domingo, 27 de janeiro de 2019

Aconteceu. De novo.


O Brasil é um país especialista em tragédias. E o pior legado delas é que aprendemos a nos acostumar com cada detalhe sórdido (e quando não nos acostumamos, vemos nossa raiva virar incômodo e o incômodo, impotência. Impotência diante de um Estado que nada faz de fato na prática para coibir, minorar ou combater esse mal-estar profundo). 

Pois bem: assim como aconteceu na cidade de Mariana, mais uma vez o estado de Minas Gerais foi afetado pelo rompimento de uma barragem (desta vez pertencente à Vale do Rio Doce), levando o caos e à morte de cidadãos que não aguentam mais tanto sofrimento. Desta vez o alvo foi a cidade de Brumadinho e a notícia apareceu na frente, nos tablóides, de forma quase abrupta. 

Afinal de contas, são tantas as tragédias recorrentes no país nos últimos anos (que o diga a violência que tomou conta do Ceará nos últimos dias!) que não somos mais capazes de nos dar conta de quando aconteceu uma nova. 

Tragédias viraram clichês no Brasil. 

E toda vez que uma ocorre (lembram do morro do Bumba, aqui no RJ? Do Palace, na Barra da Tijuca? Da Boate Kiss, em Santa Luzia? Do acidente aéreo que matou o time de futebol da Chapecoense? Listar é uma tarefa inglória e levaria toda uma vida...) fica na boca um gosto amargo, um desejo de gritar: "o culpado é...". Então travo meus pensamentos e a resposta se perde no ar. Quem é o culpado? Quem será julgado, condenado, preso? Quem será responsabilizado? 

Todas perguntas sem resposta. E sem resposta a longo prazo. 

Vivemos num país onde empresários inescrupulosos e políticos tendenciosos ditam as regras, o modus operandi desta nação falha, sem identidade, que não conhece a própria língua, que dirá o hino nacional... Somos reféns da inversão de valores, onde cidadãos ditos de bem usam igrejas e ONGs para fazer a limpa no dinheiro suado de pobres fiéis (que pagam de otários com o maior orgulho!) e nos cofres públicos, através de tramóias muito bem urdidas. 

Estamos no auge do triunfo da mentira e não nos damos conta. Enquanto isso, mais e mais inocentes perdem a vida em "tragédias ambientais" que nada mais são do que disfarces para acobertar a canalhice de uns poucos que se julgam acima do bem e do mal.  

Perguntar até quando não me satisfaz mais (e acredito que muitos que lerão este artigo também não). Procurar soluções, com o passar do tempo, tornou-se tarefa cansativa e inconclusiva, pois somos um país de governos que não produzem legado. E por isso estamos ao léu, abandonados, o tempo todo olhando para o céu, à procura de uma resposta de Deus (provavelmente, o único que AINDA nos ouve). 

A tragédia de Brumadinho traz em seu bojo, mais do que uma catástrofe como tantas outras deste país, um elemento ainda mais negro: a sensação de inconformismo eterno. De que as eleições mais uma vez não trouxeram ares de nada novo. E pior: já não dá mais para falar apenas "que pena!". 

Não me considero um homem que coloca tudo na conta da esperança e do excesso de expectativa. Na verdade, sou descrente de muitas das convicções - prefiro chamá-las de reles ilusões e exageros - que andam em voga no país nos últimos anos. 

Tenho visto muita coisa errada, muita gente saindo do país, muita gente falando mal de tudo, acusando todo mundo de alguma coisa (às vezes, só para sair bem na fita), muita gente posando de inocente e, no entanto, causando tanto mal-estar. 

Em poucas palavras: tenho visto muito fingimento. E Brumadinho é mais uma trágica consequência dessa eterna mania de cruzarmos os braços e empurrar com a barriga, quando deveríamos chamar a responsabilidade para si. E não digo isso somente às autoridades. Falo também ao povo omisso e umbiguista, que tanto posa de patriota, mas só lembra do Brasil em dia de jogo da seleção de futebol. 

