quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

A crônica viva daqueles loucos 80


Ah que saudade daqueles tempos (e, claro, da minha adolescência, que eu daria tudo para viver mais um pouco se eu tivesse a chance)!

Há 35 anos - eu sei... era mais um moleque tentando entender o mínimo e não conseguia captar quase nada - aparecia no mercado fonográfico um álbum que era a cara daqueles anos 1980 loucos, sem freios, caóticos e também extremamente divertidos e alucinantes. Inimigos do rei, o disco de estréia da banda homônima que nasceu de um show no Paço Imperial, após a diretora do espaço reclamar do som muito alto. 

Na verdade, rei não fazia necessariamente alusão à ideia do monarca e era, isso sim, uma sigla para a expressão Rancor Endêmico Improdutivo. A banda se via como opositora ao sistema e se negava a diminuir o som de seu projeto. O resultado disso: uma crônica escrachada e alucinógena daquele período hoje visto como tão nostálgico e arrebatador. 

Na capa o artista gráfico Luiz Zerbini nos apresenta uma aquarela inspirada no pintor Botticelli (1445-1510). E acreditem: ela faz um contraste interessante com o conteúdo das letras, todas ácidas e cheias de deboche ao país e à cultura nacional. 

Seus maiores hits, até hoje cantados em festas flashback país afora, com certeza são "Adelaide", uma versão em português de You’ll Be Illin, dos rappers Run DMC, que nos traz a saga da anã paraguaia mais famosa do Brasil, e "Uma barata chamada Kafka", clara inflûencia do romance A metamorfose, do escritor Checo de ascendência alemã Franz Kafka.

Contudo, vale a pena destacar também composições como "Garotinha do front", que entre uma festa e outra, vê "políticos embaçados, desodorantes vazios, marinheiros tarados, executivos despedidos e corações de batom" de dentro de seu táxi-moradia; "Apocalipse Joe", o segurança da boate Fair Play, de plantão em hotel, de milionário gay, do hospital Pinel, de artistas siderais e de todas as gatinhas da cidade, que acaba afundando numa overdose em meio ao seu próprio delírio; e a atualíssima - provavelmente seria boicotada no Brasil de hoje - "Crime", na qual a banda correlaciona o mundo do crime com muitas classes ditas hoje privilegiadas e com práticas reprováveis da nossa sociedade. 

Recomendo aos leitores deste post que ouçam esta canção, disponível no you tube, assim que terminarem de ler aqui e tirem suas próprias conclusões!

Há ainda uma "Miss Goodbar" (seria homônima da personagem da atriz Diane Keaton no longa de 1977, dirigido por Richard Brooks? Se pudesse, perguntaria aos integrantes do grupo) e também "Suzy inflável", a namorada comprada numa loja erótica e amiga inseparável de todas as horas... Sim, em termos de loucura e subversão, o céu aqui está além do próprio limite. 

Também, não custa lembrar que eram tempos de compositores como Fausto Fawcett, Laufer, Júlio Barroso (vocalista do Gang 90 & as absurdettes); programas de auditório como Perdidos na noite, com Fausto Silva e bailes de carnaval transmitidos pela Rede Manchete por Rogéria e Otávio Mesquita fantasiado de repórter morcego. Logo, esperavam o quê naquela época? Sanidade?

E ainda assim, sinto saudades - como acredito que muitos da minha geração - de cada segundo do que foi ouvido aqui e vivido naquele tempo. E se você nunca ouviu o álbum resenhado neste texto, corra e ouça agora. Aposto o que for que vai mudar completamente a concepção de música e arte que vocês tinham até então.  

P.S (ou triste constatação): saber que a MPB passou disso - com toda a irreverência e estilo possíveis - para sertanejos que só fazem berrar, piseiro, axé bunda mole, música gospel e divas que se escondem atrás de corpos esculturais e bailarinos, é no mínimo de doer. Pensem nisso, meus caros leitores! 


sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Um estranho em Seattle


Certas pessoas precisam ser a estrada. Outras, o retardatário. Parece louco, eu sei... Mas não deixa de ser verdade.

