domingo, 27 de setembro de 2020

O homem que viveu no passado


Adoro cineastas que fujam do convencional, que experimentem, que na sua obra dialoguem com seus demônios interiores, que reconstruam a todo momento o seu processo criativo, que fujam de si mesmos à procura do, às vezes, inatingível. Isso sim é a verdadeira sétima arte. 

E dentre os nomes que mais chamam a minha atenção nesse sentido há um documentarista nacional que eu trato como um verdadeiro fetiche: João Moreira Salles. Há anos quero assistir à Santiago, seu projeto mais pessoal, e não consigo encontrá-lo em lugar nenhum. Para minha felicidade o canal curta esta semana atendeu minhas preces e o exibiu. Desde já adianto minha impressão: sublime! 

Salles vai de encontro às memórias do mordomo de sua família, um homem de extraordinária memória e sabedoria. Procura-o, já aposentado, em seu apartamento, e começa a gravar uma série de depoimentos mágicos. Ele próprio se intitula "um homem que viveu no passado". Roda seu filme. Mas, infelizmente, não consegue montá-lo. Algo o impede de realizar a decupagem. Bloqueio criativo? Quem dera fosse fácil assim explicar a mente dos diretores de cinema!

Passam-se 13 anos que as filmagens foram realizadas e só restam ao diretor 9 horas de registro audiovisual bruto e 30 mil páginas transcritas pelo próprio Santiago onde estão reunidas histórias sobre a aristocracia mundial, uma paixão eterna deste homem. E ele, Salles, tenta mais uma vez montar o filme. Mais do que isso: ele precisa recomeçar do zero. E é justamente esse aspecto o legado mais importante do documentário. 

Enquanto Santiago narra suas façanhas, relembra as festas, o período que conviveu de perto com presidentes (JK e João Goulart o tratavam como um igual, segundo diz), reza em latim - um dos momentos mais poderosos do longa -, toca castanholas, confessa seu fascínio pelo boxe e o amor pelas flores e madonas, o diretor luta consigo mesmo para dar sentido e coerência a todo este material extraordinário. 

A voz de Salles pontua toda a trama e realça seus dilemas, explica seus erros e escolhas passadas que o levaram a não concretizar o filme 13 anos antes. E é interessante e reflexivo - para mim então, cinéfilo de carteirinha desde os 10 anos, nem se fala! - acompanhar o trabalho do documentarista, que tenta entender onde falhou, porque escolheu o caminho A e não o B. Recomendo de olhos fechados esta pequena jóia para estudantes de cinema. Trata-se, em suas entrelinhas, de um making of poderosíssimo. 

Ao final da exibição na tv a cabo chego a duas conclusões distintas: 1) é o primeiro filme de João Moreira Salles que eu vejo que não mantém uma relação, digamos, direta com questões pertinentes ao Estado ou a política partidária. Como eu disse antes: seu projeto mais pessoal, que o fez lembrar a todo momento de sua infância e de seus pais, ambos já falecidos. E 2) o documentarista estreita de vez as relações entre ficção e realidade sem tornar a experiência fílmica caricatural ou falsa. 

É daquelas produções que me fazem pensar o quanto o povo brasileiro é completamente louco por não valorizar a sua própria produção audiovisual. Como assim não admirar tamanha beleza estética ou apuro narrativo? Só mesmo um ignorante relegaria tal projeto à condição de esquecimento ou deboche. 

Indico Santiago com toda a devoção que somente os fãs mais apaixonados do cinema são capazes de reconhecer para os cidadãos brasileiros sobreviventes que ainda acreditam na força da nossa sétima arte (ao contrário daqueles que torcem doentiamente pelo fim das leis de incentivo e de órgãos como a Ancine). 

É de mais reflexões e exercícios de estilo como esse que nossa indústria cultural anda precisando. Urgentemente.   


quinta-feira, 24 de setembro de 2020

O messias que incomoda


Desde que eu comecei a escrever sobre arte e cultura, coisa de uns cinco anos atrás, me dei conta de uma verdade inabalável: a de que a arte é provocadora por excelência. Não importa se você gosta ou não do resultado, daquilo que foi proposto pelo escritor, pelo encenador teatral, pelo cineasta, pelo expositor, pelo músico, etc... Ela, a arte, continuará incomodando, com o intuito de fazer você, espectador, leitor, ouvinte, sair do óbvio, daquilo que chamamos costumeiramente de senso comum. 