É preciso mudar (já disse isso em outros textos meus). Caso contrário, viraremos novas vítimas desse teatro do bem e do mal em que vivemos. 

Meus sinceros pêsames aos familiares das vítimas e que o ocorrido (garanto que isso também está sendo pedido por outras pessoas em todo o território nacional) sirva para que nossa sociedade tome vergonha na cara o quanto antes. Pois já passou da hora...

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Heróis não são tão simples assim...


Tenho um certo incômodo com o cinema de M. Night Shyamalan e isso não é necessariamente um mau sinal. Desde que vi, em 1999, seu primeiro filme a ser lançado por aqui, o sobrenatural O sexto sentido, fiquei com um certo gosto amargo na boca, perdido entre a descoberta do final óbvio e a sensação de que sobrenaturalidade para o diretor não era necessariamente sinônimo de sustos e medos aparentes. 

Com seu segundo longa no ano seguinte, Corpo fechado, fiquei mais contente. Principalmente porque ele, Shyamalan, se propôs a rediscutir o universo dos super-heróis. E até hoje o considero o seu filme que mais me tocou. Pois bem: três anos atrás o diretor se propôs a continuar esta história com Fragmentado e trouxe à tona um homem doente, perdido, complexo, capaz de virar uma besta humana e destruir tudo ao redor. E ele acabou por se tornar o elo de ligação entre os dois protagonistas do filme de 2000. E não satisfeito ainda o desdobrou mais uma vez numa trilogia um tanto diferenciada, fora do padrão habitual no gênero. Agora, com Vidro, ele chega à apoteose do seu raciocínio e defesa de opinião. E que se cuidem os leitores de comic books! 

Em Vidro, vemos seus personagens de quase 20 anos atrás, David Dunn (Bruce Willis) e Elijah Price (Samuel L. Jackson, ainda mais alucinado do que no original)  presos num instituto psiquiátrico ao lado do homem das múltiplas personalidades (vivido pelo ótimo James McAvoy), responsável pelo sequestro e morte de várias jovens. Contudo, desdobremos os fatos:

Dunn vivia dias de vingador, perambulando pelas ruas à procura da besta (uma das facetas desse homem dividido entre vários alter-egos), sempre ajudado pelo seu filho e ainda sentindo a falta da esposa, agora morta. É durante um combate com a criatura no meio da rua que ambos são pegos e levados em reclusão. 

Já Elijah Price, que havia sido levado para o instituto no filme de 2000 vive à base de remédios, e parece completamente aéreo ao que vem acontecendo no mundo nos últimos anos. Eu disse parece...

No instituto precisam enfrentar a cética Dr, Elie Staple (a sempre ótima Srah Paulson) que representa, nada mais nada menos, do que a versão psicanalítica do estado, sempre castrando a sociedade e combatendo a possibilidade de que dissidências e heróis surjam, mantendo a ordem sob seu controle. Ela é a que tenta provar a qualquer custo que os "superpoderes" desses três homens não passam de delírios de grandeza. Seu ceticismo é a força-motriz que move uma nação que adora controlar o pensamento das pessoas e o tipo de informação que elas devem ler. 

Elijah, que aqui neste terceiro episódio da trilogia assume uma postura mais distante, é o criador, o Stan Lee ou Steve Ditko do mundo real, provocando acidentes ao redor do mundo na convicção de que seus heróis surjam em meio à tragédia. Mais: ele se orgulha das maldades praticadas e trata as vítimas dessas tragédias como danos colaterais ao seu desejo insano de dar vida ao inimaginável, ao extraordinário.   

Como pano de fundo (ou personagens, digamos, coadjuvantes) vemos não somente o filho de Dunn, como também a mãe de Elijah Price e também a jovem Casey Cooke, única sobrevivente do último sequestro promovido pelo atormentado Kevin (e também Patrícia, Jade, Barry, Heinrich e outras várias personalidades as quais ele assume e muda com uma enorme facilidade) que exercem funções pontuais na trama. 

