terça-feira, 30 de maio de 2023

Carpe diem


O cinema americano sempre viveu de seus ícones e divas eternas. Lembro-me de quando o ator Tom Hanks, durante a transmissão do Globo de Ouro em 2016, fez em seu discurso introdutório à entrega do Cecil B. DeMille Award ao também ator Denzel Washington uma correlação entre os sobrenomes de grandes atores de hollywood e a cultura cinematográfica dos EUA. Em outras palavras: o que ele disse, em outros termos, é que determinados artistas definem uma era, um século, uma década, etc. 

Pois bem: não conheço artista que possa definir melhor o que foram os anos 1980 em Hollywood do que o ator Michael J. Fox. Não me esqueço até hoje do dia em que encarei a fila do cinema (gigantesca, é bom deixar claro!) para assistir o - até hoje - fenomenal De volta para o futuro, de Robert Zemeckis. Foi um deslumbre para qualquer pessoa da minha geração. E olha que não se tratava da estreia do ator, muito menos ele fora o primeiro cogitado para o papel. E ainda assim não imagino outra pessoa interpretando o viajante do tempo Marty McFly naquela Delorean desembestada.

O tempo passou, o longa virou uma trilogia, Michael apareceu em outros projetos, mas sua vida foi atravessada de maneira covarde por um diagnóstico de Parkinson. E ele? Não fugiu da luta e decidiu enfrentar a doença de forma impecável, dando prosseguimento à carreira. Pelo menos, até onde pôde.

É exatamente disso que trata - entre, é claro, outras conversas mais debochadas e difíceis - Still: ainda sou Michael J. Fox, documentário de Davis Guggenheim (diretor de Uma verdade inconveniente, Malala e A todo volume, entre outros projetos).

O longa abre com o momento em que o ator descobre a doença num hotel na Rússia e eu simplesmente adorei a coragem do diretor de entrar de sola nessa questão que redefiniu a vida do astro. Mas fiquem tranquilos: há muito pelo que chorar de alegria (e nostalgia) por essa trajetória repleta de talento e persistência. 

Vemos entre desabafos, quedas e sessões de terapia, Michael em imagens de seus tempos de glória. Do começo complicado, tendo que provar ao produtor da série que era a melhor escolha para Caras e caretas (onde, inclusive, conheceu sua esposa, Tracy Pollan, com quem tem quatro filhos) até o convite de Spielberg para ingressar na franquia que o tornaria a figura mais popular de hollywood naquela década. Sua participação em filmes de grandes diretores, como Brian de Palma em Pecados de guerra; Paul Schrader em Luz da fama (ao lado da cantora Joan Jett) e Tim Burton em Marte Ataca!. E até mesmo as comédias família (Garoto do futuro, O segredo do meu sucesso, Aprendiz de feiticeiro, Por amor ou por dinheiro, etc) que ajudaram a construir seu legado na indústria.

Contudo, há também menções ao lado hardcore da sua vida: alcoolismo, as dificuldades motoras, a necessidade de se afastar das telas (embora sua carreira tenha ganho uma sobrevida com as dublagens). E é preciso destacar aqui um fato: nada disso é narrado de forma derrotista. Pelo contrário. Fiquei ainda mais fã do ator pela maneira como ele se relacionou com a própria doença, sem se rebaixar a ela, ou mesmo mostrar-se arrependido ou aniquilado. Há, inclusive, trechos em que ele brinca, de forma sarcástica, com sua própria condição. 

E isso, acreditem!, só os maiores conseguem realizar. 

Ao final da quase uma hora e meia de sessão (e por mim teria com folga mais meia-hora, pelo menos) ficou-me a sensação de estar Michael vivendo, mais do que seu ato final, um adorável carpe diem, como bem mencionou um dia o professor John Keating - vivido pelo  grande Robin Williams - em Sociedade dos poetas mortos, de Peter Weir. E ele está mais do que certo. 

Aproveite a vida, meu caro, com sua família. Momentos como esse são únicos e insubstituíveis. E, além do mais, você fez por merecer. Pode ter certeza. 


quinta-feira, 25 de maio de 2023

O Retorno do Jedi: 40 anos e um legado


"Ser ou não ser um fenômeno de bilheteria", eis a questão primordial (principalmente nos dias de hoje, segundo a indústria cultural).