Kurt Cobain era rebelde, tinha tudo para ser o antissocial, o que não se encaixava em lugar nenhum, e disso todos os fãs do Nirvana - banda que ele fundou e consagrou no mercado fonográfico - já sabem desde o início de sua existência. Contudo, o garoto estranho de Seattle tinha um sonho e poucos realmente o entenderam. E não à toa mais e mais pessoas querem saber quem foi esse garoto, antes da fama, de Bleach, de Nevermind, de In Utero...

É exatamente essa a intenção da magnífica graphic novel Kurt Cobain: Quando eu era um Alien, da dupla Danilo Deninotti e Bruno Toni. (E desde já adianto: a correlação com o alien é mais provocação - ou sarcasmo - do que propriamente o mote da hq)

Kurt era o estereótipo vivo da derrota e do niilismo. Fruto de um lar instável, vivia os dias perambulando, ou pelas ruas, ou fingindo que estudava na escola. E quando seus pais se divorciaram, aí então a coisa degringolou de vez. Sobrou-lhe apenas a falta de perspectivas, os amigos (desajustados como ele) e o amor pela música, única e real razão pela qual continuar vivendo. 

Porém, até a consagração definitiva com a canção "Smells like teen spirit" foram muitos percalços, muitas portas na cara (até os pais desistiram dele), romances efêmeros e, muitas vezes, uma sensação de impotência e melancolia. 

E nesse sentido, vale a pena elogiar a paleta de cores com tons azuis, remetendo bem a essa ideia de aprisionamento, a sensação de que a vida do protagonista está presa, amordaçada em algum lugar, e ele não sabe bem - a princípio - como se libertar dessa condição. Mas ao mesmo tempo ele precisa passar por todo esse dilema, é a sua jornada, o seu carma. 

Pois somente desse jeito ele atingirá o "estado de libertação espiritual" proposto pelo nirvana, que conclui sua trajetória rumo ao sucesso e à fama.  

Não conhecia a dupla de quadrinistas, mas já estou fuçando na internet atrás de outros projetos deles. Gostei muito do clima, do formato proposto e, principalmente, da decisão deles de não heroicizar Cobain (algo que vejo muito em certos segmentos da chamada mídia pop, que chegam até a tratá-lo como uma espécie de super-herói, imbatível, insubstituível). Essa é, com certeza, a melhor característica do trabalho: traçar a humanidade de Kurt antes dele se tornar o astro de rock que se tornou.

Para saber e esmiuçar mais sobre a gênese confusa do artista que, dizem, criou a "última verdadeira banda de rock da história"? Aí, meus amigos, só lendo e tirando suas próprias conclusões. Eu dei a sorte de encontrar essa relíquia em capa dura por módicos 20 reais num saldão. E espero sinceramente que você tenha a mesma sorte.


terça-feira, 23 de janeiro de 2024

R.I.P Norman Jewison


É sempre muito triste para os cinéfilos quando um grande nome da sétima arte nos deixa - e, nos últimos anos, hollywood tem perdido muitos deles numa velocidade por demais espantosa (e pior: sem a devida renovação à altura). Entretanto, o diretor que se foi dessa vez é um caso longo de admiração da minha parte, pois sempre creditei ele numa lista dos melhores da história que eu assisti no cinema (e em casa).

Em outras palavras: é com pesar que fico sabendo da morte do diretor Norman Jewison no último sábado (20), aos 97 anos. 

Sempre vi Jewison como uma grande criador de narrativas. Mais até: fez parte de uma geração que esmiuçou a sociedade americana com requintes de genialidade, expondo todas as suas paranoias, miscigenação, crenças e ambições. Contudo, até hoje não sei se ele foi reconhecido como merecia pela indústria. 

