sábado, 27 de junho de 2020

Irmãos de alma


A guerra não termina simplesmente porque os fuzis pararam de disparar ou as tropas bateram em retirada. Nada disso. Ela continua na cabeça dos soldados que lá estiveram e nas mentiras contadas pelos governos que a financiaram. Clint Eastwood estava certíssimo em A conquista da honra quando um de seus personagens disse: "a guerra não passa de um negócio e se não formos arrecadar muito no menor tempo possível, é melhor que ela termine o quanto antes". 

Em outras palavras: guerras existem para enriquecer nações tendenciosas e levar à morte àqueles que não se adequam ao sistema. Os homens negros, então, que o digam!. Qualquer outra coisa diferente disso (leia-se: patriotismo, dever cívico, etc) sempre me pareceu puro blá blá blá de quem gosta mesmo é de viver no mundo da lua.  

Dito isto, peguemos o exemplo de Paul (Delroy Lindo, simplesmente extraordinário!), Otis (Clarke Peters), Eddie (Norm Lewis), Melvin (Isiah Whitlock Jr.) e Stormin' Norman (Chadwick Boseman). Juntos eles formavam, na Guerra do Vietnã, o destacamento Blood. Mais do que isso: foram testemunhas oculares do inferno que levou à grande cicatriz que aquilo se tornou dentro da sociedade americana (quem quiser que me desminta, mas sempre achei que o Vietnã foi a página que os EUA nunca conseguiu virar). 

A guerra acabou - e vocês sabem muito bem quem levou a melhor -, Norman morreu em campo de batalha, mas antes disso o grupo escondeu um carregamento de ouro que seria usado como pagamento (e poderia ter levado ao fim da guerra ou, quem sabe, a uma espécie de trégua entre ambas as nações). Pausa para um grande fast forward... Cinco décadas depois os bloods sobreviventes decidem voltar às terras vietnamitas não somente para resgatar o ouro escondido, como também trazer de volta o corpo do amigo morto, a ser entregue aos seus familiares. 

Parece fácil no papel, não é mesmo? Mas como eu disse no primeiro parágrafo: a guerra nunca termina assim. 

O filme de Spike Lee é revisionista até o extremo e não somente isso: é um grande manifesto político sobre a história mal contada que o tio Sam adora narrar volta e meia para o resto do mundo.

Tirar o dinheiro do Vietnã é uma empreitada que envolverá uma série de dissabores, desavenças políticas e "homens de negócios" inescrupulosos sempre aptos a lucros fáceis e oportunistas. E não bastasse tudo isso esses cinco irmãos de alma - pois é nisso que a batalha os tornou, mesmo depois de tantos anos - ainda terão que contar com imprevistos os mais diversos, fora a própria relação entre eles, que em algum momento ficará estremecida. 

Como pano de fundo o diretor faz aquilo que conhece de melhor (e que já havia feito em seu longa anterior, o também acusatório Infiltrado na Klan): o enche de homenagens, ironias e erratas as mais diversas. Atletas que a América preferiu varrer para debaixo do tapete, discursos antológicos de Angela Davis, Martin Luther King e Mohammad Ali, sobra até para o cinema brucutu de Sylvester Stallone e Chuck Norris (na visão dos personagens, heróis de "guerras imaginárias"). 

Enquanto isso, Marvin Gaye, gênio da Motown, dita o tom da trilha sonora e ela por si só já vale, a meu ver, meio filme. Se você não é fã de Marvin, convido-o a parar de ler essa crítica e se retirar daqui imediatamente. Você não merece ver esse filme. Mesmo. 

Quase ia me esquecendo... Prestem atenção no monólogo de Paul na selva vietnamita. É devastador no sentido de apontar as falhas de inúmeros governos federais passados, com uma cutucada especial no atual presidente. A morte de George Floyd e todas as manifestações que se seguiram, acabaram por tornar o longa um artefato quase profético. E, além do mais, Ele, Paul, é desde o primeiro momento o elo fraco do pelotão. Aquele que pior lidou com a guerra, tanto que acabou por se tornar uma figura extremamente autodestrutiva. E o monólogo em questão, mais do que um simples desabafo, é de uma verdade avassaladora. 

O longa termina depois de duas horas e meia de dor e reflexão. E ao fim dessa catarse o que temos é um novo acerto de Spike - mestre desde os tempos de Faça a coisa certa e Malcolm X -, que andou um período em baixa, realizando produções anos-luz de sua capacidade crítica. Quem conhece sua filmografia sabe que seu dedo acusador, expondo as eternas hipocrisias made in USA, é sua marca registrada. E aqui, assim como no filme anterior, ele encontrou espaço para brilhar. 

E eu fiquei pensando ao fim: "e ainda tem gente que se voluntaria para participar de guerras". 

P.S (eu preciso dizer isso): obrigado, Netflix! De novo. Só uma empresa como a de vocês para fazer frente à enxurrada de super-heróis e franquias que vem tornando o cinema americano bobo e vazio. Já estou à espera do próximo projeto foda.    

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Polaroides cinzas


Quando mais novo eu quis de presente de aniversário uma câmara polaroide e minha mãe não quis me dar. Disse mais: "isso é perda de tempo, pois as fotos quando envelhecem ficam amareladas, horríveis". Ela se referia ao tom de sépia típico das fotos envelhecidas, não somente as polaroides. Em nossa coleção de fotos haviam duas nesse formato, feitas num domingo que passamos na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão. E elas realmente pareciam estranhas, mais velhas do que as demais fotos. 

