Chegamos ao fundo do poço e não nos demos conta? Chegamos, nos demos conta e não demos foi a miníma, porque só queremos saber mesmo é de nossos próprios problemas e o resto que se dane? Ultrapassamos a última barreira do racional e o que vier depois disso não é problema da humanidade e sim de quem contribuiu (leia-se: o Estado, a mídia, etc) para que o caos acontecesse e se tornasse a norma? Pois é... Fúnebre. Assim me senti - cheio de perguntas e sem nenhuma resposta válida ao alcance das minhas mãos - após assistir a primeira temporada da série de tv The Purge. E pior: com um gosto amargo na boca e um sentimento de que aquilo que meus olhos viram na tela não foi apenas ficção.
The Purge é obra do produtor, diretor e roteirista James DeMonaco. Na verdade, a série é um desdobramento de um série de longametragens com o mesmo nome (aqui no Brasil, ganharam o título de Um dia de crime) que fizeram um certo sucesso não nos cinemas, onde foi é claro exibido, mas nas redes sociais, por seu tom político, agressivo e polêmico.
Em poucas palavras (e para os fãs de seriados que adoram um resumo da situação): o governo americano, cansado das inúmeras tentativas inúteis de combater a violência, decide entregar ao povo a tarefa de fazer justiça com as próprias mãos. Com isso, criam o Purge Day (ou, nacionalmente falando, o dia da purificação). Todo ano, durante um dia inteiro, a sociedade pode ir ás ruas e dar cabo de qualquer pessoa que tenha lhe prejudicado, roubado, atrapalhado a sua vida, etc etc etc. E o estado não se mete no assunto. O problema? A capacidade que um decisão dessas tem de transformar homens em deuses, colocando suas atitudes animalescas e viscerais acima do bem e do mal.
Se nas versões cinematográficas The Purge contava com a presença ilustre dos astros Ethan Hawke e Frank Grillo (que ganhou notoriedade por aqui após o sucesso dos filmes da Marvel), aqui na versão televisiva o criador DeMonaco acerta ao optar por um elenco quase todo de desconhecidos (eu, pelo menos, nunca tinha visto a maioria dos atores e atrizes antes, em nenhum projeto, salvo o ator William Baldwin, que por sinal andava sumido!). Digo isso porque acredito que caso o elenco da série estivesse repleto de estrelas acabaria por distrair minha atenção da história - que já é poderosa sem a ajuda de megaastros.
Em linhas gerais o que se vê durante toda a temporada é a visão mais radical e direta do que se tornou os EUA pós-eleição do presidente Donald Trump. A determinação de relegar à própria sociedade o direito de fazer justiça com as próprias mãos, cria segmentos da maldade muito bem articulados durante toda a trama. Os fanáticos religiosos; os oportunistas de carteirinha, que vivem da desgraça alheia desde que o mundo é mundo; a elite corrupta e maldosa, que compra vidas humanas com a maior naturalidade e quando a situação aperta se faz de vítima; os injustiçados por pequenas coisas, que adoram pôr a culpa nos imigrantes, nos refugiados, nos indignos (segundo eles) de morar na "maior nação do planeta"; todos, sem exceção, buscam um país e uma realidade que atenda única e exclusivamente às suas próprias necessidades, em detrimento dos anseios e dos sonhos alheios.
Resultado: um jogo de gato e rato ainda mais covarde do que o ocorrido nos tempos da Guerra Fria, e mais ardiloso do que qualquer livro ou filme de espionagem que você já tenha lido ou visto nos últimos anos.
Eu poderia resumir The Purge aqui para vocês como um grande estudo de caso sobre a violência urbana ou como um ensaio para entendermos a tal da modernidade líquida (que um dia o antropólogo Zygmunt Bauman defendeu em seus livros), mas nenhuma das duas definições explicariam o que meus olhos viram nesses dez episódios. Na verdade, este artigo tentando explicar minhas impressões sobre a série já nasce desnecessário, pois acredito que ele merece, mais do que ser entendido ou explicado, visto. E uma dica: vejam com calma, sem o desejo tórrido dos tempos atuais de emitir um juízo de valor estereotipado a cada cena ou diálogo.
Em suma, The Purge vence você, espectador, pelo cansaço. E é preciso dar tempo ao tempo, degustar cada episódio como quem assiste a uma autópsia num necrotério. Eu sei, eu sei... Muitos reclamarão. Dirão: "Mas isso é forte demais para mim! Não sei se aguento". A estes faço a seguinte (e mórbida): "Como, então, vocês aguentam a vida diária, repleta de preconceitos e competições, muitas delas desnecessárias?".
Assisti a série num momento em que discutimos aqui no Brasil a questão da porte legal de armas para a sociedade civil. Um desejo de muitos revoltados com o atual estado em que o país se encontra e de muitos machões que adoram exibir-se (e como perderem a chance de exibirem suas pistolas e revólveres, não é mesmo?). E confesso: fiquei ainda mais assustado do que antes de assistir o programa.
O futuro, a persistirmos em nossos pré-conceitos deturpados e nossas escolhas movidas pela paixão, promete-se negro. E não digo isso somente em nossas terras. Falo do mundo como um todo. Já vejo pessoas nas ruas falando até em terceira guerra mundial, caso nada mais lúcido dê resultado. Portanto, apesar do tema nebuloso e atroz que rege a trama, adorei ver The Purge. E acho um tema necessário e pertinente à sociedade atual, que parece tratar a vida nos últimos tempos como um grande espetáculo circense. Vejam, se puderem e se tiverem estômago.
Melhor conhecer um pequeno fragmento da realidade macabra que nos aguarda (caso não tomemos uma providência imediata para melhorar o mundo) do que se ver perdido em meio a um guerra da qual sequer fomos avisados quando realmente começou.
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