Entretanto, por vezes, a arte incomoda antes mesmo de ser vista, sentida, ouvida, lida. Ela incomoda por conta de um fragmento da sociedade que não consegue enxergar nada, absolutamente nada, além do seu próprio umbigo. E acreditem: como vivemos isso no Brasil da última década! 

Dito isto, confesso: foi uma grata surpresa assistir online pelo youtube - mesmo que seus detratores me chamem de canalha, devasso, imoral, entre outros "elogios desagradáveis" - a peça teatral O evangelho segundo Jesus, a rainha dos céus, de Jo Clifford. Trata-se de um espetáculo provocador até a medula e ele precisa ser assim, num país tão cheio de demagogos religiosos. 

A peça de Clifford, que foi adaptada para o português e dirigida por Natália Mallo, já nasceu polêmica mesmo em sua origem. E tudo porque traz a figura de Jesus Cristo representada por um travesti, a atriz Renata Carvalho (brilhante, por sinal). Resultado: censuras e mais censuras e um festival de declarações as mais odiosas ao espetáculo, chegando a ser boicotada em alguns estados por onde passou. 

Contudo, o Jesus de Renata não é nada mais nada menos que o dedo na ferida que nossa sociedade hipócrita e falsamente cristã precisa ouvir. Em outras palavras: ele é o messias que incomoda, pois não atende as expectativas daqueles que vivem para cima e para baixo na cidade com suas bíblias embaixo do braço (muitos deles sem sequer entender um linha do livro) pregando discursos falaciosos, mas cheios das chamadas "boas intenções". 

Em cena, Renata expõe Jesus a nu (como, aliás, foi exposto e muito em sua época; que o diga em sua crucificação), troca de roupa, rebola até o chão ao som do funk pancadão, conversa com o público, flerta com um ou outro, debocha dos eternos recalcados que não conseguem viver suas vidas sem incomodar aos demais, e nem por isso deixa de repartir o pão com seus fiéis ou mesmo relembrar de passagens marcantes de sua vida. É o mesmo Jesus que outrora interveio a favor de Maria Madalena, apedrejada por homens covardes e cheios de moral, e que transformou água em vinho numa festa. 

Agora: vai explicar isso aos fanáticos que veem tudo ao pé da letra e não dão margem para rediscutir a própria história. Aqueles que acreditam que Jesus é loiro e tem olhos azuis.

Infelizmente, vivemos num mundo de extremismos visíveis e provavelmente o mais visível de todos eles seja essa moral religiosa arcaica e enfadonha de certos cleros. Não podemos enxergar além da bolha. Nos encontramos numa versão tecnológica, porém mal feita, do que Platão chamou de A alegoria da caverna. E ai de quem fugir dela! 

O tempo passa, o tempo voa (eu sei... roubei a frase de um antigo comercial de tv), mas a ignorância não só continua numa boa como vem rendendo frutos cada dia mais mórbidos. Temos de enfrentar diariamente o delírio daqueles que desejam a inércia, o conservadorismo tendencioso, a falta de apreço pela mudança. Mas como a própria atriz fala em certo momento do espetáculo: "ela virá, quer vocês queiram ou não".

Ao final do monólogo - que foi gravado de uma apresentação feita no Teatro Oficina, em São Paulo, do mestre José Celso Martinez Corrêa -, enquanto o público aplaude a atriz, completamente extasiado, penso no quanto emburrecemos como nação. O quanto perdemos a capacidade de olhar para o outro. 

Não queremos debater sobre nada: fé, religiosidade, sexualidade, corpo, padrões... Nada mais é pauta. O importante, para muitos, para aqueles que estão no poder inclusive, é a manutenção do mesmo. E quem pensa diferente é sumariamente atacado por isso.

Em suma: viramos uma pátria de covardes.

E, nessas horas, como é bom saber que ainda tem gente corajosa neste país, disposta a tudo. Principalmente a não dar o braço a torcer, a enfrentar, a espernear, a propor um outro olhar. Longa vida a elas!

P.S (eu quase ia me esquecendo de dizer isso): Você, que ficou puto com o especial de natal do Porta dos Fundos, A primeira tentação de Cristo, e com o desfile da Estação Primeira de Mangueira no carnaval desse ano, na boa... Isso aqui não é pra você. Mesmo. 

domingo, 20 de setembro de 2020

Yin e Yang no Vaticano


Quando eu era mais novo meus pais volta e meia me perguntavam quais os países ao redor do mundo que eu gostaria de conhecer, se eu pudesse. E depois que eu respondia a pergunta eu sempre me dava conta de que haviam duas regiões do mundo que eu não fazia a menor questão de conhecer. A primeira é o Oriente Médio, por conta da eterna mania que eles têm de transformar a violência em demagogia religiosa. E a segunda é o Vaticano. 