E eu então entendi o que ela queria dizer: as polaroides registravam momentos específicos da vida cotidiana e, com o passar do tempo, meio que perdiam a sua razão de ser, perdiam sua capacidade de registrar de forma nítida aquele momento do clique. Em outras palavras: perdiam a sua relevância. 

Eu vi muito disso durante a exibição, na internet, da peça teatral Por Elise, escrita pela atriz e dramaturga Grace Passô. Uma narrativa que fala sobre o amargo hoje que estamos vivendo (embora a montagem que assisti, do grupo Espanca, seja de 2012) e da dificuldade de seguir em frente em meio a um cotidiano tão cheio de cicatrizes e discursos truncados, fabricados.  

Os tipos sociais despedaçados que compõem a trama - uma dona de casa que narra a história de seus vizinhos (papel vivido pela própria Grace); um cão que late palavras, numa tentativa desesperada de encontrar um interlocutor em meio a um mundo em frangalhos; um lixeiro em busca de seu pai, que vive correndo pelas ruas à procura de respostas; uma mulher completamente perdida, refém da mendicância de afetos e um funcionário que trabalha como recolhedor de cães doentes - representam uma depressiva cartografia do que virou a humanidade nesse século XXI cheio de dúvidas e cafajestes. 

Como único refúgio para lidar com o estresse diário dessa urbe catastrófica apelam para artes marciais (em alguns momentos a truculência do Karatê, em outros a suavidade do Tai Chi Chuan), enquanto convivem com uma rotina ácida e sem muitas expectativas. 

A ausência de cenários fez eu me lembrar do excepcional filme Dogville, de Lars Von Trier, ele também - à sua maneira - um grande ensaio sobre a desesperança e o niilismo. E confesso que me peguei confuso ao ouvir música clássica na trilha sonora (acho que a música techno, que muitos chamam popularmente de bate-estaca, com seus ruídos de comunicação implícitos, funcionaria melhor aqui. Mas enfim... Os encenadores deviam saber o que estavam fazendo!). 

Há uma série de declarações ditas pelos próprios personagens que dialogam bem com essa tal contemporaneidade vazia. Expressões como "toma cuidado com o que planta" e "eu sou um cavalo correndo na direção do mar" funcionam perfeitamente para explicar esse homem pós-moderno, confuso, em trânsito, uma criatura que perdeu completamente o rumo da estrada que vinha tomando, que se confundiu ao escolher para si péssimos referenciais. 

Em suma: uma polaroide cinza, desbotada, amorfa. Por Elise é uma bem construída coletânea delas. E tudo isso exibido diante de nossos olhos em tons mínimos, sem precisar chamar atenção em demasia para luzes, sons e músicas estridentes (algo que o teatro musical tem feito em excesso nos últimos anos). 

Há até quem consiga enxergar a montagem como uma esquizofrenia comedida (o que não deixa de ser assustador. Pelo contrário). Ao final da apresentação, fiquei com um gostinho de quero mais na boca. E gostaria de ter assistido o espetáculo ao vivo. Acredito que teria me identificado ainda mais com o texto. Infelizmente coube somente agora, diante da quarentena vigente, o acesso à peça pelo you tube (sempre ele!).   

O que faltou dizer? Que a matéria que eu li no UOL sobre o sucesso das lives teatrais, que não se escondem atrás de megaproduções e valorizam em primeiro lugar aos autores e às interpretações, está coberta de razão. Preciso do popular "menos é mais". E eu espero que as artes cênicas continuem mantendo esse canal aberto depois que toda essa pandemia passar. 

sábado, 20 de junho de 2020

O primeiro blockbuster da história


O cinema hollywoodiano é famoso pelos fenômenos de bilheteria que cria de tempos em tempos. E honestamente: não fosse assim, muito provavelmente a grande maioria do público - que de cada dez assiste a, pelo menos, sete filmes made in USA - já teria abandonado as salas de projeção. A esses fenômenos notórios, hoje em dia, dá-se o nome de blockbusters. Contudo, muitos não sabem mas tudo isso começou de fato com o mestre Steven Spielberg e seu clássico das matinês Tubarão

A criatura marítima devastadora continua aumentando sua legião de fãs toda vez que sua película é reexibida, seja nos canais de televisão, seja nos serviços de streaming. E mais: não conheço até hoje outro filme sobre o tema que tenha gerado tanta discussão ou admiração quanto este. 

Por que estou falando disso? porque Tubarão, de Steven Spielberg, completou 45 anos de existência no último dia 20 de junho, e continua com toda pompa, garbo e mandíbulas, idolatrado como um dos maiores vilões da história da sétima arte (ao lado de Norman Bates, Darth Vader, Hannibal Lecter, e outras feras da maldade). 

A história, todo cinéfilo fanático conhece de cor e salteado: na cidade de Amity, um tubarão ataca banhistas em plena alta temporada do verão norte-americano, causando problemas para o policial Martin Brody (eternizado nas telas pelo ator Roy Scheider). As autoridades não querem fechar as praias e arcar com o prejuízo que será causado caso os banhistas vão embora e, sabendo do impasse para lidar com a situação, decidem encontrar alguém que mate o bicho. Já o agente policial prefere chamar um especialista em oceanografia, Matt Hooper (Richard Dreyfuss), que corrobora sua visão de que as praias devem ser fechadas, o que cria um duelo de forças entre prefeito e polícia. 

E como não podia deixar de ser, é claro, o animal leva o caos e o medo à cidade com muita matança desmedida e corpos estraçalhados. 