É difícil - tem quem ache até impossível - precisar o que faz de um blockbuster um sucesso nato. Entretanto, quando ele consegue após anos e anos de tentativas e erros, dificilmente perde a sua relevância mesmo com o passar dos anos. Veja o caso, por exemplo, da franquia Star Wars, criada por George Lucas.

Ela começa seu legado em 1977 após um período em que o cinema americano era dominado pela nova hollywood, uma vanguarda cinematográfica que acreditava piamente que o controle criativo dos longa-metragens deveria estar nas mãos dos diretores e não dos estúdios. Que era possível enxergar a sétima arte além das bilheterias e megaproduções. E assim produziram obras-primas nunca mais esquecidas como O poderoso chefão, Táxi Driver, O exorcista, Encurralado, Chinatown e tantas outras. 

Com a virada para a década de 1980 iniciava na meca do cinema a era dos grandes blockbusters, produções voltadas para um público mais família, sem tantas críticas ou denúncias sociais e Star Wars abre esse segmento de forma avassaladora trazendo Luke Skywalker (Mark Hamill), Han Solo (Harrison Ford, que anos depois seria rotulado de "o astro do século"), Princesa Leia (Carrie Fisher), Chewbacca (Peter Mayhew), C3PO e R2D2 em meio a lutas com sabres de luz e batalhas intergaláticas que muita gente não acreditava terem sido feitas com maquetes. 

De estranho mesmo, para o público espectador da época, apenas a numeração da saga. Por que a história começava com episódios IV, V e VI? Na verdade, até hoje muita gente não entendeu isso. Pois bem: o sucesso foi tamanho que livros, histórias em quadrinhos, brinquedos, álbuns de figurinhas e toda sorte de produtos foram criados para dar prosseguimento à paixão pela história (e, claro, seus personagens icônicos).

E por que estou comentando tudo isso? Porque este ano - mais especificamente: hoje - O retorno do jedi, episódio VI que completa esta primeira trilogia (pois como os fãs bem sabem houveram outras!), dirigido por Richard Marquand, completa quatro décadas de existência e fanatismo. E mesmo sendo considerada por muitos críticos a parte mais fraca dessa trilogia ela não perdeu - pelo menos para mim - seu charme e vivacidade.

Na trama, o jovem jedi Skywalker já sabe que Darth Vader é seu pai e numa luta contra ele teve seu braço arrancado e agora usa um biônico. O império começa a construir uma nova estrela da morte e a resistência já planeja um ataque para destruí-la. Acompanhado por Leia e Chewbacca, Luke vai até Tatooine para resgatar Han Solo que foi congelado em carbonite e agora faz parte da coleção de Jabba, o hutt. 

Contudo, seu maior desejo é conseguir livrar o pai das garras do lado negro da força e agora que seu treinamento feito com Yoda em O império contra-ataca chegou ao fim ele acredita ter uma chance de realizá-lo. Mas para isso, é preciso enfrentar também o inescrupuloso Darth Sidious (Ian McDiarmid), detentor de um poder indescritível. 

Nesse episódio também vemos a adorável presença dos Ewoks ajudando a resistência a destruir um posto de controle do império escondido na selva. Eles chegaram até a ganhar projetos próprios como os dois filmes da série Caravana da coragem e até mesmo um desenho animado que fez muito sucesso aqui no Brasil nos programas infantis. Acho que foi a primeira vez em que eu me peguei perguntando onde uma produção cinematográfica encontrara tantos anões para fazer figuração. Minha irmã mais nova, quando viu o filme, quis ter um urso de pelúcia deles de qualquer jeito e infernizou meus pais para ganhá-lo de natal.

Porém, brincadeiras à parte, o legado de O retorno do jedi bem como toda trilogia Star Wars foi muito maior do que meramente licenciamentos e produtos comercializados. Ela abriu um precedente para a indústria nunca imaginado até então. Começava ali o conceito que, décadas depois, se tornaria o fandom dos dias de hoje, com salas de cinemas lotadas e universos estendidos a perder de vista. E, lógico, que nem todo mundo apoiou a ideia. 

Muitos me chamam de maluco quando digo isso hoje em dia, mas acreditem: hollywood jamais teria enveredado por franquias como Indiana Jones, Matrix, De volta para o futuro, O senhor dos anéis e tantas outras se George Lucas não tivesse sido pioneiro em 1977. Logo, O retorno do jedi não somente fecha um ciclo dentro de um arco de histórias como abre um outro ainda maior: o das narrativas longevas, repletas de continuações e histórias paralelas. E a prova viva disso é a atual indústria, que hoje em dia quase não produz obras originais (o que é motivo de críticas e retaliações). 