E quando eu disse isso ao meu pai certa vez e ele me perguntou o porquê eu lhe respondi: "é porque eu tenho a sensação de que a verdade não existe naquele lugar; tudo é tão bonito em excesso, escondido em excesso, inverossímil em excesso e dizem que é a casa de Deus, um homem simples, filho de um carpinteiro. Mais parece o templo da mentira, isso sim". 

Anteontem, depois de me deparar com mais de cinco cópias defeituosas em DVD do longa Dois papas, do brasileiro Fernando Meirelles - cheguei até a pensar que fosse alguma espécie de maldição ou trama sórdida para que eu não visse o filme -, enfim consegui assisti-lo e confesso: consegui diminuir um pouco meu preconceito sobre a terra dos pontífices. 

A trama gira em torno da relação conturbada mas de respeito entre o recém empossado Papa Bento XVI, após o falecimento do Papa João Paulo II e o então cardeal Jorge Bergoglio, que anos depois assumiria o papado como Francisco (interpretados de forma sublime pelos atores Anthony Hopkins e Jonathan Pryce). E mais importante do que isso: desde o primeiro fotograma a película se propõe um interessante debate sobre fé e a jornada do homem no mundo contemporâneo. 

Bento XVI parece, à primeira vista, um homem do passado, de um ontem cada vez mais distante, sentado sobre um livro de regras impreciso, mas que precisa ser seguido à risca. Culpa a própria civilização ocidental por ter se tornado o que se tornou e chama todas as modernidades do século XXI de "aberrações contra a moral cristã". E justamente por isso é visto por muitos fiéis católicos como um mero nazista que não merece a batina que veste. Contudo, por baixo de sua figura carrancuda, reside um homem cansado de enfrentar tantos demônios pessoais. Em suma: ele anda duvidando dos planos de Deus para a sua pessoa.  

Já Jorge é o retrato vivo da modernidade, do que a sociedade está querendo mas ao mesmo tempo tem medo de se transformar. Não acredita em luxos e pomposidade, se assusta de vez em quando com a grandiosidade do Vaticano, chama a igreja de narcisista e prefere suas dúvidas a essa eterna mania dos conservadores de dizerem "eu tenho certeza" sobre tudo. E mesmo assim carrega em seu íntimo sequelas terríveis do passado na Argentina. 

E a priori pensamos: esse debate nunca dará certo, pois eles são yin e yang. Contudo, yin e yang também são complementares em suas intenções e precisam chegar a um denominador comum. O catolicismo precisa disso. A humanidade, então, nem se fala. E o mundo, cada vez mais autodestrutivo e intolerante, implora que eles se façam entender. E eu disse entender, não concordar em tudo. 

A trilha sonora do longa vai de Abba à Mercedes Sosa sem esquecer dos Beatles e achei curioso que o diretor não apelasse para óperas, música clássica ou algo mais tradicional ou sisudo. Mas quer saber? Que bom que ele assim o fez. Do contrário só legitimaria o cansaço do mundo - e da sociedade - em continuar acreditando que homens religiosos não descontraem ou mesmo se divertem. Jorge (e mesmo depois, já como Francisco) provou que eles, os passadistas, estão errados. Dança tango, come pizza e torce fervorosamente pelo seu time do coração, o San Lorenzo. 

Ou em outras palavras: é um ser humano, como eu e vocês que estão lendo esta crítica. Logo, está sujeito às mesmas falhas e pecados como qualquer um. 

Há um momento do filme em que um dos papas fala sobre a globalização da indiferença vigente nos dias de hoje e nesse momento o diretor não só me ganha de vez como deixa claro suas intenções. Precisamos urgentemente deixarmos nossas convicções ferrenhas de lado e voltarmos a conversar. Falta diálogo no mundo e a humanidade passou a achar isso extremamente natural. Não é. Enquanto continuarmos habitando numa sociedade onde o eu prevalece só daremos força ao fascismo e a ignorância reinante neste século. E isso eu pelo menos não aguento mais. 

Muita gente vai me perguntar ao fim deste texto: "e aí, você iria ao Vaticano agora, depois de ter visto o filme?". Como acredito mais na dúvida do Papa Francisco do que na certeza inicial do Papa Bento XVI prefiro responder: "é um caso a se pensar". 