Detalhe: a cidade de Amity é fictícia e inspirada em Martha's Vineyard, rota turística dos ricaços e celebridades. Seria a referência uma cutucada, uma espécie de crítica social? Há quem debata o tema em certos fóruns sobre cinema na internet. 

Uma das curiosidades até hoje mais interessantes sobre a película trata-se do tubarão animatrônico construído para interpretar o "personagem principal" (e que se recusou a trabalhar na maior parte das gravações, sempre afundando ou dando defeito na hora H). O diretor ficava tão puto que chegou a apelidá-lo de Bruce, nome de seu advogado.  São tantas as histórias e lendas urbanas acerca do bicho mecânico criado - o próprio Spielberg já chegou a dizer em entrevista que "jamais faria uma continuação do filme ou mesmo o refaria hoje, tamanho foi o trabalho que deu lidar com aquilo tudo" - que eu confesso que gostaria de ver um documentário sobre o tema. 

E para aqueles que já estão pensando em me chamar de louco, vocês não fazem ideia da quantidade de coisas loucas e às vezes inverossímeis que eu já vi em forma de documentário feito nos Estados Unidos!

Tubarão é o primeiro filme da história de hollywood (de que se tem notícia, pelo menos) a gerar filas quilométricas nas portas dos cinemas. Isso que hoje vemos com a maior naturalidade com filmes como Titanic e o Batman dirigido por Tim Burton (eu lembro de ficar praticamente três sessões em pé na porta do cinema esperando a fila andar até que a sessão em que eu comprei ingresso começasse!) teve seu pontapé inicial com o longa de Spielberg. Em outras palavras: ele abriu vários precedentes para a indústria de cinema norte-americano. 

E fica aqui um breve aparte nesse sentido: o longa foi lançado no meio do ano, um período de vacas magras para o cinema, pois as pessoas preferiam outro tipo de programação nessa época, um período muito quente. Contudo, ele não só quebrou com todas as expectativas como também deu início a uma expressão muito em voga em hollywood atualmente (o chamado "verão norte-americano", quando grandes estreias são prometidas para o público). Em suma: não fosse o tubarão spielberguiano provavelmente a Marvel e a DC procurariam um outro período do ano para lançar suas produções. Toda a indústria como a conhecemos hoje começou basicamente aqui. 

E ao contrário do que muita gente pensa ("blockbuster só serve para fazer bilheteria; prêmios que é bom... nunca leva) o filme também chegou a cerimônia do Oscar. Indicado a quatro categorias, só não levou a de melhor filme (esta quem levou foi o reflexivo Um estranho no ninho, de Milos Forman), tendo faturado melhor edição, som e trilha sonora (a icônica música do também mestre John Williams). Foi um sucesso reconhecido pela academia, sim senhor!

Recentemente, vasculhando em sites sobre cinema, descubro duas informações curiosas: a primeira diz que Tubarão tinha como plano original se tornar um seriado, trazendo sempre atores famosos convidados para serem devorados pelo bicho a cada episódio (honestamente... eu veria a série hoje, agora, cheio de curiosidade). E a segunda, ainda mais interessante, é a de que o diretor Michael Winner, do lendário Desejo de matar, thriller policial com o eterno action hero Charles Bronson, foi convidado para assumir o projeto antes de Spielberg e o recusou. Na mesma hora que li a notícia meu cérebro começou a fervilhar de ideias, tentando imaginar o que seria esse filme. 

Para encerrar minha exposição (ou seria um texto-homenagem?) aqui, uma informação pessoal: considero Tubarão o melhor exemplo de uma adaptação cinematográfica em que o filme é infinitamente superior à obra original. Digo isso porque sempre achei o livro do escritor Peter Benchley um saco. Arrastado e melancólico até o final. O que Spielberg conseguiu fazer aqui, tirando leite de pedra, é digno dos maiores mestres do cinema norte-americano. Quem não leu a obra literária, procure e depois volte aqui para me dizer se não estou com razão.

E ainda tem gente que chama o cara de "diretor infantil". Fala sério!

P.S (esse texto tinha que ter, de qualquer jeito): nunca me esqueço de minha dizendo, quando foi ver o longa nos cinemas em 1975, que ela quase saiu correndo do Metro Copacabana com as amigas dos correios - onde trabalhava - quando o tubarão abriu a bocarra para pegar o policial Brody. Ela me disse: "era tão assustador, tão real! Nunca tinha visto nada igual até então". É... A criatura continua assustadora até hoje.  

terça-feira, 16 de junho de 2020

O templo do futebol


Eu conheço gente que nunca entrou nele (sim, esse tipo de gente existe no Brasil!). Também conheço quem chorou das lágrimas descerem pelo rosto quando decidiram que a geral - palco mor dos verdadeiros torcedores: os descamisados - não ia mais existir. Era meu vizinho o dito cujo e ficou entristecido por semanas. E conheço também gente que não consegue imaginar a própria vida sem frequentar o estádio de tempos em tempos. Fez dele uma necessidade básica, como comer ou beber água. 

Refiro-me ao Maracanã, templo máximo do nosso futebol, que ficou setentão sem perder a elegância, o charme, o garbo e a atitude. Embora algumas pessoas que o frequentaram nos áureos tempos reclamem de que a redução de assentos com o passar dos anos foi uma "injustiça com os verdadeiros admiradores do lugar". E eu concordo. Não gosto de ver o estádio associado apenas às elites. Ele se torna menor quando fazem isso com ele. 