Contudo, o mais importante em Vidro é o seu discurso anti-Marvel ou DC. O que Shyamalan pretende com seu longa é mostrar que heróis não tem uma vida não fácil assim. São, na verdade, pessoas de personalidade complexa, que lutam contra seus instintos enquanto tentam sobreviver a uma sociedade aterradora como essa nossa. Enquanto vemos em filmes como Thor, Pantera Negra, Aquaman, Batman e tantos outros, a saga visceral de homens e mulheres em busca de manter a paz no universo, o que presenciamos aqui são três homens que certamente prefeririam ser deixados em paz com suas vidas específicas a ser cobrados ou perseguidos diariamente por isso. 

Shyamalan desconstrói o fenômeno mais pop dos últimos anos apresentando homens de mentes perturbadas, confusas, lutando consigo mesmos para se autodescobrirem, enquanto o século XXI mostra-se esfacelado e perdido em meio a falsos referenciais e ídolos. Seu roteiro aponta um dedo acusador à sociedade em cima do muro, que prefere viver de pose a assumir uma postura ou compromisso. 

Se nas revistas em quadrinhos Batman é chamado de Cavaleiro das trevas, à trilogia de Shyamalan e mais especificamente esta terceira parte bem caberia o rótulo de teatro do horrores pós-moderno. A diferença é que no teatro muitas vezes o horror é visível, aqui inventamos heróis como desculpas para nos proteger ao invés de assumirmos nossa própria parcela de culpa. 

E os heróis, coitados, não são tão fáceis assim de serem entendidos, traduzidos ou classificados. Pelo menos não do jeito que as editoras de HQs tanto vendem. Que me perdoem os nerds leitores de quadrinhos e que esperavam ansiosamente o próximo filme dos Vingadores, mas aqui a ilusão de grandeza deu lugar a uma verdade cinza, dúbia e confusa. E isso é o que o fim dessa "trilogia" tem de melhor!

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Liberdade é isso? Sério mesmo?


A internet é rápida e você precisa ser mais rápido do que ela, se quiser encontrar pequenas boas ideias e desabafos. E precisa estar atento, pois novidade surge a qualquer momento, quando você, espectador, menos espera, é surpreendido por algo. 

Foi o que aconteceu nesta última terça-feira quando assisti com lágrimas nos olhos o clipe musical Land of the free, da banda The Killers, dirigido pelo mestre Spike Lee (de clássicos da sétima arte como Faça a coisa certa e Malcolm X). E ao final do curta documental - pois é disso que se trata a participação do diretor e ativista negro - ficou uma amarga certeza em minha mente estamos ruindo como civilização dia-a-dia. 

O assunto que mais perturbou o mundo nos últimos anos foi a decisão do presidente dos EUA, Donald Trump, de construir um muro separando a América do México. Afinal de contas, segundo o próprio presidente, eles sempre foram o problema. Perguntem aos americanos de onde veio o Texas e o Novo México e certamente a maioria fugirá do debate. "Culpado são os outros", dirão. E esta é uma máxima que vem ganhando força ao redor do mundo nas últimas décadas. Sartre já dizia: "o inferno são os outros". 

Pois bem: aqui, no clipe de pouco mais de quatro minutos, o muro vira protagonista de uma realidade insana. E mais do que a própria letra da música e as imagens chocantes e devastadoras, vira um ponto de interrogação cada dia mais difícil de responder. 

Em certo momento da música, o vocalista da banda, Brandon Flowers, diz "temos problemas com armas". E tudo leva a crer que esses problemas também chegarão aqui, ao Brasil, por conta do novo decreto que permite a posse de armas para a sociedade civil. Como se já não tivéssemos problemas em demasia nessa sociedade passional e cretina em que vivemos! Contudo, na América, terra do clipe, as armas de fogo são uma realidade antiga. Que o diga o documentarista Michael Moore que destrinchou o tema em Tiros em Columbine, chegando a desmascarar o machismo e a arrogância de um grande ícone de hollywood, o ator Charlton Heston, de filmes como Os dez mandamentos e Ben-hur. E mais do que antiga, covarde e imparcial. 