E mesmo com tantos detratores acusando a fórmula de repetitiva, sem versatilidade, presa ao passado, ainda assim ela consegue gerar um público impressionante, sempre à espera de um novo episódio, uma nova trama, um novo vilão, novas batalhas. Se isso não for sucesso, depois de quatro décadas (ou mais), eu honestamente não sei o que é... 


quarta-feira, 24 de maio de 2023

Tina


Parece até sacanagem (e provavelmente é). Mal perdemos a nossa rainha do rock, Rita Lee, e agora os EUA perdem a deles. E como é que faz agora? Simples: não faz. Apenas choramos, copiosamente.

Aos 83 anos de idade a lendária cantora Tina Turner, uma das maiores vozes que eu já ouvi em toda a minha vida, nos deixa e a sensação que me fica à primeira vista é: "essa podia ser imortal". Parece clichê que se repete o tempo todo, mas é a mais pura verdade. Nunca estaríamos preparados para sua partida. Logo, o choro é o único legado possível para reverenciar essa mulher camaleônica em todos os sentidos. 

Anna Mae Bullock enfrentou a família, a instituição religiosa, um sistema de valores deturpado e opressivo, um casamento fadado ao fracasso com Ike Turner onde a violência doméstica ditava o tom do matrimônio e uma cultura musical eminentemente machista e mesmo quando tudo parecia perdido - ela, falida, arruinada, divorciada - deu a volta por cima, lotou estádios e conquistou corações os mais diversos ao redor do mundo.

Mais do que isso: foi exemplo vivo de mulher empoderada muito antes desse conceito sequer existir dentro da cultura pop. E como esquecer dela dançando, rebolando, furiosa, autêntica, principalmente quando ela cantava em seus shows 'Proud Mary', a minha canção favorita dela? Você nunca viu isso? Meu Deus! Então não faz a menor ideia do que eu estou sentindo nesse exato momento.

Em seu  histórico show aqui no Maracanã, em 1988, entrou para o Guinness Book pelo recorde de público. Procurem vídeos no you tube e prestem atenção no público em êxtase, alucinado, aplaudindo, cantando junto. Sim, Tina causava isso por onde passava. Seu show era praticamente um delírio coletivo. E quem esteve lá não esquece jamais. Não à toa foi a primeira mulher negra a estampar a capa da Rolling Stone norte-americana. 

Outro momento marcante de sua carreira, que não me sai da cabeça toda vez que penso nela, é sua participação como a vilã Tia Entity em Mad Max - Além da Cúpula do Trovão, longa de George Miller lançado em 1985. Ela praticamente roubou toda a atenção até então voltada para o protagonista, o astro Mel Gibson (e reza a lenda que eles se bicaram durante a produção muito por causa disso!).

Oito anos depois, o diretor Brian Gibson realiza a extraordinária cinebio Tina - A Verdadeira História de Tina Turner, onde fala do início de sua carreira, do casamento tumultuado e violento e sua associação ao budismo. Ela foi vivida de forma intensa pela atriz Angela Bassett, mas confesso que até hoje não perdoo a Academia de Artes e ciências cinematográficas por não ter dado à Laurence Fishburne o seu Oscar de melhor ator por sua interpretação visceral como Ike Turner.

Entre 2018 e o ano passado andou sofrendo duros golpes da vida. Perdeu dois de seus quatro filhos e acabou por se exilar ainda mais na Suíça, onde vinha morando nos últimos anos. Este ano, parece, não aguentou mais tantos revezes. E com isso a indústria fonográfica e os fãs perdem uma de suas maiores vozes. Dessas que dificilmente terão uma sucessora à altura. 

Mas como o legado dela é mais importante do que tudo, encerro essa singela homenagem com uma lista básica - além da já citada 'Proud Mary' - para iniciados, entendidos e apaixonados por sua música, que é eterna:

'What's love got to do with it'

'We don't need another hero'

'I don't wanna lose you'

'The best'

'Nutbush city limits'

'Private dancer'

'Typical male'

'River deep, mountain high'

'Addicted to love'

'Let's stay together'


Fica com Deus, rainha! 


terça-feira, 23 de maio de 2023

Othon Bastos, 90 ou O sobrevivente


Não são nove ou noventa dias. Não, senhores leitores! São nove décadas de vida e uma carreira brilhante, cheia de nuances interpretativas e, infelizmente, para alguns cinéfilos alienados de hoje em dia, extremamente subestimada. Muitos nem sequer sabem quem ele é (mas deveriam, muito!).

