quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Aqueles fins de semana...


Nem parece que tem esse tempo todo, mas tem!

Faz praticamente uma década e meia que eu não leio quadrinhos de super-heróis, seja pelo desgaste natural das tramas, que para mim começaram a se tornar repetitivas, seja pelo meu cansaço em não querer mais ler sagas gigantescas que levavam por vezes mais de 50 edições para chegar ao final. Com a chegada da Marvel e da DC aos cinemas, preferi ficar com as versões audiovisuais. E acho que fiz bem.

Entretanto, há uma lembrança recorrente em minha vida - e principalmente nos fins de semana - quando o assunto é super-heróis nos quadrinhos e não é um gibi (essa expressão já caiu em desuso nos últimos anos) de um personagem em específico, embora eu lesse como alucinado as revistas do Homem-Aranha e dos Novos Titãs (pelo amor de Deus, esqueçam aquela série de TV recente, que é horrível!). 

Não, meus caros leitores! Esqueçam os Vingadores e a Liga da Justiça. A revista em quadrinhos que povoou a minha adolescência de cabo a rabo foi a (hoje) nostálgica Superaventuras Marvel.

E o primeiro motivo é fácil de explicar: eu sempre preferi os heróis sem superpoderes ou mutações ou deuses mitológicos. Se me perguntarem até hoje quem é o cara nesse universo Batman e Demolidor lideram a lista de lavada. 

E eis que entro no segundo ponto: Demolidor: o homem sem medo (ou o advogado Matt Murdock) foi o meu primeiro contato de fato com essa revista. Fiquei alucinado com a história do rapaz que perdia a visão e disciplinava o seu corpo e os seus sentidos para combater O rei do crime e companhia ilimitada. 

Terceiro ponto: o grande diferencial de Superaventuras Marvel era encontrar heróis que não possuíam, naquela época, revista própria aqui no Brasil. O justiceiro, Pantera negra, Tropa Alfa (de onde, aliás, saiu um pouco da origem do Wolverine), Mestre do Kung Fu (que, atualmente, faz carreira nas salas de cinema brazucas), Surfista prateado (outrora arauto de Galactus; para mim, o grande vilão dessa época), Quarteto fantástico, Elektra (isso antes de eu me deparar com a obra-prima Elektra assassina, de Frank Miller), Conan (que depois eu troquei pela maravilhosa A espada selvagem de Conan, que virou minha coqueluche de bolso), etc etc etc.

Haviam também encontros e duelos que levavam os fãs à loucura: Tropa alfa vs. X-Men, X-men e Quarteto fantástico lado a lado, Homem-Aranha e Mulher-Hulk contra Longshot, Demolidor e Motoqueiro Fantasma caindo na estrada juntos...

A revista durou 15 anos (de 1982 a 1997) e 176 edições. E para quem é fã do Deadpool de Ryan Reynolds no cinema as últimas edições antes do seu cancelamento trazem Cable como protagonista. Procurem!

Infelizmente, o tempo passou, meus cabelos se foram por causa do meu descuido e de anos e anos de água do mar, e eu descobri que a nona arte também era sinônimo de feras como Will Eisner, Milo Manara, Moebius, Sergio Aragonés e Art Spiegelman. Resultado: eu precisei dividir o espaço na estante destinado, até então exclusivamente, à Stan Lee e Jack Kirby até que os heróis tiveram que partir de vez.

Sobram, para minha sorte e a dos leitores desta tentativa de artigo, apenas as boas lembranças de uma época em que quadrinhos eram apenas pura diversão e não todo esse mercado estratosférico e milionário que hollywood abraçou na última década e transformou em nerdismo.  


domingo, 26 de setembro de 2021

O pai da blaxploitation


Sabe toda essa geração extraordinária e talentosa de cineastas negros que anda em voga na atual hollywood? Pois bem: para aqueles que se perguntam quando foi que tudo isso começou de fato, com força, ideias, bons roteiros e uma ousadia absurda, o primeiro nome que precisa vir à sua cabeça é o diretor Melvin Van Peebles. Mais do que simplesmente dirigir cinema, Melvin é responsável por toda a reviravolta que a comunidade negra deu nas últimas décadas quando o assunto é arte e cultura. E para quem acha isso pouco ou quase nada, digo-lhes: "vá ser negro nos Estados Unidos da América". 

Dito isto, é com um enorme pesar que fico sabendo (atrasado) que Melvin Van Peebles nos deixou, aos 89 anos, no último 21 de setembro. E podem acreditar: agora que ele e John Cassavettes não se encontram mais entre nós, o cinema independente americano NUNCA MAIS será o mesmo.

