo dos homens brancos e suas eternas injustiças. Por isso, essa mulher forte enfrenta quem quer que seja de frente, sem papas na língua, nem fazendo concessões. Ela sabe que se quiser se manter onde está é preciso encarar o touro pelos chifres diariamente. E o principal: entender que nunca, nunca mesmo, ela terá descanso ou será aceita como uma igual. 

Ela vai até um estúdio de gravação para produzir seu mais novo álbum e esperava que não fosse ter grandes problemas. A banda a acompanha faz tempo e sabe o seu lugar dentro do negócio. Contudo, como eu disse antes: o show business é complexo e cheio de novatos tentando chegar à fama. E ela esbarra no jovem - e convencido por natureza - trompetista Levee (Chadwick Boseman, em seu último trabalho nas telas de cinema), que tem como certo o seu sucesso vindouro. Resultado: um duelo de gerações recheado de preconceitos os mais diversos. 

A voz suprema do blues, do diretor George C. Wolfe, é o filme que eu estava aguardando com ansiedade para este final do ano. Fala do ontem para as minorias e os massacrados sem se esquecer do que o problema se tornou com o passar das décadas. E expõe a nu toda a dor e ressentimento de um povo (que, cá entre nós, tem todo o direito de ser ressentido do jeito que é, embora a classe privilegiada não tenha a capacidade de entender isso!).

Quando Levee esmiuça seu ponto de vista moderno para os outros músicos da banda, a chamada velha guarda, satisfeita com as míseras conquistas que realizou, começa um grande debate, feroz em suas intenções, sobre demagogia, religião, poder, sucesso e hierarquia. Quem manda e quem obedece, quem tem talento e quem só serve para acompanhar os outros, quem comanda o show e quem deve obedecer, etc etc etc. Há inclusive um monólogo extremamente questionador sobre a fé que vale por, pelo menos, um terço do longa. 

A história, que é baseada numa peça teatral de August Wilson, me ganhou logo cara nessa adaptação cinematográfica por sua caracterização irretocável, os figurinos e o clima da época. Para cinéfilos que adoram filmes históricos, verão na película um prato cheio. Porém, trata-se de uma narrativa de embates, logo de interpretações ora fortes ora precisas. E tirando uma participação feminina dispensável, achei o elenco coeso e ciente do que queria desde o primeiro fotograma. Prevejo algumas indicações ao Oscar. 

Detalhe que eu quase ia esquecendo: no quesito musical, o filme também não deixa a desejar, embora (eu confesso) quisesse ver um pouco mais. Mas não se trata de um musical estilo Broadway, logo volto à realidade para acompanhar as entrelinhas da história. 

E ao passar dos créditos, percebi estar diante de um grande ensaio sobre os restos da sociedade. 

Você, neste exato momento, deve estar pensando em casa: "o que ele quis dizer com isso?". A voz suprema do blues se debruça de forma inteligente sobre a vida miserável dos eternos excluídos da maior nação do planeta. Aqueles que só têm utilidade em época de eleição (algo que nós, brasileiros, conhecemos bem) e durante o resto do ano precisam se satisfazer com o que têm. E mesmo quando vencem na vida, por menor que seja, não passam de meros bobos da corte, "aqueles que entretém os verdadeiros seres humanos, os homens de bem". 

O longa de Wolfe me fez pensar em muita coisa boa que eu vi nessa linha ao longo da minha vida cinéfila. Falo de Bird, de Clint Eastwood; da minissérie Raízes (de 1977); 12 anos de escravidão, de Steve McQueen e o eterno Malcolm X, de Spike Lee. E isso é realmente muito bom. Por outro lado, também nos mostra o quanto continuamos involuindo como sociedade, principalmente: como raça humana. E isso é realmente muito triste. 

E só por essa contradição já vale a pena dar uma fuçada atrás dessa produção da Netflix (É... Outra vez ela!).