Mas como disse num dos parágrafos anteriores: a culpa é dos mexicanos, dos imigrantes, dos outros...

Passeando por pessoas desabrigadas, sem pátria, sem casa, por crianças que brincam com pichorras, por famílias que fazem vigílias religiosas à procura de uma resposta para seus problemas, rostos censurados por tarjas pretas e conflitos envolvendo tiros e bombas de gás lacrimogêneo, o que a pesquisa feita por Spike Lee para este trabalho quer nos dizer é: quando foi que perdemos a humanidade, esquecemos da história passada e passamos a acreditar que o nosso próprio umbigo - e nada mais - é o mais importante?

Não conheço tanto assim da carreira musical dos The Killers, mas posso dizer agora que vejo a banda com outros olhos, com respeito. Em meio a tantos artistas que não passam de pose e vaidade, falando única e exclusivamente de suas vidas pessoais, suas derrotas, ressentimentos e conquistas, é gratificante ver que ainda existe alguém no mercado fonográfico disposto a apontas as falhas e feridas da sociedade mundial. 

Desde que me entendo por gente ouço a velha história dos EUA como grande nação, como "terra das oportunidades". E sempre vi essa mesma história com sarcasmo e ironia. Não há nada na terra do Tio Sam que, com uma boa análise e conhecimento dos fatos, não possa ser desmentido com enorme facilidade. O grande problema do resto do mundo é que eles preferem permanecer subjugados a esta realidade. "É sempre mais fácil", me disse certa vez uma professora de filosofia, "obedecer ordens do que ditar as regras do jogo". 

Ou seja: vivemos em meio a uma sociedade global que não deseja responsabilidades, mas adora acusar os demais de covardia, de anti-patriotismo, de falta de capacidade para reagir ao sistema. E dizem isso coniventes com o sistema (mais: orgulhosos disso!). E nesse sentido Land of the free é um tapa na cara dos demagogos com quem volta e meia cruzamos na rua e gostaríamos que simplesmente desaparecessem. 

Enquanto eles não desaparecem ou tomam vergonha na cara, que aturem a verdade das palavras e imagens brutais que, infelizmente, serão a tônica desse século XXI cada vez mais desolador. 

Para quem ainda não viu o clipe e quer tirar suas próprias impressões, assista aqui: 
https://www.youtube.com/watch?time_continue=283&v=OIT0ucf_gys

sábado, 12 de janeiro de 2019

SLAM (Poesia como resistência)


Não importa sua etnia, branco, negro, índio, judeu, asiático. Não importa seu status social, pobre, rico, classe média. Seja homem ou mulher, hetero, trans. Você sobe no palco e fala. Você tem três minutos para defender a sua verdade, o seu ponto de vista. Naqueles exatos três minutos você é dono do seu próprio mundo. Você dita as regras do jogo. E naquele momento o jogo deixa de ser jogo e vira a sua forma de resistência. A sua voz contra o mundo e a realidade enfadonha do dia-a-dia. 

Para quem não conhece a poesia slam talvez o primeiro parágrafo deste texto tenha soado ou estranho ou uma tentativa deste autor de fazer um conto, uma narrativa curta. Agora: para quem sabe o que é o slam, então você sabe exatamente a que me refiro. 

Por onde quer que se ande ao redor do mundo a poesia hoje é sinônimo de Slam. E não digo isso em detrimento dos grandes poetas da história da humanidade. Quando era adolescente e leitor de Shakespeare, Drummond, João Cabral de Melo Neto, T.S. Elliot, Emily Dickinson e Sylvia Plath, alguns leitores mais velhos (e esnobes) do que eu defendiam o beletrismo da poesia. Mais: rechaçavam a ideia do verso livre. Para eles, a poesia era uma construção. E eu discordava absurdamente deles.