Nascido em Chicago em 1932, Van Peebles se formou em literatura pela Ohio Wesleyan University, fez parte da Força Aérea (na qual serviu por quase quatro anos) e realizou através de seus filmes um grande ensaio para entendermos o que significava ser negro num país contraditório e opressivo como os EUA. Isso sem contar seu trabalho como ator e também romancista. 

Seu livro The big heart e seu primeiro curta, Pickup Men for Herrick, criaram as bases do que seria sua sétima arte. Entre a natureza itinerante e seu discurso por vezes radical criou, mais do que uma mera expressão de arte, uma nova forma de pensar para os afro-americanos, que não só gostaram da ideia como a replicaram em gênero, número e grau. 

Prova viva disso é seu clássico Sweet Sweetback's Baadasssss Song, de 1971, que deu o pontapé inicial na grande anarquia que foi a chamada blaxploitation. O longa, que Melvin financiou de forma privada com seu próprio dinheiro e dirigiu, roteirizou, editou, escreveu a trilha sonora e até dirigiu a campanha de marketing, mudou completamente o curso da história do cinema norte-americano, além de incutir na cabeça de outros jovens de cor o interesse por aquela forma de rebeldia. 

Contudo, sua filmografia não se resume unicamente a este filme. Melvin enveredou por várias frentes, do cinema de arte europeu (assistam urgentemente A história de um passe de três dias) à comédia tradicional hollywoodiana (com Watermelon man), passando por produções da Broadway (filmou sua própria peça, Don't play us cheap), romances e performances. Em outras palavras: era um artista completo, a despeito daqueles que pensavam que ele só sabia dirigir bem a violência urbana do gueto onde vivia. 

O criador icônico acabou por morrer justo no momento em que seu trabalho voltava a ser celebrado. Seu longa mais famoso teria uma exibição do 50º aniversário no Festival de cinema de Nova York, a Criterion Films preparava o lançamento do box Melvin Van Peebles: Essential Films e sua peça Ain't Supposed to Die a Natural Death teria um revival programado para retornar à Broadway no próximo ano. Uma pena. Ele não conseguiu aguardar por tudo isso. 

E fazendo ainda referência ao primeiro parágrafo, sempre serei da opinião de que seu maior legado para a indústria cinematográfica norte-americana foi abrir as portas para nomes como Spike Lee, Barry Jenkins, Jordan Peele, Steve McQueen, Ryan Coogler e tantos outros. Acreditem: não fosse Melvin jamais veríamos a ascensão de longas como Boyz n' the hood, Pantera negra e 12 anos de escravidão como vemos hoje. E ainda assim vai ter gente lendo este artigo aqui e dizendo que eu estou é "inventando história".

Dizem que quando os grandes partem nós choramos, pois sabemos de antemão que aquela realidade que eles produziram nunca mais voltará. E assim que me sinto hoje. Melvin van Peebles promoveu uma vasta reflexão na terra do Tio Sam e isso é, por si só, muito mais do que simplesmente realizar um longa-metragem de ficção sobre desajustados sociais ou minorias. Se hoje os EUA vivem em meio ao black lives matter, ele com certeza deu uma enorme contribuição para isso. E merece aqui todo o meu respeito. 

Fica com Deus, mestre! E o seu discurso arrojado, sem papas na língua, vai fazer muita falta aqui embaixo.  

P.S: quando tiverem tempo assistam O Retorno de Sweetback, de seu filho Mario Van Peebles, que nos conta como foram os bastidores do maior clássico dirigido por Melvin. E eu duvido que depois de ver esta pequena joia vocês, cinéfilos de verdade, não vão querer assistir o original de 1971.      

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

A hollywood brasileira



Se teve algo que eu vi com próprios olhos com frequência em todo esse tempo em que me considero cinéfilo foi brasileiro dizendo de boca cheia: "detesto cinema nacional". Gente que adora se autonomear patriota, mas não faz a menor questão de conhecer a própria cultura, a própria língua, o próprio hino nacional. E ainda se vangloria disso nas rodinhas de bar e festas de familiares.

Pobres coitados! Quando falam de nossa produção audiovisual só conhecem mesmo nossas versões tupiniquins de enlatados americanos e europeus. Ou seja: aquelas comédias românticas insossas que invadem nossas salas de projeção de tempos em tempos, com direito a continuações as mais diversas. Uma pena. Nosso cinema é bem mais do que isso. 