Ele era um diretor de quem se podia esperar tudo: com ele, pela primeira vez vi na tela um homem negro estapeando um homem branco, e também uma cantora (cantora? uma diva pop) ganhar um Oscar de atuação merecidamente. Em seus longas a jogatina e a corrupção jurídica eram protagonistas e até mesmo a saga vivida por Jesus nos evangelhos virou um musical simplesmente fabuloso. 

Como esquecer de Rollerball: os gladiadores do futuro, e do nocivo jogo que alienava as massas enquanto o Estado aprontava das suas, na surdina? E dos sindicatos se matando pelo poder em F.I.S.T, que nos traz um Sylvester Stallone diferente de tudo que o consagrou ao longo da carreira com Rambo e Rocky? E da onipresença magistral de Steve McQueen em A mesa do diabo e Crown: o magnífico? E do pugilista Rubin Carter - que virou até canção histórica de Bob Dylan - vivido por Denzel Washington em Hurricane - o furacão? Os exemplos são inúmeros e Jewison era um mestre em todos os gêneros e estilos. 

Obs: e se você viu os longas acima, mas esnobou Jesus Cristo Superstar (baseado em musical de Andrew Lloyd Weber), o extraordinário Um violinista no telhado, a poderosa Cher - figura icônica nos anos 1970 e 1980 - em Feitiço da lua e sequer deu trela para Al Pacino no memorável Justiça para todos, na boa... Tem algo MUITO errado com você!

Em 1968 seu longa No calor da noite venceu o Oscar de melhor filme, mas Norman não faturou o seu de diretor (uma puta injustiça... E o Academy Awards não mudou muito nesse sentido de lá para cá). Ele só viria a ser reconhecido de fato pela academia em 1999 com um Oscar honorário pelo conjunto da obra. E acreditem: não é mesma coisa, quando você conheceu o talento dele!

Jewison é daqueles diretores que praticamente dirigiu todo mundo que teve alguma relevância para o cinema em algum momento: de Danny Devito à Gerard Depardieu, de Robert Downey Jr à Nicolas Cage, de Michael Caine à Jane Fonda... Nunca se deixou seduzir por franquias e blockbusters que visavam primeiramente ao lucro e foi fiel - até o fim - à sua própria identidade. Com certeza vai fazer falta (e muita!) na atual hollywood, cada dia mais carente de artistas que pensem com a própria cabeça. 

Todo meu respeito, meu caro! E fique em paz junto com os deuses do cinema. 


domingo, 21 de janeiro de 2024

Rito de passagem? uma ova!


Depois que vi no cinema A sociedade dos poetas mortos, de Peter Weir, lá pelos idos de 1990, passei a rever completamente o meu conceito sobre educação e, principalmente, sobre as instituições de ensino. E desde já digo aqui nesse post que sou muito grato por isso. Fui um aluno que olhava a própria escola onde estudou até a página 2, pois acreditava (e ainda acredito) que todo aluno precisa ter uma formação fora dos bancos acadêmicos. Além disso, escolas - e faculdades não fogem disso também! - são territórios repletos de feudos, guetos, turminhas, muita maldade e esnobismo e também de perspicácia (para conseguir sobreviver a tudo isso).

Tem quem chame isso de rito de passagem. Eu acho essa uma definição simplória e um tanto inadequada. 

E por que me lembrei dessa época tão distante? Porque meio que revivi esse sentimento cheio de antagonismos ao assistir hoje, enfim, ao tão famigerado Saltburn, novo longa da diretora Emerald Fennell. 

Em muitos aspectos me vi na figura do jovem e de poucas palavras Oliver Quick (Barry Keoghan), o aluno bolsista de Oxford, na maioria das vezes alvo número 1 das chacotas da burguesia londrina que nunca perdoa quem não pertence ao seu meio e faz questão de deixar claro qual é o seu lugar naquele mundo. Oliver precisa se formar, pois é sua única chance de chegar a algum lugar no mundo real, fora das paredes daquela instituição dissimulada. Isso até conhecer Felix Catton (Jacob Elordi).