O Maracanã foi construído com a intenção de sediar a copa do mundo de 1950, E quando nos deparamos com essa notícia, mesmo aqueles que não viram a copa, que não eram nascidos naquela época, já sabem do que falo (e não é uma lembrança feliz). O maracanazo imposto pelo Uruguai e o seu 2x1 na final - aquele que demonizou para o resto da vida o goleiro Barbosa - até hoje nos atormenta. Há inclusive um curta-metragem com o ator Antônio Fagundes com o nome do goleiro que mostra um torcedor tão impactado com a derrota que decide construir uma máquina do tempo só para voltar ao dia do infortúnio e impedir a vitória da celeste azul. Procurem no porta curtas.  

Entretanto o estádio não foi, logicamente, palco apenas de derrotas e lamúrias. Não, meus caros leitores! Há muito de bom a se lembrar neste lugar abençoado. 

Por aqui passaram o Papa João Paulo II, o astro beatle Paul McCartney, o eterno "the voice" Frank Sinatra, a segunda edição do Rock in Rio em 1991 - por causa de uma rixa entre o então governador Leonel Brizola e o criador do evento, o empresário Roberto Medina, que levou à destruição da cidade do rock original de 1985 -, entre tantas outras estrelas. A criançada volta e meia dava as caras aqui por causa da visita do Papai Noel (que, aliás, era televisionada e tinha patrocínio do supermercados Sendas). 

E eu me lembro também de certa ocasião em que fui com meu pai nos arredores do bairro (se não me engano ele foi buscar uma cesta de natal da empresa onde trabalhava), a duas quadras do Maraca, e vi um grupo enorme de engravatados passando correndo com sacas imensas de dinheiro às costas. Não entendemos nada do que estava acontecendo, até chegarmos em casa e nos depararmos com a notícia do culto realizado ali no estádio pelo Pastor Edir Macedo. Em outras palavras: nascia ali o império da Igreja Universal do Reino de Deus e todas as contradições que ele viria a trazer nos anos posteriores. 

O alambrado caiu em 1992, ano do pentacampeonato do rubro-negro contra o Botafogo. Meu pai e alguns amigos estavam lá e minha mãe ficou superpreocupada. Eram tempos de Júnior de cabeça branca, o "vovô garoto" exibindo toda sua maestria. E também representou o fim de uma era para o clube. E como esquecer do gol de barriga de Renato Gaúcho no Fla-Flu que os flamenguistas não gostam de lembrar? Mas cá entre nós: metade do gol pertence ao lançamento do Aílton. Em 1994 Romário nos colocou na Copa - da qual saímos tetra - e esculhambou o Uruguai e o goleiro Siboldi (até hoje eu me lembro do nome dele. Coitado! Acho que ele nunca mais vai esquecer desse dia). 

São tantas histórias e lógico que eu poderia fazer deste humilde artigo um livro, se eu quisesse. Mas eles já existem (isso mesmo: no plural). E deixo aqui duas dicas para fanáticos, pelo estádio e também por futebol: Maracanã - meio século de paixão, de João Máximo e Maracanã 70, de Eduardo Bueno e outras feras. E mais: duvido que os mais apaixonados pelo tema não se emocionem página a página! 

Para a nossa felicidade recente - falo mais especificamente da minha geração - o 7x1 da Alemanha não foi aqui (seria um segundo golpe devastador para o estádio). Menos mal. Contudo, é bom saber que o lugar resistiu bem às suas dores, soube conviver com elas. Mais que isso: soube se vender por suas glórias eternas. De triste mesmo só o fato de estar comemorando uma data tão importante em meio à pandemia de Covid-19. Ele realmente não merecia isso!

E que venham os 80, os 90, o centenário e muito mais. Pois os torcedores brasileiros merecem. Valeu, Maraca!

sábado, 13 de junho de 2020

Culpado desde o nascimento


Será que algum dia a humanidade tomará vergonha na cara e romperá definitivamente com a crueldade que conhecemos como racismo? Vejam o que está acontecendo nos EUA - exemplo mor do preconceito racial no mundo contemporâneo - por conta do assassinato brutal de George Floyd em Minneapolis. Pior: vendem, através do governo federal, a pecha de serem uma nação sem problemas, a qual as outras nações (a nossa, inclusive) querem copiar como modelo de retidão e ética. Malditos demagogos!

E em tempos de manifestações ao redor da terra do tio Sam e também em outros países ao redor do mundo (sim, pois racismo não é exclusividade da terra de Lincoln, Kennedy, Bush e Trump) há opções cinematográficas para discursar sobre o tema aos montes. E uma extremamente interessante é Luta por justiça, do diretor Destin Daniel Cretton. 

O filme de Destin nos traz a história do primeiro homem a reverter uma condenação ao corredor da morte em toda a história jurídica dos EUA. Seu nome: Walter McMillan (Jamie Foxx, em atuação inebriante). O típico caso do homem escolhido por um sistema corrupto para ser o "homem certo na cena do crime exata". E esse mesmo sistema o condena à pena de morte pelo assassinato de Rhonda Morrison, que para os autos da justiça interessa apenas como "moça branca de família". 

Quando ele é parado no meio da estrada pelo xerife Tate (Michael Harding) já sabe de antemão o que aquilo significa. Afinal de contas, na América ele pertence a "etnia errada". E por conta disso recebe sua condenação antes mesmo do julgamento acontecer. O que ele não sabe é que foi acusado através de uma trama sórdida que envolve não somente inúmeros interesses escusos, como também uma confissão forjada por um outro presidiário (ele, por sua vez, também ameaçado por esse mesmo sistema). 