Vejam, por exemplo, a Atlântida Cinematográfica que completou 80 anos de sua fundação no último 16 de setembro. Foi, sem sombra de dúvidas, nossa melhor tentativa até hoje de criar uma hollywood nacional (em outras palavras: promover o desenvolvimento industrial da nossa sétima arte). E mesmo não tendo vingado como deveria - e olha que ela merecia! - entrou para a memória afetiva de toda uma geração de cinéfilos que hoje sentem falta desses tempos gloriosos.   

Ideia que partiu da dupla Moacir Fenelon e José Carlos Burle, a empresa tinha a pretensão de unir arte e popularidade, tanto que além de produzir seus longas também os distribuía, e logo encontrou na figura de Luiz Severiano Ribeiro - maior nome do mercado exibidor até hoje e cujo grupo é proprietário da Atlântida desde 1947 - um parceiro de peso. 

Contudo, nos dois primeiros anos de existência a Atlântida se limitou a produzir apenas cinejornais, um formato de extrema popularidade no período da segunda guerra mundial. É desse período programas como o IV Congresso Eucarístico Nacional e Atualidades Atlântida. Já os longas ficcionais só começam a dar as caras com Moleque Tião em 1943. 

A consequência disso? A enxurrada de musicais que começam a pipocar nas telas. A empresa queria levar aos espectadores o registro audiovisual dos cantores que faziam sucesso no mercado fonográfico daquela época, artistas esses cujo público só conhecia pela voz através do rádio ou nas páginas das revistas. Resultado: Carmen Miranda, Francisco Alves, Emilinha Borba, Ivon Curi e tantos outros talentos ganham de vez o estrelato e a paixão de seus fãs.  

Outro aspecto fundamental para entendermos o sucesso da produtora foi o fato de seus longas trazerem elementos do teatro de revista, do carnaval e do circo para suas narrativas. Logo, o público se identificava imediatamente, principalmente pelo caráter bem humorado de suas histórias. E a partir daí (leia-se: por volta de 1947) que as chanchadas começam a ditar o ritmo do mercado. E nos apresentam a eterna dupla Oscarito e Grande Otelo. 

Mas não pensem os incultos que a dupla levava a empresa nas costas. Não, meus caros leitores! Havia espaço também para outros nomes de peso, como Roberto Faissal, José Lewgoy (o grande vilão do estúdio, que eu conheci pessoalmente na época em que trabalhava no cinema Art Palácio Copacabana, que hoje infelizmente não existe mais), Anselmo Duarte (futuro diretor de O pagador de promessas, vencedor da Palma de Ouro em Cannes), Cyll Farney, Fada Santoro, Eva Todor, Fregolente, Zezé Macedo (que a geração posterior à Atlântida conhece mais como a Dona Bela da Escolinha do Professor Raimundo), Mara Rúbia, Jorge Dória, Wilson Grey, Ankito, Adelaide Chiozzo e tantos outros. 

Sempre que me perguntam quais são meus longas preferidos da produtora eu respondo com o mesmo Top 5. E como não pretendo mexer em time que está ganhando há tantos anos, ei-los para a vossa apreciação (sem moderação, é claro!): 

Nem Sansão Nem Dalila, de Carlos Manga (1954)

O Homem do Sputnik, de Carlos Manga (1959)

Carnaval no Fogo, de Watson Macedo (1949)

Carnaval Atlântida, de José Carlos Burle (1950)

Este Mundo é um Pandeiro, de Watson Macedo (1947)

Entre 1941 e 1962, A Atlântida produziu ao todo 66 filmes. Infelizmente, para os pesquisadores e fãs da boa sétima arte, algumas dessas produções foram perdidas para sempre num trágico incêndio ocorrido em suas instalações dez anos antes (informação essa que me faz pensar rapidamente no recente incêndio ocorrido na Cinemateca Brasileira, em SP, e do quanto nossa cultura é muitas vezes refém do descaso e/ou da fatalidade pura e simples. E isso é por demais terrível!) 

Ao final deste humilde artigo-homenagem, fica uma certeza: do quão rica pode ser nossa produção audiovisual, que poderemos revisitar sempre que quisermos em algum site de vídeos da internet ou na programação do Canal Brasil.