Para mim, a poesia era um grito. Ou, como bem defendeu Allen Ginsberg, poeta máximo da beat generation, um uivo. Gostava da poesia como enfrentamento, como defesa de um ponto de vista, de uma opinião, por mais feroz e ácida que fosse. Talvez por isso tenha lido Morte e vida severina e Romanceiro da inconfidência mais de uma vez. E também talvez por isso considere Fernando Pessoa um gênio inquestionável. 

O tempo passou (o tempo sempre passa, não é mesmo?) e abandonei os clássicos momentaneamente, à procura de um novo prisma poética, de uma poesia que tivesse a cara do cotidiano, das ruas. da verdade das ruas. Pois bem: assim é a poesia slam. 

Para muitos, o que o slam tem de mais verdadeiro é o fato de ser uma competição, um desafio entre vozes contemporâneas. Porém, considero essa uma definição um tanto simplória. As regras podem até ser claras: tempo máximo de três minutos para defender sua ideia, sem acompanhamento musical e apenas poemas próprios. Nada de chegar ao palco e ler um poeta consagrado, bajular ou plagiar um nome já conhecido. Não, senhor! O slam é a zona autônoma da palavra, sem desculpas para usar artifícios técnicos e líricos. Apenas você e o microfone. E, claro, o julgamento da plateia (pois, acreditem, ela sempre estará lá, à espreita). 

Acompanhei nesta primeira semana do ano uma de suas muitas competições que acontecem ao redor do país (a modalidade vem se tornando popular no Brasil) e fiquei perplexo. Não somente com a coragem dos competidores, mas também com a ousadia de seus textos. Naquele pequeno espaço, enquanto torcidas disputavam a gritos seus slammers (poetas) favoritos, verdades eram ditas, hipocrisias desmascaradas, pontos de vista refeitas, desabafos acentuados. E diante de alguns deles, meu rosto foi às lágrimas por me ver refletido em suas dores e lembranças. 

Na poesia slam não há restrição de tema, pois tudo é resistência. Na verdade, o verbo resistir é praticamente co-irmão desta modalidade. Aqui, tudo cabe: críticas à religião, violência urbana, refugiados, crise na saúde, falência do estado, democracia versus totalitarismo, feminismo, esquizofrenia, vaidade, música, cinema, teatro, cordel, apocalípticos e integrados... Só não vale estourar o tempo, sob pena de ser desclassificado. 

O gênero ganhou tanta projeção que na França (talvez o país mais midiático e renovador da Europa) existe uma copa do mundo do slam, sonho-mor de nossos competidores. Aliás, já mandamos slammers para lá que nos representaram com muito orgulho. 

O que mais me chamou atenção naqueles rapazes e moças (mas não se aflijam: o espaço é democrático e aberto a todas as idades) foi a necessidade de rompimento com qualquer tipo de academicismo e regra ortográfica. A poesia, naquele momento, funciona como um vômito onde ideias brutas, porém coesas e relevantes, são despejadas na cara do público. A verdade é cuspida, escarrada, necessária. Não há tempo para rodeios, mimimis e estereótipos babacas (na verdade, a sociedade de bem anda um tanto cansada deles!). 

Ao final da competição, prêmio entregue (o vencedor é um jovem de seus 19 anos, morador de Realengo, tranças rastáfari, marra evidente no rosto vincado pela dor de morar num bairro esquecido pelos governantes, mas orgulhoso de seu papel como cidadão do mundo, não só do Brasil), eu ainda fico perambulando pelos corredores, trocando ideias com as pessoas que também foram lá apenas para assistir a batalha. Sim, trata-se de um batalha, mas um batalha do bem, onde a última coisa que importa é quem ganhou ou perdeu. 