E ninguém quer meter a mão nessa cumbuca para defendê-lo. Até então. E digo até então pois eis que aparece na cidade de Monroe para elucidar o caso o jovem Bryan Stevenson (Michael B. Jordan, mais conhecido aqui no Brasil por seu personagem na franquia Creed), um jovem advogado idealista, formado em Harvard, e disposto a corrigir esse grave delito. Breve observação: o fato do diretor citar de forma direta e insistente a cidade de Monroe - onde a escritora Harper Lee escreveu o extraordinário romance O sol é para todos - é um aviso ao espectador, quase um prenúncio de que a barra vai pesar para o lado do advogado. Leiam o livro e tirem suas próprias conclusões para entender do que eu estou falando.

E acreditem: ela pesa. De todos os lados. Ninguém quer se envolver nessa história, sob pena de acabar pagando o pato também. Todos querem uma solução fácil, que atenda às necessidades dos moradores brancos do local. A única que acompanha a saga de Bryan - além da família, é claro! - é a jovem assistente dele, Eva Ansley (Brie Larson), que não escapa também de ameaças, bem como sua família. 

O que Bryan precisa entender rápido nessa cidade é que não importa o fato de ele ser um advogado formado numa instituição de renome. Ele poderia ser médico, arquiteto, engenheiro... Fosse qual fosse a sua profissão, ainda assim aqueles que querem o caso resolvido como está, só conseguem enxergar a cor da sua pele. E nada mais. Logo, ele receberá o mesmo tratamento que qualquer criminoso. 

No meu entender a frase que rege toda a trama, que dá significado à história, é aquela em que o protagonista diz ao seu advogado que, não importa o quanto ele lute, ele já "nasceu culpado". Walter entende perfeitamente o que significa nascer negro num país como os Estados Unidos. 

O mais revoltante? Saber que depois de tanta escravidão, tanta luta, tanto sofrimento, nada mudou nessa terra que vive de vender hipocrisias como oportunidades para os outros. Luta por justiça é um longa que flerta bem com filmes de temática negra lançados nos últimos anos. Falo de Corra!, de Jordan Peele; 12 anos de escravidão, de Steve McQueen; Selma, de Ava DuVernay e O nascimento de uma nação, de Nate Parker, entre outros. Vejo todos esses filmes como uma espécie de cartografia da resistência aos mandos e desmandos de um país que se recusa a aceitar quem é diferente (mentalidade essa que nem mesmo o governo Obama conseguiu mudar). 

E dessa catarse covarde, injusta, que sequer mostra sinais de mudança no ar (seja nos EUA, seja no restante do mundo) o que podemos perceber na prática é o quanto continuamos adoecendo como sociedade mundial por simplesmente não querermos uma mudança de postura, pois a manutenção da covardia a priori parece ter mais valor. 

E enquanto isso persistir outros McMillans e Floyds e Luther Kings e Malcolm Xs continuarão perdendo suas vidas, sejam morrendo ou trancafiados em celas, ad aeternum...

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Em nome de Deus


A cada dia se torna mais difícil (pelo menos para mim) entender o que significa Deus para o mundo. Eu ando pelas ruas cada vez mais descrente com os religiosos - e olha que eu nunca os tive em alta conta, sempre desconfiei do "excesso de fé" de certas pessoas, o autoritarismo, a eterna mania de excomungar aqueles que não comungam dos seus interesses, por vezes, escusos. E quando transportamos essa realidade cinza para as favelas e comunidades a situação se complica ainda mais. 

Digo isso porque acho meramente impossível permanecer lúcido e coerente em meio a pessoas que escolheram a ignorância e a alienação religiosa como modus operandi para pautar suas vidas. Em outras palavras: é como conversar com objetos inanimados. 

Esta semana me deparei com uma graphic novel de autoria do jornalista Gonçalo Júnior e do desenhista Flávio Luiz que me deixou ainda mais desesperançoso sobre o futuro de nosso país (o que não significa que ela deva ser boicotada pelos leitores; longe disso... Trata-se de uma narrativa extremamente genial e feroz sobre a hipocrisia que rege nossa nação há décadas). Falo de Messias

Messias mostra a dura discrepância e deformação social que rege os discursos em pauta no país nos últimos anos (e olha que a revista foi criada entre 2002 e 2005, logo mais de uma década atrás). Seu protagonista sobrevive a uma chacina na favela onde mora e passa a ser tratado pelos moradores da localidade como salvador da pátria, como o escolhido, aquele que "libertará o povo menos favorecido do eterno amordaçamento e penúria onde vivem". 

Ele cresce, vê na religião uma grande arma ideológica onde poderá criar o seu império e, com isso, atrair muitos seguidores, antenados com sua causa contraditória. E, lógico, torna-se o problema do qual o Estado precisa se livrar. Resultado: a cidade - que poderia estar localizada em qualquer região do Brasil - torna-se um front de guerra de proporções quase apocalípticas. 

A ausência de diálogos durante toda a história é, aqui, uma escolha proposital da dupla de autores. Eles querem que o público leitor construa, cada um à sua maneira, a sua própria narrativa, tire suas próprias conclusões. E claro: trata-se de uma realidade que nós, brasileiros, já conhecemos de cor e salteado, pois somos uma das nações mais violentas do mundo. Portanto, não há muito o que inventar de inovador nesse sentido (obs: considero a mudez nesse caso muito bem-vinda, principalmente em tempos de muita histeria e pouco conteúdo). 

As referências aqui presentes para construir o protagonista, vilão, messias, são as mais diversas: vão desde Robin Hood (que tirava, vocês lembram, dos ricos para dar aos pobres) à Antônio Conselheiro (mártir de Canudos) passando, é claro, pelo genocida e ditador Adolf Hitler. 