P.S: ao mencionar no top 5 o longa Este mundo é um pandeiro, de Watson Macedo, lembrei-me do livro homônimo Este mundo é um pandeiro: a chanchada de Getúlio a JK, do escritor José Augusto, que eu li e reli na época da faculdade. Deixo ele aqui como referência para quem quiser saber mais - sobre a Atlântida e também o período - que precisa ser redescoberto pelas novas gerações o quanto antes.  


domingo, 19 de setembro de 2021

Vida, arte e dor


Eu acredito mais na arte como consequência do que como entretenimento. E quando a consequência em questão é fruto de uma dor ou revés sofrido, a mim fica a impressão de que o artista se desdobra ainda mais, se supera como nunca antes. Nas artes plásticas isso é praticamente um clichê ou chavão, pois é da natureza de quem cria colocar um pouco de si mesmo, de seus temores e angústias, suas observações meticulosas acerca do mundo, em suas obras. 

E, de quando em quando, o resultado disso é uma obra-prima ou, no mínimo, subestimada por aqueles que não conseguem distinguir um palmo diante do nariz. Vejo na obra da pintora mexicana Frida Kahlo um pouco de ambos: a genialidade e a incompreensão por parte de quem tenta analisar ou definir o seu trabalho. Ela é complexa e muitas vezes partiu de sua própria existência ou temores para construir seu raciocínio. 

Filha de um imigrante alemão e de uma mulher de origem meio indígena meio espanhola, Frida é daquelas pessoas que conhecem como poucos o significado da palavra sofrimento. Foi vítima de uma série de doenças ao longo da vida. Que o diga a poliomielite, que a acometeu com apenas seis anos de idade, deixando-a com o membro inferior direito atrofiado. Aos 18 anos sofreu um grave acidente de trânsito, fraturando três vértebras, a pelve e os ossos da perna direita, sendo submetida a mais de 30 cirurgias. 

Em 1944, após uma cirurgia para corrigir a coluna, ela passou por um difícil pós-operatório e precisou ficar acamada por tempo indeterminado. E foi exatamente nesse período de dor em que ela criou uma de suas telas mais memoráveis: A coluna partida. 

A tela - um óleo sobre masonita de 39,8 x 30,7 cm - é um autorretrato que nos mostra o quanto a dor, o sofrimento, a vida e a arte andam de mãos dadas quando estão a serviço do talento mais puro. Vemos em primeiro plano uma mulher usando uma espécie de espartilho que comprime sua coluna. Porém, é possível enxergar na região onde a coluna vertebral se encontra uma coluna jônica grega, bastante fragilizada. Além disso, seu rosto está banhado de lágrimas e inúmeros pregos perfuram todo o seu corpo (numa representação nítida das dores constantes que a artista sentiu durante esse período). 

Já ao segundo plano é possível vislumbrar uma paisagem árida, rachada como a coluna da pintora, e o sol ao fundo (remetendo à solidão sentida por ela nessa época). Tanto que, anos depois, após relembrar toda a experiência, as inúmeras cirurgias que sofreu, Frida chegara a dizer: "E a sensação nunca mais me deixou, de que meu corpo carrega em si todas as chagas do mundo". Nem mesmo seu casamento cheio de controvérsias com o muralista Diego Rivera provocou uma reflexão tão grande em sua vida!  

Ao fim e após ver e rever a tela em seus múltiplos detalhes, a sensação que me fica é a de estar diante de um grande ato de resiliência. Frida faz de A coluna partida, mais do que mera pintura, um serviço de utilidade pública, para todos aqueles que já tiveram que conviver com algum tipo de trauma e invalidez. A própria comunidade médica reconhece isso. E tudo o que a artista produziu após este trabalho guardou, no mínimo, relações íntimas com ele. 

Alguns especialistas e estudiosos da história da arte costumam fazer um paralelo entre esta pintura e O martírio de São Sebastião e há razões nítidas para isso, embora na tela de Gregório Lopes a figura fragilizada esteja rodeada de homens armados, aptos a executá-lo a qualquer momento. 

E cabe aqui um detalhe pessoal deste autor intrometido que vos escreve: embora o autorretrato de Frida esteja com os seios nus à mostra eu nunca consegui relacionar qualquer tipo de sexualidade ou erotismo à tela. Simplesmente por que a carga de sofrimento e renúncia da mulher não o permite. Logo, A coluna partida não tem a ver com louvor e sim com superação.

Para quem quiser apreciar a obra-prima ao vivo e a cores ela se encontra no Museo Dolores Olmedo Xochimilco, na Cidade do México. E eu confesso: daria tudo para ver a tela com os meus próprios olhos agora, neste exato momento. 