A quem me refiro? Ao ator Othon Bastos, que hoje completa 90 anos de idade e de uma trajetória ímpar dentro do cinema e do audiovisual brasileiro.

Assim como Antônio Pitanga, Hugo Carvana, Jardel Filho, José Lewgoy, Norma Bengell, Maria Lúcia Dahl, Helena Ignez e tantas outras feras (a lista é imensa e desde já peço desculpas pelo esquecimento de quem quer que seja), ele faz parte de uma história gloriosa da nossa sétima arte. Olhe sua filmografia no site do IMDb e certamente - como eu - ficará deslumbrado. 

É daqueles artistas magníficos que já incorporaram praticamente de tudo nas telas (seja tv ou cinema): foi presidente da república, cangaceiro, técnico de futebol de uma era gloriosa do Botafogo, repórter, Bentinho (protagonista célebre da obra seminal de Machado de Assis), professor, coronel, padre, delegado, dono de bar, o religioso Antônio Vieira, visconde, juiz, Josef Mengele, brigadeiro, motorista, embaixador, mágico, dono de drive-in, mordomo cafajeste... ufa! Haja tempo e talento. Para mim, nesse sentido, ele é meio que o Anthony Hopkins nacional. Um faz-tudo da sétima arte. 

Minha última experiência assistindo um longa no qual ele trabalhou foi O paciente: o caso Tancredo Neves, primeiro presidente eleito após o regime militar que sequer chegou a assumir o poder. Procurem! Seu trabalho é brilhante e o filme do diretor Sérgio Rezende - o mesmo de Lamarca e Zuzu Angel - merecia, na época em que foi lançado, bem mais destaque do que realmente teve. 

Contudo, ele ficou reconhecido no país pela carreira que construiu junto aos grandes diretores que se notabilizaram seja no período do cinema novo como também do cinema marginal: Glauber Rocha (Deus e o diabo na terra do sol e O dragão da maldade contra o santo guerreiro), Ruy Guerra (Os deuses e os mortos), Roberto Pires (Tocaia no asfalto), Paulo César Saraceni (Capitu), Leon Hirszman (São Bernardo), etc. Entre os seus trabalhos mais recentes, vale destacar sua participação em Central do Brasil, de Walter Salles; O bicho de sete cabeças, de Laís Bodanzky e O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto (que representou o país como candidato ao oscar de melhor filme estrangeiro em 1998)

Já na televisão participou de marcos da teledramaturgia como as novelas Roque Santeiro e Selva de pedra e as minisséries Tenda dos milagres (baseada em obra de Jorge Amado) e Agosto (adaptação do romance homônimo de Rubem Fonseca). 

E embora tenha reclamado recentemente, em entrevista, da falta de papéis para a sua geração, honestamente não o vejo se aposentando tão cedo. Ele me parece bem mais um remanescente (melhor, um sobrevivente) da grande era da nossa arte dramática. E isso não desaparece assim tão fácil do radar. Não mesmo. 

Que venham os 100, Othon! Assim como aconteceu com o também gigante Kirk Douglas, do eterno Spartacus. Você também merece.  


quinta-feira, 18 de maio de 2023

Os últimos 8 dias


Desde que li Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, com seu narrador-defunto magistral, sou intrigado com o tema da morte. Seja na literatura, no cinema, na música e mesmo nos quadrinhos, há algo de misterioso na finitude da vida que sempre chamou a minha atenção (em alguns casos, chegando a parar o meu dia para saber o final daquela jornada - escrita, musical, audiovisual, etc - o quanto antes).

Talvez - me pego pensando às vezes - seja uma preocupação com a minha própria vida. Minha eterna dificuldade de lidar com ela e com isso que chamamos corriqueiramente de sociedade, a cada dia mais cruel, injusta e interesseira.