Destaque imprescindível: o storytelling de Flávio Luiz é formidável. Ele bebe na fonte do mestre Will Eisner - criador do eterno Spirit - para criar uma história de fôlego e muita revolta. Escolhe uma decupagem que flerta com o estilo europeu, fazendo com que o álbum pareça, em alguns momentos, uma grande animação. E ao final do trabalho, no comentário crítico anexo, descobrimos que ele tomou de empréstimo ideias de outro gênio da nona arte: o eterno Katsuhiro Otomo, criador do lendário Akira. Mais interessante do que isso, impossível. 

Recomendo aos leitores, se puderem, leiam a obra gráfica mais de uma vez. Para preencher as entrelinhas que porventura tenham ficado da leitura original e captar melhor detalhes preciosos da trama (de certa forma, a falta de balõezinhos e diálogos o impele à tal escolha, pois trata-se de uma história complexa, repleta de nuances). 

Ao final da inebriante experiência - eu devorei o álbum em pouco mais de 40 minutos e o reli logo em seguida, por não acreditar à primeira vista no que meus olhos viram - o que Messias nos oferece é uma ode sangrenta (que muitas vezes nos deixa perplexos pensando tratar-se de uma fábula, pois não queremos acreditar que a realidade é bem mais cruel do que isso) sobre a falência de uma nação na qual todos os setores sociais imprescindíveis, mídia, igreja, estado, corporações, etc, conspiram por um bem comum (no caso: a ganância) e travestem seus interesses grotescos de um discurso falacioso "em nome de Deus". 

E eu confesso: tenho muito medo do que (ainda) vem por aí... 


domingo, 7 de junho de 2020

Post mortem


"Se você acha que está difícil agora, imagina naquela época!". 

A frase, que ouvi de longe proferida por um senhor de mais 80 anos num barzinho aqui perto de casa, era uma resposta dada a um grupo de adolescentes alienados que defendiam a relevância de regimes totalitários e repressores. E os jovens, sem resposta, calaram-se (um silêncio, diria, perturbador). 

No mesmo dia que ouço essa frase, muito bem colocada por sinal, o Canal Brasil reexibe na madrugada o sempre interessante Eu te amo, de Arnaldo Jabor (lançado em 1981). E o sentimento que percebo ao fim da exibição é o mesmo: o de estarmos vivendo numa letargia, sem vistas a algo melhor no futuro. 

Conheço muito moralista de plantão - de hoje e daquela época - que rotula este filme de "uma reles pornochanchada". Só posso lhes dizer: "assiste de novo, então! vocês não entenderam nada!"

Eu te amo conta a história de Paulo (Paulo César Pereiro, ator praticamente onipresente daquele período do cinema nacional), um empresário falido que apostou todas as suas fichas num empreendimento que não deu em nada e ainda por cima foi largado pela mulher, a médica Bárbara (Vera Fischer) e a sensual Maria (Sônia Braga) que não consegue fazer o grande amor de sua vida, o piloto Ulisses (Tarcísio Meira), abandonar a esposa. Exauridos pelas respectivas derrotas se encontram na cidade e trocam telefones. Paulo decide ligar para Maria - que se esconde sob a alcunha de Mônica, e diz ser garota de programa - e pede que ela venha até seu apartamento, o único patrimônio que lhe restou. 

Paulo é praticamente um agorafóbico, quase não sai de casa e não se cansa de assistir os vídeos que gravou de sua ex-mulher. É um homem frustrado, arruinado pela vida e  pelo que o Brasil se tornou durante o período militar. Já Maria/Mônica é uma submissa de carteirinha, não tem voz ativa para lutar pelo que quer e nunca conseguiu viver de outra maneira que não fosse à sombra do amante. 

Quando suas vidas se esbarram eles meio que pressentem que precisam ser um a muleta do outro. Vivem numa espécie de post mortem (e por mais estranho que pareça aos leitores a minha escolha por esse termo, é dessa forma que vejo as suas existências: são pessoas destruídas, devastadas por uma era de violência e repressão que deixou sequelas nunca apagadas - até hoje, pleno século XXI). Empurram a vida com a barriga e fingem esperar por dias melhores, mas na prática o que se percebe é um inconformismo latente, um sentimento de que a verdade não existe mais, uma vontade de desistir de tudo, mas cadê coragem?

E como consequência dessa inércia ludibriam a vida (ou a rotina, como preferirem) do jeito que podem: tentam entender as razões do outro, transam sempre que podem, brincam, debocham do país, do sistema, de suas próprias vidas ilógicas. E quando raramente falam sério, vê-se claramente o ódio e o ressentimento acumulado por anos. Um retrato ácido sobre a contraditoriedade que reina nesse país desde que eu me entendo por gente. 

Quando o desfecho bem humorado, à la musical da Broadway, dá as caras o que percebo é estar diante de uma grande alegoria sobre o desânimo que se abateu por toda uma geração que apostou suas fichas numa revolução que não veio, não passou de autoritarismo e da eterna mania que os seres humanos têm de acreditar nas piores coisas, desde que elas sejam baseadas "na moral e nos bons costumes". 

E nesse sentido é impressionante ver que mesmo após quase quatro décadas o longa não só não envelheceu um segundo sequer, como permanece extremamente relevante para entendermos no que o país acabou se transformando com o passar do tempo: uma nação algemada à falsos ideais e correções políticas. 