E só por isso já valeu - e muito! - a pena ver este belíssimo exemplar da sétima arte. 


quarta-feira, 16 de setembro de 2020

A caixa mágica


Era uma vez uma caixa mágica que foi inventada com a clara intenção de produzir no subconsciente das pessoas a ideia de estarmos diante de uma fábrica de ilusões. E a princípio seu inventor, Philo Taylor Farnsworth, conseguiu. Ela foi responsável pela criação de estereótipos e tendências as mais diversas e por anos foi vista, por parte da população mundial, como única forma de contato com o mundo exterior. O problema: o tempo passou, ela foi perdendo relevância e não soube administrar o fato de que novas formas de transmissão e veiculação surgiram. E vive neste exato momento, para seu próprio infortúnio, uma fase de transição incômoda em que dependendo da maneira como ela lide com a situação, pode acabar decretando sua própria extinção ou ao menos tornar-se parte secundária do processo. 

Ao saber da notícia dos 70 anos da chegada da televisão ao Brasil pensei exatamente nisto. E digo tais palavras, pois não pretendo tratar o veículo de forma ufanista e saudosa e sim como ele realmente merece, com respeito.

É inegável que a história do nosso país se encontra posicionada no coeficiente antes e depois da tv. Ela nos acompanha há mais tempo do que somos capazes, inclusive, de reconhecer. Chegou por aqui meio na surdina, contrabandeada em alguns lugares, e se dizendo substituta do rádio. Porém esta batalha ela perdeu. O rádio continua produzindo sonhadores por onde passa e em muitos casos continua sendo aquele "que fornece a primeira notícia ou manchete à população". Mas tudo bem. Coube a tv outros papéis tão grandiosos quanto esse. 

Com a tv conheci os desenhos animados, os programas de humor (TV Pirata e Armação Ilimitada eram obrigatórios) e de auditório (como esquecer de Chacrinha, Bolinha, Perdidos na noite, etc), as cerimônias de abertura dos jogos olímpicos, as corridas de fórmula 1 (em tempos de Senna, Piquet, Proust e Mansell), A rede manchete, a temporada de basquete da NBA (que apresentou para o mundo a geração que viria a se tornar o dream team das olimpíadas de Barcelona, em 1992), e até mesmo as telenovelas. Mas essas - confesso - eu acabei abandonando bem cedo, pois nunca gostei da ideia de ficar preso a um horário ou a uma grade de programação por tempo indeterminado. Eu era (e ainda sou) rebelde demais para isso!

A tv discutiu - ou tentou, pelo menos - assuntos como Reforma Agrária, Diretas já, a chegada da Aids, emancipação feminina, corrupção na política, chacinas policiais, entre tantos outros temas espinhosos do país. E no final das contas acabou por provar que se saía melhor quando o assunto era entretenimento. Quando a caixa mágica falava sério soava vazio, falso, tendencioso. E mesmo assim ela insistiu. Que o diga nas eleições, principalmente nos debates eleitorais.

O meu desencanto com ela começa a surgir com o advento dos chamados reality shows, mais precisamente com o Big Brother em 2000. Nunca acreditei que a palavra realidade coubesse dentro desse universo mágico. Sempre me pareceu mais lúcido - embora a palavra lucidez também não explique a contento o meio televisivo - o seu papel de diversão, de fazer a alegria das pessoas. Quando ela tentou replicar a realidade me soou falso, opaco, disforme. E desde já peço desculpas àqueles que adoram o formato. 

E não bastasse esse pequeno deslize, ainda por cima surgem dois calcanhares de aquiles perturbadores rondando o seu território: a internet e os serviços de streaming. E eles vêm mostrando, aos poucos, o quanto o público espectador tem a intenção de mudar seus costumes e rotinas. 

Expressões como download e maratonar ganharam os corações e as mentes de uma legião de fãs apaixonados. E a tv, obviamente, já percebeu isso e arqueou suas sobrancelhas. Mais: acendeu um pisca-alerta mais do que necessário, principalmente se almeja lutar por sua sobrevivência no futuro. 

E só para constar: às vezes o futuro é ontem e nem nos damos conta, tamanha a velocidade desse mercado. 

Muitos acham que a tv já teve o seu tempo, que precisa acabar, dar lugar a outra coisa. Aquele mesmo pensamento retrógrado do "a tv tomará o lugar do rádio, o cd tomará o lugar do vinil, etc". E não fosse isso o suficiente ainda tem torcida pedindo a falência de certa emissora. Enfim... Vivemos tempos de ódio, pouca reflexão e muita dúvida rotulada precipitadamente de fake news. E o preço, logicamente, é amargo. 