E ao terminar de ler o enxuto, porém fantástico Frango com ameixas, de Marjane Satrapi (mesma autora do fenomenal Persépolis), mais uma vez me vi completamente envolvido pela narrativa seca, difícil, porém de uma verdade assustadora, tanto que é inspirada numa história vivida pela família da própria Marjane. 

Acompanhamos Nasser Ali Khan, um músico frustrado pelo que sua vida se tornou (na verdade, suas escolhas de vida e contratempos ao longo da jornada o levaram a uma existência vazia). Após uma briga com a esposa ela quebra seu Tar, o instrumento musical que praticamente define sua razão de existir. Irritado, tenta comprar um substituto, mas se depara com tantos exemplares inferiores e de má qualidade, que chega à conclusão de que sua vida simplesmente perdeu a única finalidade que tinha. 

Resultado: ele decide morrer. Para isso, permanece isolado em seu quarto por oito dias, distante da mulher e dos filhos, aguardando a famigerada hora. A esposa; a filha pequena, sua favorita; o irmão (um antigo opositor do regime no Irã, agora casado e acomodado à realidade); até mesmo a morte o visitam e tentam trazê-lo de volta à realidade. Mas não adianta. Nasser está decidido de que sua hora chegou.

Nesse momento, memórias da morte da mãe e de um amor do passado não correspondido vêm à tona e bagunçam ainda mais o seu juízo de valor, fazendo com que ele repense escolhas feitas e erros cometidos. Nasser não foi um grande exemplo de conduta ou de homem responsável e passou muitos anos se lastimando por ser preterido dentro da própria família. E isso fez com que ele desenvolvesse uma personalidade difícil, sempre acusando os outros de delitos que ele também cometera tempos atrás.

Abreviando a discussão: o que vemos em pouco mais de 80 páginas é um interessante estudo de caso sobre uma vida melancólica que foi construída em bases frágeis, pois seu protagonista preferiu se acomodar à realidade do que realmente lutar pelo que queria. E como pano de fundo a esse tour de force existencial pequenas ironias e informações sobre como viver no Irã, um país repleto de regras que se esconde atrás de uma cultura excessivamente religiosa e enfadonha. 

Poucas vezes, nos últimos anos, li algo tão sucinto e ao mesmo tempo tão direto ao ponto quanto Frango com ameixas (e antes que me perguntem: o título faz menção ao prato favorito do protagonista; Logo, não esperem algo na linha "receitas culinárias iranianas", pois não é disso que se trata a graphic novel).

Faltou comentar algo? Se faltou, melhor assim. A trama é tão cheia de nuances, arrependimentos e interpretações as mais diversas que eu não quero estragar a diversão de ninguém. Mas insisto num detalhe importante: o poder de concisão da autora, mesmo a serviço de tantas (possíveis) histórias já vale pela obra toda. 


domingo, 14 de maio de 2023

O teatro nacional ainda ruge... Que bom!


Marmelada de banana

Bananada de goiaba

Goiabada de marmelo...


Quem não se lembra do Sítio do picapau amarelo, obra seminal do escritor Monteiro Lobato (1882-1948), que abrilhantou as manhãs de muitas crianças no Brasil com seu programa exibido na Rede Globo? Pois então... O tempo passou, Zilka Salaberry - que interpretava a eterna Dona Benta - faleceu, bem como outros artistas da trama original, ganhou nova versão (menos antológica, é bom que se diga!), seu autor vem sendo perseguido como racista há praticamente uma década e mais uma coisinha aqui, outra ali.

Mas o principal: foi rediscutida numa peça corajosa e imprescindível para entendermos o Brasil de hoje. 

Agropeça, espetáculo do Teatro da Vertigem dirigido por Antônio Araújo e com texto de Marcelino Freire, se apropria dos personagens míticos dessa obra ímpar - Visconde de Sabugosa, Emília, Tia Anastácia, Narizinho, Pedrinho, etc - e os põe em contato com aquilo que nosso país virou de mais sórdido e reacionário nos últimos anos. E é, claro, muito bem-vinda nesse sentido!

A companhia teatral, famosa por seus espetáculos visionários (muitos deles fora do teatro convencional), aborda questões sociais que pulverizaram o país nos últimos tempos, em alguns casos de forma até macabra: gordofobia, diversidade de gênero, o agronegócio de viés opressor, discursos políticos exaltados, raça, religião, trabalho análogo à escravidão e, principalmente, a branquitude incômoda que nos acompanha como "nação" desde 1500.