P.S: custa indicar aos interessados em saber mais sobre Frida Kahlo o excelente longa-metragem Frida, de Julie Taymor, com a atriz Salma Hayek interpretando a revolucionária pintora? Honestamente, eu acho que não. Vai lá ver, vai! Não custa nada.


quarta-feira, 15 de setembro de 2021

A vila sésamo de Satanás


Eu certamente já disse isso em outras críticas cinematográficas que escrevi ao longo dos anos, mas não custa repetir pois o discurso continua valendo: a sétima arte evoca como poucos a loucura do ser humano. E quando se trata de hollywood, então, uma meca das tentativas mais alucinógenas e nonsenses de se tentar entender o que é a humanidade, multiplique essa frase por um milhão e ainda assim não conseguiremos sequer arranhar a sua estrutura por vezes deturpada. 

Contudo, há casos dentro do cinema norte-americano e mundial que extrapolam ainda mais o senso de realidade ou normalidade. As filmagens do hoje clássico Apocalipse now, de Francis Ford Coppola, são um caso típico. O ator Malcolm McDowell afundando de vez sua carreira ao participar de Calígula, de Bob Guccione, outro. E como esquecer de longas como Je vous sale Marie, de Godard e O último tango em Paris, de Bertolucci? Para encerrar esse solilóquio mordaz, relembro de Cannibal Holocaust, o mockumentary de Ruggiero Deodato, obra-prima do trash e do vulgar.

Fica então uma pergunta: por que me lembrar de tudo isso agora? Porque li esta semana um artigo do jornal argentino El País sobre uma das películas mais loucas e que elevam essa categoria do nonsense e do surreal a um patamar nunca antes visto. Refiro-me ao longa A ilha do Dr, Moreau, projeto iniciado pelo diretor Richard Stanley e finalizado pelo mestre John Frankenheimer, que completa duas décadas e meia de existência em 2021. 

O filme, que é baseado na obra homônima do escritor H.G. Wells, me fez pensar a todo momento no que o autor acharia se tivesse visto esta transposição para as telas. Sim, o resultado é insano a tal ponto...

O náufrago Douglas (David Thewlis) é resgatado e levado para uma ilha que aparenta, à primeira vista, ser pacífica. O que ele não imagina é que o local é administrado pelo excêntrico Dr. Moreau (Marlon Brando, num de seus últimos trabalhos), que realiza experiências fundindo dna humano e animal e criando aberrações que passeiam livremente pela ilha. Quando se dá conta do lugar onde foi parar já é tarde demais e seu último desejo é conseguir escapar de lá com vida. Parece simples olhado do ponto de vista da sinopse, mas não se enganem! O set de filmagem acabou por provar que essa experiência tem muito mais de comédia dos erros do que de projeto a ser admirado. 

O dia-a-dia no set rivaliza em gênero, número e grau com a filmagem da guerra do vietnã feita por Copolla. Absolutamente tudo o que poderia dar errado, deu errado. Brando está lá também numa versão piorada do Coronel Kurtz, ainda mais louco e excêntrico do que nunca, numa disputa de egos mordaz com o ator Val Kilmer, que interpreta seu algoz no longa. Detalhe exótico à parte: ele cismou que o protagonista do livro tinha um tipo de alergia ao sol e quis interpretar seu Dr. Moreau coberto por uma pasta branca, para incompreensão total dos produtores. 

O diretor original do projeto, Stanley, que possuía ideias nada ortodoxas para o projeto - incluindo até mesmo cenas de sexo oral e mutilações - surtou e desapareceu no meio das filmagens. E há quem diga que ele recorreu à bruxaria para conseguir o emprego à frente das câmeras. Atores mantiveram relações sexuais entre si, consumo exagerado de drogas e álcool, figurinos tiveram que ser recriados para que um anão servisse de assistente do protagonista (personagem esse que não existia no roteiro original). Mais: o ator que interpreta o anão saiu no braço no set com um outro artista do elenco que viu seu personagem minguar até sua quase exclusão do filme. 

E isso para ficar apenas no básico, pois há situações ainda mais tenebrosas. 

No final das contas, eu acabo por concordar com a declaração do crítico de cinema Brandon Judell, que chamou o filme de "A vila sésamo de Satanás". E, em alguns momentos, ele realmente parece esse grande samba do crioulo doido. Porém, há quem veja no longa uma produção subestimada ou mal interpretada. Questão de gosto. Como legado para a história do cinema, ficou o desastre financeiro, o framboesa de ouro para Brando e a certeza de que hollywood enlouquece quando quer - e de graça. Um pequeno aparte: eu tenho dois colegas fãs dessa pérola audiovisual, que quando foram comigo ao cinema Paratodos, no Méier, para assisti-lo, o chamaram ao fim da sessão de "um grande estudo de caso sobre a paranoia humana". Enfim... Vai entender a humanidade. 