Antes que me perguntem o que penso disso tudo, abro logo o jogo e digo: a tv precisa, isso sim, encontrar o seu lugar de novo. Um novo lugar que entenda que o seu espectador cansou da mesmice, da enganação e do sensacionalismo. O problema é fazer os donos das emissoras entenderem isso e saírem da sua zona de conforto e dos contratos milionários de exclusividade. Pois é... Nesse quesito, ilusão não é uma palavra que responde o problema. Pelo contrário. 

E entre altos e baixos ela se torna setentona e ainda cheia de admiradores, à procura das cenas do próximo capítulo. E ao invés de dar-lhe meus parabéns, prefiro desejar boa sorte. Parece-me mais coeso e sincero. E além do mais, em tempos de You tube, redes sociais, Netflix, Amazon e até a Disney criando a sua própria plataforma, ela vai precisar. 

E muito. 


domingo, 13 de setembro de 2020

Sob máxima pressão


Trabalhei durante dois anos numa rede de cinemas na zona sul do Rio de Janeiro e convivi de perto com os operadores projecionistas. Na verdade, eram as pessoas da empresa com quem mais criei laços de afetividade. Adorava, nos meus horários de intervalo, subir para a cabine e conversar com esses profissionais, aprender um pouco de sua profissão, e principalmente entender um pouco de seus temores. Sim, eu disse temores. 

Digo isso porque de todo o quórum que trabalhava na empresa naquela época ninguém pedia mais licenças médicas ou afastamentos temporários do que eles. Convivi com dois, inclusive, que chegaram a pensar em suicídio e pediram demissão antes que a coisa ficasse mais séria e com o tempo entendi a dificuldade de trabalhar sozinho, isolado dos demais funcionários. Acreditem: não é para qualquer um. E não se iludam com a ideia apaixonante de que esses homens trabalham diretamente com a sétima arte, oferecendo entretenimento às pessoas. Pelo contrário... 

Esta semana enfim consegui assistir ao longa O farol, do diretor Robert Eggers - que ganhou certa notoriedade aqui no Brasil com seu filme anterior, A bruxa - e ao final da sessão me peguei mais uma vez relembrando desses homens de coragem. E também do desafio que é trabalhar sob pressão, isolados de tudo e de todos. 

O farol conta a história de dois faroleiros que precisam tomar conta de seu posto por exatas quatro semanas, até serem resgatados por um barco da firma para a qual prestam serviço. São eles Winslow (Robert Pattinson) e Wake (Willem Dafoe, como sempre ótimo!). 

O primeiro é o novato regular, facilmente encontrável em qualquer empresa que se preze. Segue o regulamento à risca e prefere não falar muito sobre sua vida pregressa. Já o segundo, mais velho, acredita mesmo é que as regras que devem ser de fato seguidas são as suas. Ou seja, é o estereótipo vivo do líder, do homem que veio ao mundo para mandar e não gosta de ser questionado ou interrompido. 

Enquanto Winslow faz o trabalho sujo ao qual lhe cabe - limpa cisternas, pinta paredes, realiza pequenos consertos -, Wake é o dono da casa e responsável pela luz do farol (algo que logo de cara contraria Winslow, que prefere dividir turnos). E sim, eu já sei o que vocês, leitores, devem estar pensando: a história se resume a isso? A priori é o que o diretor quer que pensemos. Mas lógico que ele não conseguiria tal feito por muito tempo (vide o que fez em A bruxa). 

Pescaram pelo menos a essência do que foi dito nos dois primeiros parágrafos? Pois bem: essa realidade cai como uma luva para explicar a transformação que acometerá Winslow com o passar dos dias. Trata-se de um homem solitário, sem o menor apoio de seu superior (que só consegue lhe dirigir a palavra para criticá-lo) e sob forte pressão psicológica. E o resultado dessa equação será catastrófico. Quase como abrir uma caixa de pandora pessoal. 

A fotografia em preto-e-branco de Jarin Blaschke é um show à parte e ajuda a construir o perfil atormentado de Wislow. E o surgimento de arquétipos isolados - a gaivota, a sereia, a tempestade que impede o resgate de chegar etc -, sempre antecipando o surgimento de algo ainda pior na vida do jovem faroleiro, faz com que a trama ganhe um certo caráter psicanalítico. E desde já deixo uma salva de palmas para a produtora A24 que vem chamando a minha atenção nos últimos anos com grandes realizações. 

