quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Entre a velocidade e os dilemas


Corridas de automobilismo possuem um sentimento antagônico para mim: o da relação com a velocidade, a adrenalina, a paixão pelo esporte, mas também a aflição, a sensação de risco pontuando cada movimento, acompanhando o piloto em cada reta, em cada curva. E se é desse jeito para quem assiste pela tela da tv, imagine então quem está dentro do cockpit. Cá entre nós: nada supera essa dualidade. 

Ferrari, regresso do diretor Michael Mann ao cinema após um hiato de 9 anos, é mais do que um filme sobre competições, quem ganhou ou perdeu mais, quem será lembrado por seus títulos ou legado para o esporte. Não. Trata-se dos dilemas e do amor pela velocidade de um homem complexo, rodeado de conflitos e escolhas extremamente difíceis (mas que precisavam ser feitas).

Enzo Ferrari (Adam Driver) construiu sua escuderia em meio ao pó deixado pela segunda guerra mundial. E junto com sua mulher Laura (Penélope Cruz) tiraram leite de pedra e produziram um nome cuja história se confunde com aquele universo. Mas depois da morte do filho, algo se rompeu de forma drástica. Laura afundou no luto, enquanto Enzo construiu na surdina uma nova família. Só o que os unia a partir de então era a empresa.

Contudo, ela está mal das pernas, precisa de novos compradores, novos investimentos, precisa crescer. A falência está ali, logo na esquina, e é proposto a Enzo que ele se associe a alguém. Mas principalmente: a Ferrari precisa vencer as corridas, pois só assim terá o prestígio necessário para conseguir novos contratos e parcerias. 

Mann utiliza como poucos - é um mestre da imagem e já deixou isso claro em longas como Fogo contra fogo e Inimigos públicos - o recurso do encantamento propiciado pelas corridas. Em muitos momentos, me senti tão intimamente ligado a elas que me lembrei dos tempos em que assistia Fórmula 1, com Senna, Prost, Mansell, Piquet... 

Mas a sensação que tive ao longo do filme foi a de um carro que, a princípio, parece fora da estrada, perdido entre a vontade dos mecânicos e o desejo de vitória do seu criador. Com o tempo, entretanto, ele vai acelerando aos poucos, os pilotos encontram seu estilo, seus jeitos de conduzir, e logo estamos quase dentro do carro junto com eles. 

Detalhe que me deixou estático: as cenas dos acidentes que levaram à morte dos pilotos estão entre os momentos mais fenomenais que eu assisti no cinema nessa última década. Inclusive fiquei mais impressionado do que com a explosão da bomba atômica em Oppenheimer. Sério! Queria poder ter visto como eles conseguiram filmar aquilo!

Ao fim das pouco mais de duas horas de adrenalina, divergências financeiras e conflitos familiares (que, em um determinado momento, chegaram a me lembrar até da família Corleone, de Francis Ford Coppola), ficou minha certeza do quanto é bom ter um diretor como Michael Mann de volta à cena audiovisual. E que ele não desapareça de novo, por favor! Seus fãs não aguentariam outro sumiço. 

P.S: e antes que comentem: e o brasileiro Gabriel Leone, que interpreta o piloto espanhol Alfonso de Portago? Gostei muito. Na verdade, esperava uma reles ponta e me surpreendi tanto com o seu desenvolvimento quanto, principalmente, o seu desfecho na trama. Espero que ele tenha novas oportunidades em hollywood, como aconteceu com Rodrigo Santoro e Wagner Moura. 

No mais, assistam. É daquelas experiências que realmente precisam de uma tela maior para ser apreciadas como merecem...

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Em êxtase diante do indecifrável mar


De vez em quando eu enlouqueço e levo este blog para outros caminhos, fugindo do óbvio e da zona de conforto habitual. E como o carnaval acabou, achei que era uma boa hora de fuçar novidades, notícias diferentes, temas excêntricos, procurar outras leituras, imagens, áudios...