Grande Jabor. Por onde andas, meu caro, que não tenho te visto? O cinema brasileiro anda carente de boas ideias e desabafos. Como os seus. 

quinta-feira, 4 de junho de 2020

A nossa pioneira das artes


Eu lembro da primeira vez que ouvi falar da tela Abaporu, da pintora modernista Tarsila do Amaral. Eu era moleque - coisa de uns 11 anos, mais ou menos - e tinha um professor, de nome Gabriel, que adorava trazer para a turma (fora do cronograma regular do curso, é lógico!) curiosidades artísticas e históricas sobre o país. E me lembro exatamente da minha reação de estranhamento ao vê-la. 

Eu era espectador de seriados tokosatsus que eram exibidos na hora do almoço no SBT (programas como Spectroman e Ultraman) e comparei a figura monstruosa com as criaturas que os heróis japoneses enfrentavam em cada episódio. Eu sei, eu sei... Mas deem um desconto. Eu ainda era muito novo naquela época. 

O tempo passou, eu comecei a ler - alucinadamente, é bom que se diga! - e minha curiosidade sobre a personagem tarsiliana só fez aumentar. Na verdade, tudo quanto era figura disforme na história da arte chamava a minha atenção (na verdade, ainda chama). E o resultado dessa curiosidade chega hoje às vias de fato quando decido fazer este humilde artigo sobre a tela. 

Abaporu, que segundo sua origem tupi-guarani significa "homem que come gente, canibal, antropófago", não possui um gênero definido. Não se sabe ao certo até hoje se é um homem ou uma mulher. De concreto, uma certeza: foi pintado por Tarsila em 1928 e dado de presente de aniversário à seu marido, o poeta Oswald de Andrade, que não só adorou o presente como tomou-o como pontapé inicial para a criação do movimento antropofágico (que visava deglutir a cultura estrangeira, incorporando-a na realidade brasileira para dar origem a uma nova cultura transformada, moderna e representativa do nosso país). 

Contudo, seria chover no molhado dizer aos leitores desse texto que tal obra se satisfará com comentário tão genérico. Pelo contrário... A tela de Tarsila é complexa e cheia de reflexões as mais diversas, tanto sobre nossa história como também sobre a cruel realidade do povo. Logo, é preciso atentar detalhadamente para cada aspecto do quadro. 

Ficamos impressionados logo de cara com o corpo disforme que toma a maior parte da tela. É uma criatura de cabeça pequena e pés e mãos gigantescos, fazendo com que à primeira vista, muitos pensem tratar-se de uma figura deficiente ou portadora de uma doença incurável. Nada mais errado do que isso. 

A cabeça minúscula é uma representação imagética, um sinal da condição da desvalorização do trabalho intelectual no nosso país (condição essa que se perpetua até os dias de hoje, infelizmente). Já os pés e mãos avantajados denotam o sofrimento do trabalhador brasileiro, a demasiada importância dada à força braçal e ao trabalho físico (tem que faça hoje, inclusive, uma leitura de que ela estaria cutucando os empresários e latifundiários acerca da condição escravocrata do mercado de trabalho). 

Em segundo plano (e digo isso não por demérito, e sim pelo fato da figura humana representada realmente chamar quase toda a atenção para si) vemos um sol causticante e um grande cacto. O sol, que aqui ganha também uma simbologia relacionada ao olhar - ele lembra um grande olho que tudo observa de longe - reflete sobre as condições duras, quase desumanas, que envolvem o trabalho rural (nota: Tarsila foi criada, ainda pequena, numa fazenda e conviveu de perto com essa realidade). Já o cacto traz em seu bojo uma lembrança da seca e da resistência e estabelece um paralelo com o povo brasileiro, mais especificamente o nordestino, bem como sua capacidade de resiliência.  

Detalhes importantes: as cores que predominam na tela (o verde, o amarelo e o azul) constituem três quartos das cores presentes na bandeira nacional, o que remete à um ícone de brasilidade. E, além disso, a ideia do gigantismo presente aqui já havia sido trabalhada anteriormente por Tarsila cinco anos antes, quando pintou o quadro A negra (procurem no google images e comparem as duas telas). 

Duas linhas críticas costumam associar o Abaporu à ideia de depressão, de melancolia, o retrato de um homem cansado de viver única e exclusivamente para o trabalho (trabalho esse, quase sempre mal remunerado)  bem como a associação - tem quem chame até releitura - com a escultura O pensador, de Auguste Rodin (confesso que essa relação sempre me deixou meio confuso, pois enxergava os dois trabalhos em pólos distintos). 

Porém, críticas à parte, a tela de Tarsila é não somente um ato visionário como também pioneira em nossas artes. Comprada pelo colecionador argentino Eduardo Constantini  em 1995, num leilão em Nova York, por 1,5 milhão de dólares, encontra-se exposta no MALBA (Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires) e é considerada até hoje nossa tela mais valorizada e reconhecida no mercado internacional. E com justiça. é claro! 

Trata-se por si só de um grande ensaio visual sobre a realidade do país, sem protecionismos ou invencionices. E muitos autores de garbo da nossa literatura não conseguiram escrever até hoje o que Tarsila pintou de forma tão brilhante.  

E mesmo com um legado desses, ainda tem gente neste país mesquinho que não dá a mínima para artes plásticas...