E, ciente do meu dia ganho (há bastante tempo não tenho um final de semana tão enriquecedor), chego à seguinte conclusão: precisamos de mais disso. Dessa verdade. Nosso país anda precisando MUITO disso. 

Agora. Neste exato momento. 

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

E depois dizem que as outras espécies é que são animais!


Chegamos ao fundo do poço e não nos demos conta? Chegamos, nos demos conta e não demos foi a miníma, porque só queremos saber mesmo é de nossos próprios problemas e o resto que se dane? Ultrapassamos a última barreira do racional e o que vier depois disso não é problema da humanidade e sim de quem contribuiu (leia-se: o Estado, a mídia, etc) para que o caos acontecesse e se tornasse a norma? Pois é... Fúnebre. Assim me senti - cheio de perguntas e sem nenhuma resposta válida ao alcance das minhas mãos - após assistir a primeira temporada da série de tv The Purge. E pior: com um gosto amargo na boca e um sentimento de que aquilo que meus olhos viram na tela não foi apenas ficção. 

The Purge é obra do produtor, diretor e roteirista James DeMonaco. Na verdade, a série é um desdobramento de um série de longametragens com o mesmo nome (aqui no Brasil, ganharam o título de Um dia de crime) que fizeram um certo sucesso não nos cinemas, onde foi é claro exibido, mas nas redes sociais, por seu tom político, agressivo e polêmico.  

Em poucas palavras (e para os fãs de seriados que adoram um resumo da situação): o governo americano, cansado das inúmeras tentativas inúteis de combater a violência, decide entregar ao povo a tarefa de fazer justiça com as próprias mãos. Com isso, criam o Purge Day (ou, nacionalmente falando, o dia da purificação). Todo ano, durante um dia inteiro, a sociedade pode ir ás ruas e dar cabo de qualquer pessoa que tenha lhe prejudicado, roubado, atrapalhado a sua vida, etc etc etc. E o estado não se mete no assunto. O problema? A capacidade que um decisão dessas tem de transformar homens em deuses, colocando suas atitudes animalescas e viscerais acima do bem e do mal. 

Se nas versões cinematográficas The Purge contava com a presença ilustre dos astros Ethan Hawke e Frank Grillo (que ganhou notoriedade por aqui após o sucesso dos filmes da Marvel), aqui na versão televisiva o criador DeMonaco acerta ao optar por um elenco quase todo de desconhecidos (eu, pelo menos, nunca tinha visto a maioria dos atores e atrizes antes, em nenhum projeto, salvo o ator William Baldwin, que por sinal andava sumido!). Digo isso porque acredito que caso o elenco da série estivesse repleto de estrelas acabaria por distrair minha atenção da história - que já é poderosa sem a ajuda de megaastros. 

Em linhas gerais o que se vê durante toda a temporada é a visão mais radical e direta do que se tornou os EUA pós-eleição do presidente Donald Trump. A determinação de relegar à própria sociedade o direito de fazer justiça com as próprias mãos, cria segmentos da maldade muito bem articulados durante toda a trama. Os fanáticos religiosos; os oportunistas de carteirinha, que vivem da desgraça alheia desde que o mundo é mundo; a elite corrupta e maldosa, que compra vidas humanas com a maior naturalidade e quando a situação aperta se faz de vítima; os injustiçados por pequenas coisas, que adoram pôr a culpa nos imigrantes, nos refugiados, nos indignos (segundo eles) de morar na "maior nação do planeta"; todos, sem exceção, buscam um país e uma realidade que atenda única e exclusivamente às suas próprias necessidades, em detrimento dos anseios e dos sonhos alheios. 

Resultado: um jogo de gato e rato ainda mais covarde do que o ocorrido nos tempos da Guerra Fria, e mais ardiloso do que qualquer livro ou filme de espionagem que você já tenha lido ou visto nos últimos anos. 