E é dessas insanas opiniões pessoais que nascem os chamados filmes cults! 

P.S: para quem quiser saber mais sobre a grande loucura que foi realizar essa produção procurem pelo ótimo documentário Lost soul: A viagem maldita de Richard Stanley à ilha do Dr. Moreau, de 2014 e dirigido por David Gregory, disponível no Amazon Prime. Eu confesso: saí da sessão ainda mais perplexo do que quando fui ver o longa nos cinemas 25 anos atrás.


sábado, 11 de setembro de 2021

O dia D da grande nação


Eu lembro do exato momento. Não, é sério! Eu realmente me lembro, Ia para o trabalho (trabalhava numa rede de cinemas, no cinema São Luiz, no Largo do Machado) e o ônibus que peguei para abruptamente em frente a uma padaria estilosa. Todos os passageiros - de maneira inacreditável, pois nunca havia presenciado tal ato em toda a minha vida - saltam correndo do veículo e se dirigem a um aparelho televisor afixado na parede. 

Penso então comigo naquele exato momento: "é um assalto e eu cochilei. Só sobrou eu para ser roubado". Mas não. Ninguém me interpela. Salto também do ônibus, dirijo-me à padaria e consequentemente ao televisor. Na tela, um prédio gigantesco tem um de seus andares em chamas. O narrador da matéria diz que ele acabara de ser atingido por um avião. 

O dia: 11 de setembro de 2001. O local: o World Trade Center. E a consequência disso é a que os EUA e o mundo nunca mais foram os mesmos. 

Chega 2021 e a maior tragédia deste século completa 20 anos. E o pior: o país que sofreu esta tragédia não só não melhorou realmente como nação, como se tornou uma terra de fanáticos, psicóticos, pessoas que têm medo - em muitos casos - da própria sombra, do próprio vizinho, da própria cidade onde moram. 

O dia D que abateu aquela que, volta e meia, se autointitula a "maior nação do planeta" produziu cicatrizes muito mais profundas do que as quase três mil vidas perdidas ou o ato simplesmente. Dos destroços, vítimas fatais, fumaça e poeira tóxica à indignação, o ódio e o sentimento de revolta, de querer vingança. George W. Bush, presidente então, promete à seus eleitores: "eles pagarão por isso". 

Começa então o inferno, a chegada das tropas americanas no Oriente Médio e, mais do que isso, a vigilância, a eterna mania de vigiar os demais. Algo que o tio Sam, desde que o mundo é mundo, sempre adorou. 

O tempo passa, os dias, as semanas, os meses, os anos... Duas décadas. E a tragédia migra da esfera governamental para o cotidiano, para o dia-a-dia. A falta de respeito cresce nos metrôs e ônibus e aviões. Qualquer um que meramente se pareça com um iraniano ou iraquiano ou palestino ou paquistanês ou qualquer outra nacionalidade ou etnia oriunda daquela região do mundo vira um inimigo. Na hora. 

Em O plano perfeito, filme do diretor Spike Lee, a polícia ao ver como um dos reféns do assalto a banco um homem de feições palestinas, deixa de considerá-lo vítima e passa a desconfiar de sua participação no crime. O arquiteto do roubo é um homem branco, bem vestido, de voz britânica (interpretado por Clive Owen). Contudo, para os policiais fica o ranço, o preconceito. E eles, os americanos, sabem ser preconceituosos e racistas como poucos ao redor do mundo. 

Multiplique aquela cena, aquele momento do filme, por um milhão e talvez você comece a entender o que virou a América (é assim que os norte-americanos gostam de se apresentar para o resto do mundo: como se fossem, sozinhos, um continente inteiro) nessas últimas duas décadas. 

A frase de Osama Bin Laden estava coberta de razão: "eles nunca mais irão se esquecer desse dia".  

Uma vizinha minha, dos tempos de Méier, disse-me na ocasião: "só faltou eles explodirem a Estátua da Liberdade. Se eles tivessem feito isso também, imagina o Deus nos acuda que seria!". Miriam, minha cara, já foi, ainda é, até hoje, um Deus nos acuda. Eles elegeram Trump. Eles chegaram a abandonar o acordo do clima em Paris. Eles começaram a construir um muro que os separasse do México (mesmo depois de tudo o que roubaram no passado desse mesmo país). 

Vieram Fahrenheit 11 de setembro, de Michael Moore (que chamou o presidente do país de fictício) e As torres gêmeas, de Oliver Stone e o oscar (imerecido) de melhor filme para Guerra ao terror, de Kathryn Bigelow e a Obamania com toda a frustração da comunidade negra que aguardou, esperançosamente, por mudanças sociais que não aconteceram de fato e o extremismo, a incitação à violência, o fanatismo e finalmente a invasão ao congresso por aqueles que não aceitaram a derrota de Trump nas eleições. 