No palco o sítio dá lugar a uma arena de rodeio onde locutores se sucedem, cada um apresentando o show à sua maneira. Emília, a boneca de pano, é vivida - pasmem! - por um travesti, Dona Benta faz Tia Anástácia assinar um papel que garante que ela não é uma escrava da família (embora não receba salário), um boi é lançado e domado diante do público, é feita alusão ao 'patriota do caminho' (meme que ganhou projeção durante os acampamentos nos quartéis pós-última eleição), toca o clássico da música sertaneja "Romaria"...

Sim, meus caros leitores... Assim como 1984, clássico de George Orwell, Agropeça também é uma distopia. E uma bem poderosa e divisiva.

Contudo, nunca precisamos tanto dela. A cultura, sempre boicotada e empurrada para o fim da fila nesse país que adora uma ignorância coletiva, depende - e muito - de projetos (praticamente provocações) como esse. O segmento pensante da sociedade brasileira deveria agradecer. De joelhos, se possível. 

Sim, ainda há fúria e coragem no teatro brasileiro. Ele ruge, vocifera, agride, faz seu papel.  E a melhor parte: permanece de pé, graças a Deus!

Corre agora, gente, antes que ele saia de cartaz.  


terça-feira, 9 de maio de 2023

A rainha do rock se foi


A timeline do meu perfil do twitter se enche de despedidas, homenagens, lembranças nostálgicas e muita música, boa música. Com toda a loucura - e ai dela se não o fosse! - ainda assim praticamente encantou a MPB e o público em geral (que vivia lotando seus shows, que eu enxergava como grandes catarses, experiências praticamente psicodélicas). E assim descubro, a contragosto, que perdemos a nossa rainha do rock. 

"R.I.P Rita Lee", estampam os jornais, tabloides, sites... Um deles, lá de São Paulo, de forma terrível (nem merece que eu o cite aqui e o Léo Jaime, além do mais, já disse o suficiente sobre essa gente) estampa no título do epitáfio uma estupidez, coisa de gente sem noção que se autointitula a grande mídia. O dia dele - ou deles - também chegará, podem aguardar.

Mas o que interessa aqui mesmo é: como falar de Rita Lee, dessa mulher pioneira, visionária, à frente do seu tempo, debochada, desbocada, dessa mãe loucaça que praticamente todo mundo queria saber como é, como funcionava a cabeça dela e não conseguiu, e está tudo bem, está tudo certo, o rock também é feito de interrogações para a eternidade?

Rita Lee Jones - eu adorava esse nome, que devia figurar em todas as capas de álbuns dela - foi um capítulo gigantesco da minha formação musical. Com ela aprendi a amar, a reclamar de tudo, a resmungar, a odiar o que era careta em excesso, a discordar do que eu quisesse, como quisesse, quando quisesse. E acreditem: ainda foi pouco. Muito pouco.

"Ovelha negra", "Pagu", "Jardins da Babilônia, "Doce Vampiro", "Bwana" (que certa vez, num show, ela disse que parou de cantar porque achou a canção evangélica em excesso), "Erva venenosa", "Mania de você", "Desculpe o auê", "Caso sério", "Agora só falta você", "Papai me empresta o carro" (minha canção favorita dela), "Esse tal de Roque Enrow", "Banho de espuma", "Baila comigo", "Chega mais", "Nem luxo, nem lixo", "Ando meio desligado", "Miss Brasil 2000"... A lista é imensa e rendia sozinha um livro - e com folga.

E isso sem contar o que ela (ainda) poderia ter produzido, não fossem os problemas de saúde nos últimos anos. 

A vida dela, tão louca quanto a própria carreira, daria um filme em plano-sequência com contornos hollywoodianos. Presa durante a ditadura militar ainda grávida, não abaixou a cabeça para um sistema covarde que se outorga o direito de delimitar a ética alheia. Até seu disco com os artistas da banda Toto foi cancelado, incomodou aos eternos falsos moralistas.

Podíamos vê-la se requebrando no Rock in Rio de 1985; num comercial de volta às aulas da Mesbla ao lado de João Penca e seus miquinhos amestrados; interpretando a indefectível Rê Bordosa no longa animado Wood & Stock: sexo, orégano e rock n' roll, de Otto Guerra, inspirado nos personagens do cartunista Angeli; meia nua na capa de um dos seus discos, abraçada ao marido, Roberto de Carvalho. Não importa. Ela era sempre a mesma, fera indomável, que não ouvia desaforo de ninguém e vivia a vida do seu jeito. 