Ele se encanta pelo universo apaixonante - e viril - daquele belo rapaz privilegiado que não precisa fazer o menor esforço para chegar aonde precisa. E quando é convidado pelo mesmo para conhecer Saltburn, a residência de sua família, ele vê naquilo uma porta de acesso única a um lugar que, até então, imaginava como um mero sonho (ou delírio). 

Mas lembram do que eu falei no primeiro parágrafo? O lance de olhar a escola até a página 2? Pois bem... Nunca sabemos de fato no que as pessoas - principalmente as paixões à primeira vista, nossos colegas de longa data e também os esquisitos da sala - vão se tornar. Seres humanos são grandes incógnitas e pessoas como Oliver costumam ser desmascaradas com o passar do tempo. Elas nunca são unilaterais. 

Como pano de fundo à descoberta das reais intenções do "menino excêntrico", a família de Felix, repleta de esnobes, exibicionistas, pessoas que não estão nem aí para o mundo real (pois vivem numa redoma, intocáveis - aparentemente - a tudo e todos), incluindo os agregados, os que nem sangue azul possuem e, mesmo assim, não perdem a chance de menosprezar os demais. E a consequência do embate entre essas duas realidades costuma ser catastrófica. 

Emerald Fennell já havia mostrado bastante dessa sociedade obscura e sem limites no anterior e também interessante Bela Vingança. Porém, aqui, ele decide entornar o caldo de vez e expor as fragilidades em forma de confiança de ambos os lados. Sim, em ambos os territórios, seja você o ricaço ou o sobrevivente, nota-se o quanto não passamos de criaturas frágeis, contraditórias e capaz de qualquer coisa para aniquilar o adversário (seja ele quem for). 

Continuo acreditando que a diretora está quase no ponto, pois ela precisa aprender a produzir finais melhores, mas quer saber? Quem sou eu pra bancar o chato? É apenas o segundo longa da moça. O importante, por ora, é: ele está no caminho. E em tempos de hollywood perdendo tempo com tanta bobagem e sendo chamado de gênio, acreditem!, este é um baita elogio.   

Fico por aqui, pois não vou ensinar o caminho das pedras à cinéfilos de primeira viagem que acham que cinema se resume a Disney, Marvel, DC, Star Wars e criaturas sobrenaturais. E, além disso, vocês já estão bem grandinhos para se permitirem novas experiências e saírem da zona de conforto (e nesse sentido Saltburn é, sim, uma interessante proposta). Quem gosta de mesmice, meus caros leitores, é fanático religioso e esse blog não foi criado para esse tipo de gente. Não mesmo.

Agora é com vocês, arrisquem-se!


quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Guerra e paz (a outra, não a do Tolstói)


Há tempos não falava de artes plásticas e história da arte por aqui (e me ressinto disso, vou logo dizendo, pois adoro o tema).

Engraçado como sempre falamos de nossos pintores de forma secundária em relação aos artistas internacionais. No alto escalão há cadeiras cativas para nomes como Pablo Picasso, Vincent Van Gogh, Henri Matisse, Juan Miró, Paul Cézanne, Gustav Klimt, etc etc etc... Já quando mencionamos Tarsila do Amaral, Carlos Vergara, Caribé, Anita Malfatti, entre outras feras, e os misturamos com as lendas do exterior, sinto um certo despeito de certa parte da nossa sociedade. 

"É o complexo de vira-latas dando as caras", ouço meu pai dizendo nessas horas. De novo! 

Dentre nossas estrelas do mundo das artes, tenho um preferido de longa data: Candido Portinari. Sim, o menino de Brodowski, interior de São Paulo, é um tesouro nacional que eu não canso de elogiar. E entre seus trabalhos mais conhecidos e de renome, há um em específico que me toca profundamente. Falo do painel Guerra e paz, produzido para a sede da ONU em Nova York.