E eis que me deparo com o Underwater Photographer of the Year, o concurso internacional de foto subaquática do ano. E desde já digo aqui: só o desafio de conseguir realizar uma fotografia nessas condições adversas, para mim já mereceria um prêmio a todos os concorrentes do ano. Que coragem!

A competição é uma grande oportunidade de pessoas como eu (anônimos fascinados por fotografia da natureza) conhecermos o mundo. Sim, esse que o aquecimento global e nossas atitudes egoístas e animalescas estão destruindo gradativamente ano a ano. É quase como testemunhar, em alguns momentos, o cenário de uma sci-fi e se dar conta de que o planeta terra poderia ser bem melhor se, pelo menos, nós cuidássemos dele. 

O vencedor da edição desse ano é o sueco Alex Dawson, por "Cemitério de baleias", uma impressionante ossada no fundo de mar, contendo inúmeros restos de cachalotes. Quando vi a foto isoladamente num site de jornal, pensei se tratar de alguma produção hollywoodiana, dessas que traz como protagonista um tubarão assassino e o que sobrou de suas vítimas. Estava enganado. É real e devastador. 

Entre os outros fotógrafos contemplados em diferentes categorias - e há trabalhos magníficos -, meus destaques vão para "Salvando Golias", do português Nuno Sá (que traz um resgate de uma imensa baleia encalhada na praia); "Janela de oportunidade", da americana Lisa Stengel (que mostra um ataque de um Dourado-do-mar, caçando comida dentro de um gigantesco cardume); "Mergulho bombástico, do americano Kat Zhou (que registra gansos-patola mergulhando atrás de comida em Shetland, na Escócia) e "Atração estrela", da britânica Jenny Stock (com um tapete feito de milhares de estrelas-do-mar).

Se eu já tinha a certeza de que o mundo submarino era um lugar inexplorado (por mais que cientistas, fotógrafos e cinegrafistas já tenham singrado os quatro cantos do planeta), imagine então agora diante de tais imagens. E esse é um legado que, infelizmente, a humanidade se recusa a aceitar: somos poeira diante do universo. E ainda assim precisamos testemunhar diariamente a prepotência do bicho homem. 

Para quem desejar ver mais fotos, se deslumbrar com a coragem e obter mais informações acerca do concurso, entrem em https://underwaterphotographeroftheyear.com/. Aposto que ficarão encantados (eu, com certeza, fiquei). 

Dizer mais o quê após essa experiência em que eu nem precisei molhar os pés na água? 1) Imersão é isso aqui e não essas exposições estilosas e caras de hoje em dia; 2) a única certeza que eu tive foi de estar em êxtase diante do quão grande - e indecifrável - é isso que chamamos de mar. 

Agora é melhor eu me calar e procurar assunto para o próximo post. 


segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Bete Balanço quarentona


"Bete Balanço, aquela da música, do filme, interpretada pela Débora Bloch, fez 40 anos e ninguém me avisou? Mas olha... Nem parece viu! Tá enxuta ela ainda. Quem diria!". Foi assim que eu reagi quando soube da notícia das quatro décadas de, provavelmente, a mulher mais famosa do rock n' roll brasileiro.

A mulher que sobreviveu ao paraíso perigoso que a própria palma da mão dela mostrou está mais íntegra e atual do que nunca. Na verdade, não consigo imaginá-la como alguém ou algo esquecido, largado no fundo de algum armário ou perdida no túnel do tempo. Bete é uma provocadora raiz, numa época em que a palavra sequer tinha essa conotação que tem hoje!

Muito mais do que mero tema de uma trilha sonora para o cinema, ela se tornou no período, referência de um tipo de mulher. Vejo-a como uma pós-Leila Diniz, desbocada, sem medo da nada nem de ninguém, dona do próprio destino, mesmo quando o futuro parecia duvidoso.