Em 2016 lançou sua Uma autobiografia que deu também o que falar, até mesmo entre a classe artística, seja por sua franqueza ou por seu discurso direto, sem rodeios. Resultado: virou best-seller na hora. De triste mesmo só o câncer de pulmão, que a tirou de nós, fãs eternos. E justo quando ela se preparava para lançar, no final de maio, sua Outra biografia, livro contando sobre a sua luta contra a doença. 

Em sua obra anterior ela encerra a narrativa profetizando a própria morte. Disse que político algum se atreveria a ir ao enterro dela (não teriam coragem) e tocariam suas músicas sem cobrar jabá. Mais: disse que seu maior gol na vida - e olha que teve aquele que o Casagrande fez no Corinthians só pra ela - foi ter, pelo menos, feito muita gente feliz. 

Você não sabe o quanto, rainha. Fica com Deus! Hoje, amanhã e sempre. Desse fã tresloucado que vai te ouvir pelo resto da vida, nem que eu tenha que brigar com os vizinhos da minha rua para isso.  


sábado, 6 de maio de 2023

O Brasil é isso aí.


É impressionante o fôlego e a capacidade de permanecer atual dentro do cinema brasileiro de Rio, 40 graus, longa do mestre Nelson Pereira dos Santos. Não foi à toa que o diretor virou imortal da ABL e tudo (para desgosto dos haters e críticos). São 68 anos de estrada mostrando um Rio de Janeiro (e, por conseguinte, um Brasil) que não somente não envelhecem como permanecem contraditórios em sua essência. 

Acompanhamos como uma crônica - o site IMDb se refere a ele como um "semi-documentário", o que não deixa de ter um certo fundo de razão - a saga de uma metrópole cheia de distorções e covardias as mais diversas, que (muitas vezes) se esconde atrás da fachada de seus cartões postais e clássicos da MPB. 

Os meninos que vendem amendoim na praia de Copacabana lotada e são vilipendiados em seus direitos básicos; os fanáticos pelo futebol que hiperlotam o Maracanã (não esse de hoje, desfigurado, mas o clássico, o dos tempos de glória) e se apegam doentiamente a seus ídolos; os interesses sórdidos da elite e da classe política que nada mais faz do que enganar o povo e viver de pose; os relacionamentos amorosos efêmeros, mal pensados, geridos no calor do momento, sem pensar; o samba nas favelas cariocas, sempre jogado para escanteio ou usado como desculpa para alavancar a cultura popular, etc...

Nelson Pereira conhecia seu país como poucos e mostrou ele sem desculpas ou álibis no cinema novo (movimento cinematográfico que hoje muitos querem execrar ou condenar) e embora este exemplar antecipe a vanguarda, já mostra correlações com o trabalho que ele mostraria nos anos seguintes.

Em Rio, 40 graus nada acontece por deslize, seja o atropelamento do menino favelado, seja o desfile da saudosa Portela no morro, numa época em que ela ainda era um dos epicentros do nosso carnaval. Isso tudo embalado ao som de "Eu sou o samba", clássico seminal do cantor Zé Kéti, que abrilhanta ainda mais a produção. 

Junto com Terra em transe (de Glauber Rocha), Iracema - uma transa transamazônica (de Jorge Bodanzki), Cabra marcado para morrer (de Eduardo Coutinho), Eles não usam black-tie (de Leon Hirszman) e Macunaíma (de Joaquim Pedro de Andrade) compõe uma fauna indispensável para entendermos - pelo menos na superfície - o que é o nosso audiovisual e, principalmente, nossa sociedade torta, hipócrita, perdida. E isso para ficar nos mais óbvios e consagrados.

Ao fim do registro impecável, o gosto amargo na boca e a vontade de perguntar "o que é esse tal de Brasil?". Pois é isso mesmo. Mesmo depois de seis décadas, AINDA é isso. Infelizmente. Mas ainda assim como é bom ver tudo isso retratado, sem rodeios, sem falsos moralismos, sem bundas e palavrões vazios. Apenas mais um dia nessa comédia dos erros que nunca chega ao fim.


terça-feira, 2 de maio de 2023

A festa da insignificância


Vivemos uma era de absurdos, ressentimentos e ostentacionismos. Isso é um fato visível (você pode até não concordar comigo - e é um direito seu -, mas a realidade todo dia prova o contrário). E num cenário como esse lógico que a chamada cultura pop, ou o que sobrou dela, irá exibir suas garras com força. 