Foram mais de cinco anos de trabalho, 200 desenhos, gerando 70 representações de personagens, contando cada uma com 14 x 10 metros. 

A primeira lâmina, mais escura, com tons de azul predominando, foca na guerra e a eterna brutalidade que acomete os homens. Já a segunda, mais clara, evidenciado o amarelo e um sentimento de plenitude, ilustra momentos de paz pós-conflito. O mais triste? Portinari nunca pôde ver seu trabalho instalado na sede por conta do macarthismo que reinava nos anos 1950, e também por ter seu visto de entrada no país negado (motivo: sua ligação com o partido comunista na época). 

Mesmo com tantos revezes e restrições, foi conferido à Candido pelo trabalho o prêmio da Solomon Guggenheim Foundation. E a grande mensagem passada pelos painéis é, sem sombra de dúvidas, a questão da violência e da injustiça social, um mal que aflige o mundo há muito mais tempo do que somos capazes de precisar. 

Aliás, uma rápida curiosidade (antes que eu acabe me esquecendo de mencioná-la aqui): Guerra e paz foram os últimos painéis criados pelo pintor, que chegou a ser desaconselhado pelos médicos a realizar a obra. Chegaram a pedir para que ele parasse de pintar por causa do processo de envenenamento pelas tintas.

Em 2010, por iniciativa do Projeto Portinari, os painéis foram retirados durante uma longa reforma do prédio da ONU para serem restaurados e itinerarem pelo Brasil e outros países (como França e Japão). Detalhe: a restauração feita aqui no Brasil pôde ser apreciada por estudantes e crianças. Terminado o trabalho, a obra foi devolvida à sede da ONU por conta do aniversário de 70 anos da organização. 

E isso tudo, meus caros leitores, realizado por um artista nacional. Pensem nisso! Paremos com essa mentalidade de enxergar os gênios apenas em outras nações. Às vezes a relíquia está bem aqui e não percebemos (ou pior: não queremos perceber). 

P.S: não é só o Liev Tolstói que foi capaz de criar um clássico, não!   

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

A marchinha carnavalesca de 2024?


O ano de 2023 acabou? Em tese, sim. Mas oficialmente mesmo, como todo mundo sabe de cor e salteado neste país, só depois do carnaval. E ele aos pouquinhos vai dando as caras na cidade do Rio de Janeiro. Já começaram os primeiros ensaios técnicos na Marques de Sapucaí e alguns blocos matreiros enfrentam as exigências da prefeitura e saem por aí, de forma até ilegal.  

Não adianta. A festa de momo está no dna do brasileiro raiz que não vê a hora de poder cair na farra, viajar, etc. A possibilidade de fazer fuzarca nas ruas, beber todas, flertar, se fantasiar de personagens inusitados é algo único... É aquele momento "hora de chutar o balde e esquecer dos problemas" de todo ano. 

E quando se pensa em carnaval no Brasil, difícil não lembrar das marchinhas que embalaram multidões, como "A cabeleira do Zezé", "Me dá um dinheiro aí", "Ó abre alas", "Allah-la-ô", "Mamãe eu quero" e "Turma do funil", dentre vários clássicos. É verdade que nos tempos atuais elas perderam parte do seu prestígio na medida em que uma nova geração de compositores não surgiu para reciclar e reinventar o formato. Contudo, o mestre dos hits carnavalescos, João Roberto Kelly, ainda se encontra entre nós e atualíssimo, aprontando das suas.  

Prova viva disso é sua mais nova criação, Romeu ou Julieta, interpretada pela cantora Maria Alcina, puro retrato da androginia carioca e a cara viva dessa época do ano. E a letra promete incomodar aos mais puritanos, entrando de sola na questão da sexualidade (tema que virou tabu nos últimos anos por conta da onda conservadora que anda enchendo o saco da sociedade, cheia de não me toques, protestos e boicotes).