Eu poderia resumir The Purge aqui para vocês como um grande estudo de caso sobre a violência urbana ou como um ensaio para entendermos a tal da modernidade líquida (que um dia o antropólogo Zygmunt Bauman defendeu em seus livros), mas nenhuma das duas definições explicariam o que meus olhos viram nesses dez episódios. Na verdade, este artigo tentando explicar minhas impressões sobre a série já nasce desnecessário, pois acredito que ele merece, mais do que ser entendido ou explicado, visto. E uma dica: vejam com calma, sem o desejo tórrido dos tempos atuais de emitir um juízo de valor estereotipado a cada cena ou diálogo. 

Em suma, The Purge vence você, espectador, pelo cansaço. E é preciso dar tempo ao tempo, degustar cada episódio como quem assiste a uma autópsia num necrotério. Eu sei, eu sei... Muitos reclamarão. Dirão: "Mas isso é forte demais para mim! Não sei se aguento". A estes faço a seguinte (e mórbida): "Como, então, vocês aguentam a vida diária, repleta de preconceitos e competições, muitas delas desnecessárias?". 

Assisti a série num momento em que discutimos aqui no Brasil a questão da porte legal de armas para a sociedade civil. Um desejo de muitos revoltados com o atual estado em que o país se encontra e de muitos machões que adoram exibir-se (e como perderem a chance de exibirem suas pistolas e revólveres, não é mesmo?). E confesso: fiquei ainda mais assustado do que antes de assistir o programa. 

O futuro, a persistirmos em nossos pré-conceitos deturpados e nossas escolhas movidas pela paixão, promete-se negro. E não digo isso somente em nossas terras. Falo do mundo como um todo. Já vejo pessoas nas ruas falando até em terceira guerra mundial, caso nada mais lúcido dê resultado. Portanto, apesar do tema nebuloso e atroz que rege a trama, adorei ver The Purge. E acho um tema necessário e pertinente à sociedade atual, que parece tratar a vida nos últimos tempos como um grande espetáculo circense. Vejam, se puderem e se tiverem estômago.

Melhor conhecer um pequeno fragmento da realidade macabra que nos aguarda (caso não tomemos uma providência imediata para melhorar o mundo) do que se ver perdido em meio a um guerra da qual sequer fomos avisados quando realmente começou. 

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Somos tóxicos?


Apesar de não ser um espectador assíduo do Encontro com Fátima Bernardes devo admitir: volta e meia pesco algumas pequenas boas ideias capazes de serem desdobradas aqui em meus artigos. A última delas tem a ver com o fato da Universidade de Oxford, na Inglaterra, que todo ano elege uma palavra diferente para resumir o ano que se encerra, ter escolhido em 2018 a palavra tóxico. Mas é bom avisar com antecedência aos leitores: não se trata exclusivamente do tóxico com relação à drogas químicas e entorpecentes. Nada disso. Cabem aqui também alusões à relações e discursos tóxicos nessa nossa modernidade líquida e cheia de preconceitos e intolerâncias. 

No momento em que a apresentadora do programa global falou a palavra escolhida em 2018 meu cérebro fervilha de ideias, cheio de vontade de fazer desabafos variados. 

Nenhuma palavra resumiria melhor o que foi esse ano de 2018. Seja do ponto de vista político, social, cultural e econômico, estivemos muito à vontade com a expressão (e isso, meus caros leitores, não é um bom sinal; pelo contrário...) e pelo andar da carruagem os próximos anos prometem uma relação ainda mais indigesta com ela. 

E me veio à mente a pergunta que não quer calar: por que somos tóxicos? Porque, dentre tantas respostas possíveis, não permitimos - ou desejamos - que nossos semelhantes tenham o mesmo direito à liberdade de expressão ou opinião que nõs temos. Porque não fazemos a menor força para entender conceitos como diversidade, ética, moral, sexualidade, raça, entre zilhões de outros motivos que, no final das contas, só serviram mesmo para colocar os fascistas e boçais no lugar mais alto do pódio. Porque simplesmente preferimos fingir que está tudo bem do que encarar a realidade, os fatos, as mazelas da vida. 