Bete está além de etnias, sexualidades, corpos padrão; ela sequer foi - no meu entender, pelo menos - mulher pra casar, ser mãe, ter filhos. Ela é libertina  ou avant garde demais para isso (e eu sei que vai ter gente que dirá, só pra irritar, "a Rita Lee também era e casou, teve filhos").

E por isso Bete era uma personagem ficcional. Fez parte de um momento cinematográfico aqui no Brasil lá pelos anos 1980 que acabou meio que conhecido como cine rock, junto com longas como Rock estrela, Areias escaldantes, Rádio Pirata, Tropclip... Por sinal, fica a dica aqui para quem não conhece esse período do nosso audiovisual.

Antes que as morenas e as loiras do tchan rebolassem na boquinha da garrafa, antes que as passistas requebrassem as canjicas na inauguração do sambódromo, antes que Fausto Fawcett apresentasse na tv as suas loiras fatais, Marinara e Regininha Poltergheist, Bete já balançava - e encantava - o país com seu charme e irreverência indescritível.

Tenho, inclusive, um colega que defende a ideia de que ela foi o melhor alter ego que o cantor e compositor Cazuza poderia ter criado. Ela transitava em ambos os mundos - masculino e feminino - com a mesma naturalidade. E por isso hipnotizava os dois como ninguém. 

Mas se você, que não é dessa geração, não ouviu a música não adianta de nada eu ficar aqui explicando isso tudo. Pare agora de ler este post e vá ao youtube ou ao spotify conhecer essa jóia quarentona (na verdade, prefira a versão videoclipe). Aposto como vai conseguir entender, nem que seja um pouquinho, o que foi aquela década louca e que - infelizmente - não volta mais. 


quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O vade-mécum do nordeste


Mesmo desapontado com o rebaixamento da agremiação, fiquei curioso com o enredo da Porto da Pedra sobre o Lunário Perpétuo. Eu já tinha ouvido falar do livro coisa de uns 20 anos atrás, mas nunca me atrevi a ler. Pensava comigo: "deve ser mais uma daquelas literaturas chatas, rebuscadas, feitas por e para uma elite entediante". Estava redondamente enganado.

E como explicar às atuais gerações o que foi esse grande almanaque repleto de xilogravuras, criado em Valência em 1594 por Jerónimo Cortés, em plena era Google e que a partir de 1700 virou uma espécie de vade-mécum do nordeste e suas tradições?

O Lunário perpétuo foi um precursor - falando de forma grosseira - daquelas antigas Enciclopédias Barsa vendidas de porta em porta Brasil afora. Um emaranhado de conhecimentos os mais diversos, fundamentais para entendermos a vida, a sociedade e mesmo o dia-a-dia corriqueiro. E se pararmos para pensar o que era o mundo naqueles tempos, sem tv, computador, internet ou inteligência artificial, acreditem: isso não era pouca coisa, não! 

Entre seus muitos conteúdos, o Lunário propõe conhecimentos astrológicos, técnicas de sobrevivência para momentos de crise (conservação de mantimentos e como se localizar quando estiver perdido), remédios para curar enfermidades, equações do tempo, instruções agrícolas, em suma, é um grande guia básico para enfrentar adversidades e viver em sociedade naquela era turbulenta. 

E onde entra o nordeste nessa história toda? Não fosse a obra de Cortés e seu pioneirismo a literatura de cordel regional nunca teria visto a luz do dia e não conheceríamos todos aqueles versos e repentes. Muito menos Ariano Suassuna - criador do clássico teatral O auto da compadecida - teria sequer proposto o Movimento Armorial. Logo, como eu pude simplesmente adiar essa experiência literária por tantos anos? 

(Detalhe: ao fim do desfile da agremiação, o carnavalesco responsável pelo enredo, Mauro Quintaes, aparece no estúdio da emissora que transmitiu a festa para comentar o que achou e quase foi às lágrimas, super emocionado. Depois de ler o livro, posso dizer com folga que eu o entendo perfeitamente. Trata-se de um universo fascinante e mais do que atual para entendermos o que é o mundo hoje, que dirá nos próximos anos).