E o "vamos ser grandes novamente" só deu lugar à histeria e o repúdio ao próximo (no caso, aquele que pensa diferente de uma suposta maioria). Então vocês pensam, desolados: "Acabou". Não. O talibã voltou e com força. A tv e a internet mostraram o ocorrido no Aeroporto de Cabul. As imagens falam por si. 

Sim, haverão cenas dos próximos capítulos. De novo. E serão amargas. De novo. De certeza mesmo, apenas uma: guerra nunca ensinou nada de bom ao mundo. O problema é fazer os homens entenderem isso!    

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

O bon vivant da Nouvelle Vague


Eu não sei ao certo - na verdade, nunca soube - o que faz de um ator um ícone ou um galã ou mesmo ambos, e mesmo assim confesso: alguns tem isso de sobra, pra dar e vender. E de tempos em tempos quando um dos grandes parte, quando chega a sua hora, nós, cinéfilos de carteirinha, ficamos tristes, arrasados, pois nunca mais teremos a chance de ver nada novo com ele. É... Infelizmente hoje isso aconteceu de novo. 

O cinema francês e mundial perde, aos 88 anos, o ator (ator, não! lenda) Jean-Paul Belmondo. 

Dentre seus 91 créditos de filmagem como dispostos no site do IMDb, a primeira impressão que fica sempre será a de "a cara da nouvelle vague". Por mais que apreciássemos - e ainda apreciemos - a beleza das grandes divas e o talento notório de Truffaut, Godard, Malle e companhia, Belmondo sempre foi uma força-motriz que pairou sobre aquele período. Que o diga Acossado, com certeza o longa mais famoso no qual trabalhou.

Aliás, a relação entre Belmondo e Godard sempre foi de uma grandeza absurda. E Godard nunca escondeu que o galã era o seu ator-fetiche. É fácil entender o porquê. No ano passado assisti no you tube a última entrevista dada pelo ator (ele já tinha mais de 80 anos) para um jornalista na França e me surpreendi com sua erudição, elegância e, principalmente, lucidez. Um mestre, sem sombra de dúvidas. 

Ao longo da versátil carreira, é possível encontrá-lo na mais leve sátira, como em Casino Royale - uma gozação divertidíssima em cima da franquia 007, que eu recomendo aos espectadores do bom cinema de olhos fechados -, aqui mesmo, na cidade maravilhosa, em O homem do rio, que durante um certo período virou uma espécie de filme cult no nosso país, como também em obras-primas como Paris está em chamas?, que cá entre nós, merece ser redescoberta por essa nova geração de cinéfilos que só quer saber de super-poderes e criaturas sobrenaturais. 

Em suma: não havia desafio que superasse seu talento e charme. 

Belmondo era debochado, à frente do seu tempo, galanteador, cafajeste, meticuloso, sabia ser mau quando era para ser mau e ótimo quando era para ser bom. E nunca entregou na tela menos do que o melhor. E concordo com os críticos de cinema que defendem que ele foi tão grandioso quanto Marlon Brando e Cary Grant. Era - e com folga. 

Fiquei sabendo de sua existência como artista através de meu pai, que era uma grande fã. Certa ocasião, ao vê-lo sentado em frente a tv de madrugada perguntei o que ele estava vendo. Ele se virou para mim e disse: "você precisa conhecer esse ator o quanto antes. Esse é gênio". O filme em questão era O demônio das onze horas (ou em francês: Pierrot Le fou), mas de bobo ou tolo seu personagem não tinha nada. 

Virei fã na mesma hora e ainda naquela semana aluguei mais três filmes com ele na videolocadora perto de casa. Eram tempos de VHS, então façam as contas para ver quanto tempo isso tem...

O que nos sobra após sua morte sentida? Primeiro: ele foi o grande bon vivant da nouvelle vague e do cinema mundial e acho praticamente impossível que alguém um dia o supere. E segundo: eis um bom - não, um excelente motivo - para conhecermos ou reassistirmos a sua obra cinematográfica, cheia de pérolas memoráveis. Aproveita essa onda dos streamings em massa. Tenho certeza que, em algum lugar, estão fazendo uma mostra em homenagem a ele. 