Damos destaque ao que existe de mais vazio, cafona, chinfrim, fora do tom, tresloucado, insano, e mesmo assim aplaudimos de pé. Na maioria das vezes, é bem verdade, porque são festas patrocinadas por uma elite vazia que nada mais faz de relevante no mundo do que chamar atenção para si mesma e suas excentricidades.

E melhor exemplo disso não há na sociedade contemporânea do que o famigerado Met Gala, cuja edição 2023 rolou ontem. Um "evento" (as aspas são de propósito) criado pela publicitária Eleanor Lambert em 1948 - logo, lá se vão 75 anos - com o intuito de arrecadar fundos para o Costume Institute do Metropolitan Museum of Art, em Nova York. Mas isso, meus caros amigos, é a teoria. 

Na prática o que vemos é um desfile bobo de celebridades e em alguns casos subcelebridades, vestidas com roupas extravagantes produzidas por grifes famosas que certamente se algum de nós, reles mortais proletários, as vestíssemos na rua, seríamos chamados na mesma hora de ridículos ou 'sem noção'. Mas como são estrelas do show business e endinheirados, façam vista grossa.

É preciso, inclusive, focar no termo roupa. Sim, preparem-se para ser surpreendidos (e isso não é um elogio. Longe disso...). Procurem as imagens da festa no twitter. Nesse momento entendi porque certas publicações de moda criaram a famosa lista "dos mais mal vestidos". Até o filme vencedor do Oscar desse ano, Tudo em todo lugar ao mesmo tempo, dos Daniels, no quesito figurino perde de lavada em alguns momentos para os trajes escolhidos. 

Há gente linda, é bom avisar pois não quero ser acusado de intolerante e radical. Gisele Bündchen e Margot Robbie estavam exuberantes em suas escolhas. E tem também aqueles que não arriscaram e preferiram o velho terno preto básico (casos de Robert Pattinson e Alexander Skarsgård). Mas o excêntrico, o surreal e o what a fuck! básico ditam as regras desse espetáculo que faz com que a expressão circo dos horrores se torne amadora.

Pedro Pascal, ator fetiche do momento por The last of Us e O mandaloriano, foi de short preto com uma sobrecasaca - acho que era isso - vermelha. Tem foto dele com o Bradley Cooper. Procurem! Jared Leto, vocalista do 30 seconds to Mars e, para mim, o pior Coringa de hollywood, foi fantasiado de gato. Não, você não leu errado, não! Ele parecia um figurante fantasiado de um musical ruim da Broadway (mas dei um desconto por ser o Jared, que tem fama de "fora da casinha"). Rihanna parecia dentro de um puff. Preciso ver as fotos com ela de novo para tirar minhas dúvidas, mas... Sério. Não foi muito melhor do que isso. E Doja Cat, sinônimo vivo de eventos como esse, foi de gata do Karl Laegerfeld e ainda miou durante a entrevista.

Nesse momento eu pensei: "É... Já deu de insanidade pra mim".

Já o mais importante, qual a relevância disso - de todo esse exibicionismo sem razão de ser e regado a paparazzis alucinados - para a história da cultura popular no mundo, eu jamais vou saber responder. Mesmo. E muitos ainda dirão: "e está tudo bem. Já teve gente que chamou até o enterro do Michael Jackson de show business". Pois é...

Ao fim da "programação" (estou adorando esse negócio de aspas hoje), lembrei-me de um romance do escritor Milan Kundera, o mesmo do clássico A insustentável leveza do ser - que virou filme com Daniel Day Lewis e Juliete Binoche -, chamado A festa da insignificância. No livro, Kundera detona as pessoas que perderam a capacidade de rir do leviano, das pequenas coisas, tornando o mundo sério em demasia. 

Gostaria de saber se ele viu o Met Gala ontem e se concordaria que dá para chamar aquilo de cultural. Honestamente, acho que até ele ficaria na dúvida. Que saudade dos tempos em que artista era sinônimo de outra coisa e não de poses, flashs, curtidas em redes sociais e notas de rodapé em sites sensacionalistas!!!