Eu poderia até dizer que o Lunário é uma bíblia não-oficial e, certamente, atrairia a fúria dos cada vez mais antipáticos e opressores religiosos. E, provavelmente, levando em consideração o que a região nordestina se tornou em consequência do livro, não estaria nem um pouco equivocado. Talvez a intenção de seu autor, guardadas as devidas proporções, tenha sido até essa. Mas prefiro deixar essa polêmica em aberto. 

Ao fim, o que sobra é a grandeza de todo esse conhecimento que ganhou as graças do senso comum, da oralidade e de um povo até então fadado ao esquecimento e à ignorância por parte dos poderosos. Portanto, seria até bom - parei aqui para pensar - o surgimento de um novo Lunário, mais moderno, que nos explicasse de forma transparente o que é esse confuso século XXI cheio de contradições e ausência de valores. Estamos precisando disso!   

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Sambódromo, 40 anos depois


São 40 anos, não 40 horas ou 40 minutos ou mesmo 40 segundos... Há toda uma história por trás desse lugar que não se resume unicamente ao carnaval, à festa de momo. Vai além disso e a própria sociedade brasileira, muitas vezes, não se dá conta.

O Sambódromo completa 40 anos em 2024 e ainda parece que foi ontem. A frase, que é clichê, ainda continua a mais pura verdade. Eu mal tinha 7 anos quando inauguraram. E lembro de ir ver os carros alegóricos na Presidente Vargas no ano seguinte e de me encantar com todo aquele universo, aquelas cores, aquele brilho. 

Eu perguntava à minha mãe "pra quê vai servir isso aí?" e ela respondia 20 vezes, sempre respostas diferentes, uma melhor do que a outra. Com o passar dos anos passei acompanhar - de forma quase doentia, de perder a noite mesmo - os desfiles na extinta Rede Manchete, com apresentação de Paulo Stein e comentários de Fernando Pamplona e Haroldo Costa.

Pela tela da tv eu vi o Cristo Mendigo de Joãosinho Trinta na Beija-flor de Nilópolis coberto de perto e depois desmascarado no desfile das campeãs; cantei até me esgoelar com "Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós" (da Imperatriz Leopoldinense) e "Paulicéia desvairada" (da Estácio de Sá); vi a Unidos de Vila Isabel fazer seu desabafo étnico com "Kizomba, festa da raça"; chorei com o carro dos lobos da Unidos de Viradouro pegando fogo e a agremiação perdendo 13 pontos; fiquei fascinado com as comissões de frente ousadas e também com o carro do DNA da Unidos da Tijuca, façanha de Paulo Barros; deslumbrei-me com a Estação primeira de Mangueira, no supercampeonato, retornando pela pista, no sentido inverso, em direção à concentração, ao fim do desfile para delírio da plateia...

Teve tempestade em "O mundo é uma bola", em 1986 (e mesmo assim a beija-flor foi vice), teve carro alegórico atropelando foliões e arremetendo contra a arquibancada, teve drone do Alladin voando por cima do público, teve - e isso é imprescindível - vozes seminais que definem por si só essa ópera popular: Carlinhos de Pilares, Jamelão, Dominguinhos do Estácio, Rico Medeiros, Quinho, Paulinho Mocidade, Haroldo Melodia, Rixa, Gera...

E isso tudo porque eu ainda não lembrei (por alto) do espetáculo à parte das baterias e suas rainhas e musas. A paradinha funk do mestre Ciça na Viradouro, a furiosa do Salgueiro, o legado de Mestre André, as beldades Luma de Oliveira (com a coleira do Eike), Luiza Brunet, Viviane Araújo, Quitéria Chagas... A lista é imensa. 