Eis abaixo a letra, cheia de melindres e "segundas intenções":


“Adivinhe quem quiser

 Se sou homem ou mulher

 Eu sou mistura de Romeu com Julieta

 Eu sou a cara do futuro do planeta…

Se você me quiser

Tem que ser do jeito que eu vier"


Eu já imagino a cara e os discursos revoltados de certos líderes religiosos enfadonhos e políticos demagogos, que devem até tentar proibir a veiculação da música em algum momento. Vai adiantar? Duvido muito. O povo brasileiro, que só faz aquilo que quer e quando bem quer, provavelmente irá cantá-la nas ruas, fará coro nos blocos de empolgação, nem que seja para provocar ou irritar os chamados falsos cristãos e cidadãos de bem. 

Que chegue logo fevereiro para pormos à prova o potencial de rebeldia da marchinha sacana na boca dos foliões debochados e loucos para enfrentar a horda moralista! Será ela o hit de 2024? Só o tempo dirá. Aguardemos o próximo capítulo dessa história... 


sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

O caos já chegou e você nem percebeu


Encontrei uma edição de Música para antropomorfos, de Fábio Zimbres, numa banca de livros de segunda mão em frente ao Norte Shopping por módicos 5 reais. E que presente de começo de ano! Estava atrás desse épico underground desde que foi lançado em 2006, sem sucesso. 

O projeto é uma parceria de Zimbres com a banda de rock goiana Mechanics, que lançou um álbum com 15 faixas no mesmo período (por sinal, procurem no you tube que tem o arquivo de áudio completo!). E ao fim da leitura - e audição - a sensação que me ficou dessa combinação foi uma representação légitima do caos cotidiano em que vivemos, com toques de sci-fi e grafites paulistanos da melhor categoria. 

Preparem-se para tudo, principalmente para o nonsense puro e hardcore. No mundo criado por Zimbres dividimos nossa atenção entre duas cidades-robôs ou fortalezas andantes: SP (San Paolo) e SF (San Francesco). Já na prática, o que vislumbramos nas páginas em preto-e-branco são núcleos da mais pura violência e estupidez humana. 

Pessoas mudam de caráter como mudam de roupa; pântanos, florestas, desertos e campos povoados por jacarés musculosos, vacas amáveis e cães sem cabeça. Aliás, eu falei em vaca? Uma delas é o protótipo vivo da tirania, faz gato e sapato dos seus subalternos e dirige sua empresa com mãos de ferro. Há, inclusive, uma subtrama interessante envolvendo o papel das editoras no mundo contemporâneo que me fez pensar aqui nesses leitores de mediocridade pop que fazem tanto sucesso na internet. 

Resumindo: Em Música para antropomorfos o caos já chegou faz tempo e você nem percebeu, porque estava preocupado demais com o seu próprio umbigo e a própria vaidade fútil, regada a reality shows desnecessários e modismos atrozes. Deu no que deu. 

E, se puderem, não esqueçam (mesmo!) de ouvir as faixas do álbum musical. A voz rascante do vocalista da banda dialoga - e muito! - com o clima desesperado e apocalíptico da trama surrealista proposta.

De resto, só mais uma puxada de orelha na Marvel e DC (coisa que faço com bastante frequência neste blog): esse tipo de material vocês não oferecem para o seu público, não é mesmo? Pois deveriam. Porque esse negócio de engajamento, divas e hype, cá pra nós, já deu o que tinha que dar faz tempo.  


terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Page, 80


Alguns artistas tocam seu instrumento, chamam atenção, levam o público ao delírio. Outros são o instrumento. E fica praticamente impossível aos ouvintes de bom gosto discernir entre um e outro. Jimmy Page, ídolo eterno, que completa 80 anos hoje, é um desses. E digo mais: quando penso na "cara do rock n'roll" ele certamente é uma das primeiras pessoas que me vêm à mente. 