Fica com Deus, Jean! O cinema não vai mais ser a mesma coisa sem você. Pode ter certeza. 


sábado, 4 de setembro de 2021

Sr. Entrevista


Há tempos eu quero escrever sobre o documentarista e diretor Eduardo Coutinho e sempre fico adiando. Talvez por medo. Sim, medo. De sua extrema inteligência e sua perspicácia aguçada. Nunca escondi das pessoas com quem converso sobre sétima arte que sou uma admirador notório de Coutinho. Mais: o considero uma das melhores coisas da nossa cinematografia e com folga. E a produção audiovisual brazuca anda carente de um talento como ele, que infelizmente nos deixou sete anos atrás. 

E sabe qual foi o melhor legado produzido por ele ao longo da carreira? A sua inesgotável capacidade de saber conversar com seres humanos os mais diversos, do milionário ao pé rapado. Coutinho não precisava se transformar numa réplica exata de seus entrevistados para poder entendê-los. Bastava ser ele mesmo. E era justamente esse "ele mesmo" que fazia com que seus interlocutores se abrissem de tal forma a entregar confissões inacreditáveis. Em outras palavras: era fácil dividir uma sala com ele para bater um papo. 

Sim, isso mesmo que vocês leram. O cinema de Eduardo Coutinho é, em seu íntimo, um grande e agradável bate-papo!

Que o diga sua obra seminal, Cabra marcado para morrer, considerado por muitos críticos e profissionais do meio cinematográfico como o maior documentário brasileiro de todos os tempos. Teve suas filmagens interrompidas em pleno período militar por conta de seu caráter político e reacionário e só pode retomar o projeto décadas depois, encontrando seus personagens mais velhos (e ainda mais lúcidos acerca de sua realidade social). Resultado: um fenômeno cultural que ganha eco na história de nosso cinema ao lado de longas como Terra em transe, O bandido da luz vermelha, Limite e tantos outros (hoje) clássicos.

Contudo, não se enganem: Eduardo não foi cineasta de um único longa célebre. Longe disso. Continuou sua caminhada em busca de vozes, relatos, experiências amargas e/ou esperançosas. Pode até parecer exagero o que vou dizer aqui, mas às vezes eu tenho a impressão de que o diretor conversou com praticamente todo mundo, tamanha a diversidade de depoimentos que coletou ao longo da vida. 

Foi dos catadores de lixo de Itaóca, em São Gonçalo no Rio de Janeiro (em Boca de lixo) aos residentes de uma favela ávidos por dividirem suas experiências religiosas (em Santo forte), passando por trabalhadores do movimento sindicalista (Peões) e dançarinos do Grupo Galpão em ensaio para um espetáculo (Moscou) para construir um grande compêndio sobre a vida pública e privada do país. E quando nos damos conta do conteúdo magistral que está registrado ali é impossível não atestar o quanto somos uma nação plural, confusa, perdida, buscando caminhos muitas vezes a esmo. E isso é o que o cinema de Coutinho tem de melhor: essa sensação de niilismo, de "e se". 

Dois filmes seus mantém comigo uma adoração quase doentia e por isso sempre os revejo e falo deles separadamente: o extraordinário Edifício Master, no qual acompanha a vida de dezenas de moradores de um prédio em Copacabana, mostrando o lado B da zona sul carioca e Jogo de cena, no qual através da publicação de um simples anúncio de jornal reencena histórias brutais, amargas e nostálgicas de um grupo de mulheres do cotidiano, rompendo as fronteiras entre ficção e realidade de forma ímpar. 

Entretanto, é preciso um aparte: ele, Coutinho, nunca precisou de um motivo ou um roteiro pré-estabelecido para contar uma história. Não, meu caros. Muitas vezes apenas sair de casa com a equipe de filmagem, como um bom flanêur, à perder de vista, já rendia uma grande história. 

O que ele procurava eram narrativas inéditas, histórias que ainda não havia ouvido. E esse sentimento de descoberta constante, de frescor, era tão libertador em sua obra que em alguns momentos assustava seus próprios espectadores. Eu mesmo, em alguns momentos, me peguei pensando: "como ele vai fazer um filme sobre absolutamente nada?". E ele fez. E fez porque simplesmente quando o assunto em questão é arte não existe esta história de nada. Bastava sentarmos e acompanhar seus passos, pois logo ele nos mostraria onde a história a ser contada estaria. 

Grande Eduardo Coutinho! Não foi à toa que até a Academia de artes e ciências cinematográficas de Hollywood te reconheceu. E enquanto escrevo esse arremedo de artigo me pego triste por um momento, pois me lembrei agora que nunca mais poderei ver um filme inédito seu. 

E o cinema nacional merece tudo, menos isso...