Há, é claro, o momento Um dia de fúria (sim, aquele filme hoje cult do diretor Joel Schumacher com o ator Michael Douglas na pele de um cidadão comum que surta após ficar horas preso num engarrafamento) em que o jovem Winslow, mesmo tentando a todo custo enfrentar seus demônios pessoais e suas condições de trabalho adversas, não resiste e sucumbe ao ódio no que ele possui de mais viril e visceral. E confesso que Pattinson, que sempre achei um ator mediano, me surpreendeu.  

E é nesse exato momento que eu chego à minha reflexão principal sobre a obra cinematográfica em questão: O farol fala de forma soturna e nada convencional do eterno embate entre o homem e os obstáculos que ele cria durante sua jornada pela terra. E às vezes ele cria seus próprios fantasmas do armário, pois precisa de uma justificativa ou mecanismo de defesa que o leve até o dia seguinte e ao próximo e ao depois deste, tornando sua rotina um desafio praticamente interminável. 

Assim na arte, assim na vida. Eu vi isso de perto, diante de meus olhos, em muitos indivíduos com quem trabalhei e sou grato por não ter sucumbido da mesma forma que eles, já que era um trabalho extremamente estressante e repetitivo. 

P.S: (um pequeno detalhe que eu não pude deixar passar). O filme tem produção do brasileiro Rodrigo Teixeira. Interessante a carreira que esse moço vem fazendo no cinema internacional. Longa vida e sucesso a ele!   


quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Rock na veia


Como é bom sentar no sofá da sala de vez em quando, com o computador no colo e lembrar do passado, principalmente quando ele valeu MUITO a pena...

Volto no tempo aos meus 10 anos (mais especificamente 1986). Uma época em que o BRock mandava nas rádios, ditava tendências, expunha mazelas e, claro, sacudia o esqueleto de muita gente. Que o diga quem ouvia as rádios Fluminense, Transamérica, Cidade, Jovem Pan... 

E como esquecer do quarteto formado por Paulo Ricardo, Luiz Schiavon, Fernando Deluqui e Paulo P.A Pagni? Sim, do RPM, que levou uma multidão de devotos à loucura e lotou casas de show por todo o país. E como lembrei do RPM, impossível não falar de seu álbum mais emblemático: o hoje mais do que cult Rádio Pirata ao vivo.  

Rádio Pirata ao vivo, segundo álbum da banda, gravado ao vivo no Complexo do Anhembi, em São Paulo, e com direção do cantor Ney Matogrosso, é - gostem ou não os críticos, que adoram dividir opiniões e plantar discórdias - o divisor de águas dessa metamorfose cultural em que o rock n' roll versão tupiniquim se transformou naqueles tempos. 

Seja pela celebridade que seu vocalista Paulo Ricardo viria a se tornar após o lançamento do álbum (e, com isso, muitos na época chegaram a cogitar que ele não fosse realmente um artista, mas apenas um mero modelo ou sex symbol que seria tragado com o tempo pela fama), seja pelas letras fortes, ácidas, divertidas, a cara de uma geração que procurava os seus valores em um país que parecia confuso, perdido, à deriva, Rádio Pirata foi uma confrontação (mais: um revitalização) para um rock brasileiro que já bombava, com nomes como Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, Titãs, Ultraje a rigor, Legião Urbana, entre outros.

Nenhum outro disco vendeu tanto quanto ele no período (e falo de mais de 2,5 milhões de cópias vendidas em território nacional).

Como destacar minhas preferências num trabalho tão bem realizado e de repertório tão apaixonante quanto esse? Apesar de se tratarem de apenas nove faixas, o brilhantismo com que o show foi realizado é digno de nota e, dificilmente, os apreciadores do estilo ficarão desapontados com o resultado final. 

Indo da belíssima instrumental "Naja" à internacional "London, London", clássico de Caetano Veloso dos tempos de exílio na capital inglesa, e passando pelos hits - imprescindíveis em qualquer turnê do grupo - "Olhar 43", "Alvorada Voraz" e "A Cruz e a Espada", o álbum reúne, em poucas palavras e riffs, o melhor desse período musical de quem esse projeto de colunista que vos fala guarda tantas boas recordações.

Aos acordes finais do show gravado (que ouço novamente pela centésima vez na internet) e passadas mais de duas décadas da revolução proposta, a impressão que fica é a de que o rock contemporâneo regrediu consideravelmente, não bebeu nessa fonte gloriosa. 