Contudo, é preciso dizer: que bom seria se pudéssemos traduzir a grande covardia que virou o mundo em tão poucas palavras. Não, meus amigos, estamos muito longe disso e o tema é complexo por si só. Ser tóxico, intolerante, castrador, repressivo, virou sinônimo de modus operandi dessa nova sociedade, mais conservadora do que nunca, e orgulhosa de seus defeitos e desvios de caráter. 

Ande pelas ruas, uma meia horinha que seja, caminhe ao redor do seu bairro, preste atenção às pessoas, ouça as conversas de seus amigos e vizinhos, e verão com a maior naturalidade o nível alto de toxicidade do país (e por que não dizer?) do mundo. Sim, porque se colocarmos em debate aqui neste mísero artigo questões como refugiados procurando lugar para morar ao redor do mundo, o discurso religioso e enfadonho de homens cujo único mérito que atingiram foi o de aumentarem suas contas bancárias e patrimônios, guerras santas, a sofisticação do conceito de guerra, transformando o conflito em algo comparável a um videogame, aí então, meus interlocutores, a toxicidade torna-se ainda mais nojenta e sórdida. 

Somos tóxicos porque não vemos nossos semelhantes na maior parte do tempo, e quando os enxergamos - com hercúlea dificuldade- os vemos como seres inferiores a nós. Somos tóxicos ao não respeitarmos credos distintos, roupas exóticas, opções sexuais diversas, formas de pensamento modernas (e cabe aqui um parêntese: o moderno neste século virou sinônimo de esnobismo), sequer o ir e vir das pessoas. Somos tóxicos por causa daquela velha moral arcaica e que o brasileiro tanto adora do "porque eu quero e você não tem nada a ver com a minha vida!". Somos tóxicos por ignorância latente e vergonha administrada. 

Confundiu? Ótimo! Precisamos urgentemente de um pouco de confusão nas relações sociais contemporâneas, tão cheias de certezas e virtudes. Não sei se já disse isso antes, em outro dos meus artigos, e se não disse digo agora: há alguns anos habito o terreno da dúvida, por opção minha mesmo. Tenho visto com certa preocupação questões como revisionismo histórico e fake news sendo tratadas com imensa banalidade, como assunto trivial, que não merece ser investigado a fundo. E acho tudo isso um tanto tóxico. As pessoas parecem tão certas, tão verdadeiras quanto a tudo que se passa, que me fazem pensar que o mundo precisa - e para ontem - de um grande reboot, ou quem sabe um novo big bang. 

A toxicidade atual é consequência do desleixo e do medo com o qual vivemos nossos problemas diários. A covardia, sentimento antes voltado a seres de somenos importância, hoje ganhou status de cult. Vivemos a era dos ressentidos, talvez o mais tóxico dos grupos de interesse dessa louca humanidade em que habitamos. E pior: não sabemos como combatê-los, porque estão em maior número. Se por um lado Nelson Rodrigues acertou ao falar da revolução dos idiotas, e da quantidade deles, é preciso que encontremos uma vacina, cura (outra palavra problemática nos dias atuais) ou solução para o cenário que se encontra. 

Tenho medo do que as novas gerações herdarão da minha. Tenho medo do futuro que está logo ali, sempre logo ali, na próxima esquina, rindo da nossa cara (e o futuro é sempre mais rápido do que gostaríamos). Tenho medo. Dos tóxicos e covardes e dos em cima do muro, dos maria vai com as outras, da ditadura da opinião que não nos permite evoluir, do pensamento único imposto por uma minoria que quando conhecemos mais de perto não é sinônimo de caráter, exemplo, moral, absolutamente nada. E todo esse tóxico - que a universidade de Oxford bem lembrou nesse final de ano - tem colocado as manguinhas de fora por tempo demais. E tudo o que é viciante sempre acaba mal. 

Logo, somos tóxicos? Então por que não deixar de sermos?