Do The Yardbirds ao Led Zeppelin, passando por toda a fúria e o reacionarismo que você puder imaginar (principalmente nos anos 1970), com direito ainda a doses cavalares de experimentalismo, contracultura e sarcasmo puro. Assim é uma das figuras mais impressionantes da história da música mundial. 

Por apenas dois momentos ímpares eu já teria um milhão de motivos para defendê-lo de quem quer que seja. Me refiro, logicamente, à "Stairway to heaven" e "Kashmir", hinos incontestes de uma geração. Contudo, como não lembrar de Page após ouvir (e reouvir ad infinitum) pérolas como "Black Dog", "Rock and Roll", "Whole Lotta Love" - considerado por muitos o riff definitivo do rock -, "Immigrant Song", "Dazed and Confused"... Uau! A lista é imensa e desde já peço desculpas por não reproduzí-la toda nesta singela homenagem. 

Lembro dele no documentário The Song remains the same - que revi recentemente - e do delírio que senti ao ouvir sua guitarra frenética. Lembro também de quando ele esteve aqui no Brasil, junto com seu parceiro Robert Plant, para se apresentar no Hollywood Rock (show esse que é facilmente encontrado no you tube. Procurem!). Lembro dele, enfim, no show de reencontro do Led Zeppelin após tantos anos do fim da banda. E sério! A banda tinha que acabar mesmo? Até hoje eu não digeri essa informação.

Aliás, falei de Page no Brasil agora há pouco. O gênio da guitarra morou por aqui na cidade de Lençóis, na Bahia, entre 1994 e 2008. Conviveu de perto com Pepeu Gomes, Robertinho do Recife e outras feras tupiniquins. Chegou até a doar uma grana para ajudar jovens de baixa renda, que levou à criação da Casa Jimmy.

Só por ter feito parte de uma geração que nos legou Jimi Hendrix, Eric Clapton, Jeff Beck e Pete Townshend, eu poderia dizer a vocês com a maior calma do mundo: "é... o cara era foda!". Entretanto, isso somente não explica sua grandeza, seu talento, seu feeling no palco. E se você não o viu no palco está lendo tudo isso aqui à toa. Jimmy Page precisa ser sentido, e não simplesmente visto ou lido  (mesmo havendo obras literárias interessantíssimas sobre o seu trabalho nas livrarias).

Ao fim, o que me resta dizer é: o camaleão do rock - é assim que gosto de chamá-lo - ainda está vivo e muito vivo. E como é bom saber disso em meio a tantas notícias ruins envolvendo o mercado fonográfico nos últimos anos.

Que venha o centenário, mestre!!!


sábado, 6 de janeiro de 2024

O velho lobo


É com enorme pesar que atesto: "o futebol brasileiro está definitivamente fodido e mal pago a partir de hoje".

Não bastasse perdermos Pelé, o mago da bola, no ano passado, acordo hoje com a triste notícia da morte de Mário Jorge Lobo Zagallo, ex-jogador e técnico da seleção brasileira, único tetracampeão mundial de futebol, aos 92 anos.

Dizer o quê de Zagallo que já não tenha sido dito tantas vezes ao longo de sua carreira gloriosa? Ele foi, com folga, uma das figuras mais míticas e divertidas da história do futebol brasileiro. E sua trajetória não se resume aos campos exclusivamente. Sem papas na língua e acompanhado de uma narrativa que misturava seu número da sorte e muita empáfia (até mesmo para enfrentar seus detratores na imprensa esportiva), ele enfrentou tudo e todos por um ideal: o de manter o nosso futebol no lugar que merecia, o de campeão. 

Assim na seleção - onde faturou como jogador em 1958 e 1962, como técnico em 1970 (substituindo João Saldanha) e como coordenador técnico em 1994 -, assim no Flamengo e Botafogo, clubes que defendeu com unhas e dentes até o fim da vida. 