Onde foram parar aqueles heróis da resistência que com uma simples guitarra e arranjos de fácil execução um dia tentaram mudar o mundo? Onde foi parar a Geração Coca-Cola que o Renato Russo tão bem cantou? Hoje, ao contrário, o que se vê é uma comercialização desenfreada da música (seja nas redes sociais ou nos serviços de streaming), onde criação artística e significado deram lugar a cifras astronômicas e artistas de segunda categoria com patrimônios milionários. 

Sim, isso é revoltante.

E a este pobre coitado, cronista da internet, só resta sonhar - pois sonhar ainda é gratuito, embora não pareça mais - que os bons tempos regressem e tragam novas vozes, uma fúria nova e o rompimento com esse moralismo babaca do dias de hoje, que só faz exaltar a indústria medíocre do politicamente correto. Nossos ouvidos (e acredito falar por muita gente) agradeceriam!


domingo, 6 de setembro de 2020

O inimigo está dentro de você


Até que ponto a palavra superação pode ser administrada? E a partir de quando perdemos o controle de tudo e nos damos conta de que nosso único desejo é o de ser o número 1 no que quer que façamos? Honestamente... Às vezes tenho a impressão de que certas pessoas são, na verdade, seus próprios inimigos.  

Não é de hoje que os tabloides e os programas televisivos mostram o que artistas e desportistas são capazes de fazer para se manter no lugar mais alto do pódio ou em evidência na carreira, sempre conquistando novos papéis de destaque. O problema é justamente quando todos os limites do ético e do saudável são ultrapassados em nome de uma suposta fama ou prestígio. 

E é aqui que reside o grande dilema da jovem bailarina Nina Sayers (vivida de forma intensa pela atriz Natalie Portman, vencedora do Oscar de melhor atriz por esse trabalho) no drama Cisne Negro, dirigido pelo cineasta Darren Aronofsky.

Escolhida como protagonista para a próxima montagem do balé Lago dos Cisnes, a promissora bailarina, ainda novata e não totalmente conhecedora das armadilhas que envolvem a sua profissão (e o mundo da dança de uma forma geral), tropeça em suas próprias dúvidas, divergências, na falta de coragem para assumir certos posicionamentos diante de uma mudança tão radical em sua vida, sem contar as sucessivas exigências vindas de dois focos distintos: a primeira dentro de casa, pela mãe, Erica (Barbara Hershey), uma relação extremamente possessiva, e a segunda profissional, enredada pela sedução e a cobrança excessiva de seu diretor, Thomas Leroy (Vincent Cassell, em atuação brilhante). 

Com o aparecimento da misteriosa rival Lily (a belíssima Mila Kunis), seus questionamentos internos chegam à um patamar que beira à loucura total. E somente com muita força de vontade e determinação ela será capaz de combater tantos "adversários".

Aronofsky mistura estilos que em muito lembram o cinema psicológico do início da carreira de Brian de Palma (principalmente pela condição claustrofóbica em que se encontra a personagem principal) e o estilo narrativo de Roman Polanski (com lembranças que remetem a Repulsa ao sexo). 

E dessa mistura de sobrenaturalidade com drama existencial ele cria uma metáfora para pensarmos o papel do ser humano numa sociedade tão exigente e que cobra tanto das pessoas, dividindo-as em dois grupos desiguais: os melhores e o restante da população.

Com uma câmera na mão que surpreende ao focalizar a dor, o desespero e o sacrifício que envolve uma das formas de arte mais genuínas e fantásticas da história da humanidade, o diretor realiza mais uma película audaz - o que vindo dele é praticamente clichê, vide produções fortes em seu currículo tais como Réquiem para um Sonho, O Lutador e o visceral Mãe! -, compondo assim uma cinematografia de enfrentamentos, algo que parece agradá-lo profundamente.

Em poucas palavras (se é possível resumir uma película dessas), Cisne Negro é subversivo ao mostrar o balé além do espetáculo, das luzes e dos aplausos de agradecimento vindos do público. É forte, indigesto em alguns momentos - o cineasta não tem medo de pesar a mão ao retratar certas psicoses e desejos da artista que desce às profundezas de sua própria alma rumo ao estrelato -, e profundamente brilhante. 

E, provavelmente, acredito que é isso que está faltando no cinema contemporâneo: um pouco de ousadia. E não apenas meros efeitos especiais, tecnologias de captação de imagem e elencos esbeltos que mais funcionam como belas paisagens, porém sem conteúdo algum. 

A grandeza do filme está justamente em se expor, algo que o cinema mundial contemporânea parece estar desaprendendo nos últimos anos, salvo um grupo restrito de grandes realizadores.

E pensar que eu vi essa pequena joia a primeira vez uma década atrás no cinema (e parece que foi ontem)...    