P.S: quando pude ver a tela Abaporu com meus próprios olhos, na época das olimpíadas, numa exposição realizada no Museu de Arte do RJ, na Praça Mauá, entendi finalmente o poder dessa pintura e seu significado para a história cultural do país. E prefiro, sinceramente, acreditar que se trata de uma mulher. Nordestina, empoderada e forte, como essas contemporâneas que andam enfrentando os mandos e desmandos do trem desgovernado que virou o nosso país. E por um momento me deu vontade de gritar: "vida longa a ela!".

segunda-feira, 1 de junho de 2020

O eterno caubói de hollywood


Embora a geração do meu pai que frequentou as salas de cinema veja na figura do ator John Wayne um símbolo da masculinidade americana e do heroísmo hollywoodiano, aqui em casa a história foi bem outra. Ele viu nas caras e bocas de Clint Eastwood, o eterno caubói e detetive durão, um sinônimo de excelência cinematográfica. Passava madrugadas e madrugadas assistindo seus filmes na Sessão de Gala e no Corujão (numa época em que a tv aberta passava coisa boa!). Ai de quem dissesse que Clint não era o fodão. E cá entre nós: eu o entendo perfeitamente. O cara é uma lenda.

Pois bem: onde quer que meu pai esteja (ele partiu para o outro plano tem mais de uma década) certamente ficaria orgulhoso da notícia que acabo de ler no site da Folha de São Paulo: Clint Eastwood completou 90 anos mais lúcido e relevante artisticamente do que nunca. E soube se reinventar como poucos na indústria. 

"Ele poderia ter sido um grande galã, se quisesse; era uma homem extremamente bonito", me disse certa vez uma senhora de seus 70 anos de idade dentro de um cinema em Copacabana. E era verdade. Procure pelos westerns no qual trabalhou - principalmente a trilogia na qual foi dirigido pelo mestre italiano Sergio Leone (um dos responsáveis por despertar o interesse de Clint em migrar para trás das câmeras).

Eu confesso que me deparei com ele cinematograficamente já mais tarde, quando encarnava o eterno detetive Dirty Harry e desafiava seus arqui-inimigos com sua extraordinária magnum 44 (que certamente não seria hoje tão famosa não fosse por ele) e aquele seu olhar de "você sabe que já morreu, não é mesmo?. Somente bem depois, por influência do meu pai, fui atrás de seus faroestes. E aqui destaco três, para cinéfilos ansiosos por dicas: Era uma vez no oeste, Os abutres têm fome e o seu último no gênero, o fantástico e vencedor de quatro Oscars Os imperdoáveis.

Detalhe: eu fui ao cinema assistir este último e me lembro dos outros espectadores na sala de projeção, todos bem mais velhos do que eu, me olhando de forma estranha, meio que se perguntando: "o que esse garoto está fazendo aqui?". Eu, que já naquele tempo, adorava filmes antigos e atores veteranos, não dei a mínima. Clint era foda e ponto (sem contar que estava muito bem acompanhado nesta película pelos magistrais Gene Hackman, Morgan Freeman e Richard Harris). Procurem o longa. Tenho certeza de que ficarão boquiabertos. 

De ídolo do faroeste americano e detetive policial linha dura à diretor de filmes memoráveis (que lhe renderam até hoje dois Oscars de direção). Na coluna da folha, escrita por Inácio Araújo, o autor menciona que ele se tornou "autor de uma hollywood tóxica". E está coberto de razão. Falou de eutanásia, mulas transportando drogas, guerra no Oriente Médio, tsunamis devastando cidades e até mesmo de terrorismo internacional.

Clint se provou um diretor interessantíssimo - prova de que aprendeu bem o ofício com seus mestres Don Siegel e Sergio Leone - e nunca fugiu de polêmicas (seu último longa, O caso de Richard Jewell, expôs uma repórter como oportunista e deu o que falar, sendo boicotado entre os indicados ao Oscar) e ousadias (até musical ele já dirigiu, com Jersey Boys: em busca da música). Gosto muito de seus dois longas de guerra A conquista da honra e As cartas de Iwo Jima, projetos ambiciosos que ele rodou paralelamente em 2006 numa idade em que os grandes diretores preferem descansar ou não arriscar tanto assim, e considero Sobre meninos e lobos (adaptado do romance de Dennis Lehane) um filme subestimado pela crítica. 

Em 2008 quando atuou e dirigiu em Gran Torino disse à imprensa que seria seu último longa atuando. E, no entanto, depois deste já participou de mais três (ou seja: em se tratando de aposentadoria é melhor não acreditar em sua palavra, pois ele mesmo pode queimar a própria língua). 

No seu perfil do IMDb e em sites sobre sétima arte não encontro informações sobre novos projetos dele, mas em se tratando de Clint isso não quer dizer absolutamente nada. Tenho certeza de que não demora muito e me depararei de novo com os créditos "A Malpaso production" na tela. É apenas uma questão de ter paciência. 

E como sei de antemão que parte de meus leitores vão me pedir um kit básico para conhecer a obra do mestre, segue abaixo uma lista básica de filmes indispensáveis de Mr. Eastwood (obs: os fãs da velha hollywood vão querer fuçar na filmografia completa dele depois. Podem me cobrar!): 

Por um punhado de dólares (1964)
Por uns dólares a mais (1965)
Três homens em conflito (1966)
O estranho que nós amamos (1971)
Perseguidor implacável (1971)
Doido para brigar... Louco para amar (1978)
Alcatraz: fuga impossível (1979)
Bronco Billy (1980)
Bird (1988)
Sobre meninos e lobos (2003)
Menina de ouro (2004) 

E isso é só um aperitivo, hein! 

Faltou falar alguma coisa? Faltou. Pedir que ele chegue ao centenário, como fez o também ótimo Kirk Douglas que nos deixou recentemente, e que continue nos propiciando experiências cinematográficas únicas. Vida longa, Clint!