Como esquecer daquela Copa América que vencemos contra a Argentina quando, emocionado, mandou um recado desaforado a críticos do seu trabalho na seleção, dizendo: "vocês vão ter que me engolir!"? E daquele famigerado amistoso contra a África do Sul, de virada, 3x2, com direito à voleio espetacular do Bebeto, no qual para debochar do técnico adversário com sua coreografia inusitada, meteu um aviãozinho maroto com sua comissão técnica? Até hoje eu lembro disso rindo. 

Chorei no tetra, chorei no título do Flamengo com o golaço do Petkovic contra o Vasco, chorei junto com ele quando perdemos pra França em 1998, gols de Zidane. E daria tudo para ter uma seleção como as dele de novo hoje na CBF e poder chorar de novo e de novo. E a pergunta que fica depois de sua partida é: e agora? O que é que sobra do futebol nesse país? Estamos lascados! 

Em vários tabloides, blogs e sites de esportes uma frase irônica: "Zagallo eterno tem 13 letras". E isso era a cara do velho Lobo. 

Fica com Deus, mestre! Você certamente fez por onde estar aí.  


quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Ode à excentricidade


Se me perguntassem coisa de uns 15, 20 anos atrás, "você leria Bartleby, o escriturário, de Herman Melville?", mesmo sabendo se tratar do autor do clássico Moby Dick, eu diria na lata: "Provavelmente não. Meu gosto literário é completamente diferente deste". E seria a mais pura verdade. 

Já disse em outros textos que escrevi neste blog, mas como nem todos leram antes repito: duas décadas atrás estava envolto em literatura policial (principalmente escritores da Black Mask, como Raymond Chandler e Dashiell Hammet), tirinhas de jornal, ficção-científica na linha Isaac Assimov, Ray Bradbury e Phillip K. Dick e muito, mas muito Allen Ginsberg e Jack Kerouac. 

Na verdade não dava muita trela para personagens esquisitos, excêntricos, mesmo quando extremamente bem produzidos. Isso só foi mudar de maneira mais radical quando assisti ao filme Muito além do Jardim, do diretor Hal Ashby. Pois bem: dito isto, que grata surpresa foi rever meus valores passados e ler, enfim, a obra de Melville, que vejo como uma grande ode à excentricidade.  

Obs: citei acima o longa-metragem de Ashby e, porque não mencionar, que o ator Peter Selles, que interpreta o protagonista Chauncey Gardiner, certamente faria um grande Bartleby se tivesse a chance. 

Bartleby é praticamente um anti-funcionário de repartição. Nunca obedece às mais simples ordens da chefia e faz de sua resposta "prefiro não fazê-lo" um mantra contra o mercado de trabalho. Seus colegas de trabalho não conseguem entendê-lo, muito menos seu chefe de setor, que vive um sentimento misto de revolta e pena por ele. 

Entretanto, se Bartleby fosse um pecado capital ele não seria a preguiça. Longe disso! Há método em sua forma peculiar de pensar e agir. E mesmo quando seu superior se cansa e muda o endereço da firma para outra localidade, ele não foge de seus princípios nada ortodoxos. 

Jamais imaginei que pudesse dizer isso de um livro que esnobei por tantos anos, mas Bartleby, o escriturário, está entre as narrativas mais sensacionais que eu li até hoje. Enxuta, concisa, sem argumentos em excesso e com uma premissa pra lá de inusitada em suas intenções, compõe uma novela digna de um intelecto ímpar como o de Melville.

Para quem tem curiosidade e nunca quis se arriscar, pois achou o livro curto demais, recomendo de graça. E para quem nunca soube nada a respeito da obra, vocês não tem ideia do quanto irão se surpreender se derem uma oportunidade a ela. 

É daqueles exemplares literários que me fazem pensar, de tempos em tempos, no quanto o mercado editorial já foi brilhante e agora vive de perder tempo com obras fúteis e best-sellers vazios. Herman Melville certamente é um autor eterno em todos os aspectos!