P.S: eu conheço um grupo de pessoas que cataloga esse filme dentro do gênero terror. E quer saber? Eles não estão totalmente errados!


quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Um novo visível



Eu vejo as artes plásticas desde garoto sob a ótica de dois grandes grupos: os promovedores de beleza e êxtase (o que não significa que eles tenham a única intenção de produzir o belo) e os provocadores. E este segundo grupo, confesso, sempre me atraiu mais. É o caso, por exemplo, de Andy Wahrol, Damien Hirst, Ai Weiwei... Todos eles têm algo em comum: conseguem me perturbar, me tirar do eixo desde o primeiro momento em que vislumbro seus trabalhos. 

Entenderam até aqui? Pois bem: incluam também nessa lista o surrealista René Magritte. Desde o famoso quadro "Isto não é um cachimbo" esse senhor me incomoda (no bom sentido, é claro!). Trata-se de um artista de grandes e intrigantes ideias, que não se basta com o óbvio. E curioso: um homem simples, de vida pacata, que passou mais de quatro décadas casado com a mesma mulher, sem arroubos ou ousadias. Ou seja, uma vida sem graça.

E este mesmo homem criou um dos quadros mais controversos e discutidos de todo o mundo. Falo de O filho do homem

Os fãs de artes plásticas e pintura em geral certamente sabem de que quadro eu falo. Um homem vestido com sobretudo cinza e chapéu coco - por sinal, uma marca registrada do pintor - e que tem seu rosto encoberto por uma maça verde, embora através dela consigamos ver seus olhos. 

A tela foi criada como um autorretrato do próprio Magritte, mas ficar nesse senso comum não me parece o suficiente quando queremos analisar a obra. Detalhe: o próprio artista várias vezes disse que sua obra não tinha o afã de produzir um significado prático. Ela precisava ser vista por aquilo que ela era e nada mais. Contudo, não resisto às minhas viagens pessoais (e quase esquizofrênicas) que visam decifrar os meandros da mente e do trabalho dos grandes artistas.

E o principal aspecto que logo me chama a atenção é a presença da maçã e toda a correlação existente com a história bíblica de Adão e Eva. Mais: já li em vários ensaios sobre simbologia a relação estreita entre o objeto/ a fruta maçã e o conceito de pecado. A própria cidade de Nova York (ou "cidade do pecado", como muitos a conhecem) é chamada por seus próprios habitantes de Big Apple.  E ver os olhos do filho do homem aparecendo por trás da maçã me remete à ideia de que ele poderia estar escrutinando os pecados do mundo.  

Outro ponto interessante é que o próprio corpo do personagem bem como a silhueta apresentada na tela já aponta para aspectos desconcertantes. Falta um botão no casaco que ele veste, seu cotovelo esquerdo está nitidamente na posição errada... E associe a isso o "problema de consciência" que envolvia o autor - daí a dificuldade dele em pintar seu próprio retrato - e logo nos deparamos com uma figura disforme, meio dissociada da ideia de normalidade. E a mim cabem certas perguntas sem resposta aparente: seria o filho do homem o exato oposto de seu autor? Teria ele, mesmo sem querer, retratado o perfil do homem desse século XXI, um homem confuso, que parece não caber em suas próprias vestes e, no entanto, um curioso, um voyeur? 

E nesse momento me repito. Não se esqueçam: é apenas a viagem pessoal de um admirador de arte amador que adora vasculhar as intenções e escolhas de artistas que o deixam intrigado. E nada mais. 

Polêmicas à parte, mesmo envolto em mistério (certamente o grande tema da obra dele), Magritte tornou-se um fenômeno à sua maneira e inspirou as gerações posteriores. O próprio Andy Wahrol que citei num parágrafo acima foi extremamente influenciado por seu trabalho. Paul McCartney tirou daqui a ideia do logo da Apple, empresa que negocia os royalties dos Beatles até hoje. E hollywood certamente já satirizou a tela inúmeras vezes, em muitos projetos cinematográficos. 

Ao fim, descartados todos os elementos de incompreensão plausíveis, o que se vê é um grande conflito entre o que o autor chamava de "visível oculto" e "visível presente". Enfim... Guardadas as devidas proporções e períodos históricos Magritte também entendia como poucos o quanto a sociedade é curiosa e gosta de bisbilhotar sobre aquilo que não consegue ver nitidamente. E há quem diga que ele, no fundo, criou uma nova forma de visibilidade.

Mais contemporâneo e autoral do que isso, impossível.