Entre o canto uníssono de toda a passarela durante o refrão Explode coração, na maior felicidade... do enredo "Peguei um ita no norte", da Acadêmicos do Salgueiro à exaltação do Orixá Exu, no primeiro título da Grande Rio no carnaval carioca, sorrimos, choramos, torcemos, fizemos figa, imploramos pra chuva parar, para o carro alegórico grande além da conta conseguir entrar na avenida, para o tempo não estourar, para a harmonia não deixar furo e o samba não atravessar.

E quer saber? Que venham os próximos 40, 80, 120, 200 anos... Que os passistas sambem, que as mulatas seduzam, que os intérpretes (ou puxadores, tem pra todos os gostos) se esbaldem, que os carnavalescos criem essa festa que é, em grande parte do tempo, um resumo do que de melhor acontece na cidade do Rio de Janeiro. E mesmo assim tem gente que não entende, que faz vista grossa, que finge que não é bem assim... Parabéns, Sapucaí!


sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

She, Frankenstein


Uma das coisas que mais me atraiu no cinema desde que eu era moleque foi sua capacidade de criar fábulas, mundos imaginários, universos por vezes impossíveis, sem a menor necessidade de transparecerem ser reais (embora a realidade estivesse presente). E nos últimos anos eu andava carente dessa presença nas telas por conta do sumiço (ou falecimento) de diretores que faziam essa passagem da ficção à realidade como ninguém - Terry Gilliam, Alejandro Jodorowsky, Andrei Tarkovski, etc...

Ao sair da sessão de Pobres Criaturas, novo longa magistral de Yorgos Lanthimos, seu maior êxito para mim com certeza foi: ele conseguiu fazer eu reviver esse sentimento cujos dias eu via como contados. 

Bella Baxter (Emma Stone, sublime e minha favorita ao Oscar) é uma criação imperfeita do Dr. Goodwin Baxter (Willem Dafoe). Uma mulher grávida que se suicida e vê o cérebro de seu bebê ser transplantado nela, surgindo assim uma versão feminina de Frankenstein, clássico literário de Mary Shelley. 

Convivendo diariamente com seu criador e futuro noivo, Max McCandles (Ramy Youssef), ela se vê prisioneira num mundo de homens covardes, ególatras e somente interessados em sua própria ciência. Resultado: decide ir embora depois que conhece o sedutor, mas vigarista, Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo). E durante a viagem vê despertar nela um desejo não só pela liberdade, mas também pelo conhecimento. 

Ela cansou de ver sua experiência de vida sendo ditada pelos outros e decide arriscar-se a tudo e todos, sem rodeios ou melindres. Envolve-se com outros homens - para a fúria de Duncan -, torna-se prostituta e, principalmente, aprende a manipular toda e qualquer situação a seu favor. 

Em outras palavras: Bella é o último resquício de coragem num mundo apegado a convenções e falsos moralismos. E só por isso já vale (e muito) a pena ver o filme de Lanthimos, um mestre na arte de narrar o absurdo e o excêntrico. Contudo, é preciso apreciar todos os detalhes dessa aventura inebriante: a fotografia deslumbrante, a mesclagem entre o preto-e-branco e as cores, a direção de arte escandalosa, e um elenco de apoio afiado e pronto para expor o seu cinismo e seus pontos de vista reacionários a qualquer momento. 

Entre as muitas influências (ou talvez eu tenha é enxergado demais) presentes no longa irretocável, pude perceber na mise-en-scène toques de Tim Burton - mas dos tempos bons de Ed Wood e Edward: mãos de tesoura -, do Terry Gilliam citado acima em obras-primas como As aventuras do Barão de Munchausen e até mesmo uma pitada de E la nave va, de Federico Fellini, na cena da viagem de navio. E deixo aqui um conselho aos espectadores: se permitam fuçar, espiar com atenção; há muito a ser visto (e admirado) nessa peça rara em forma de película. 

Ao fim da sessão, meu deleite e uma ótima impressão: a de que mesmo em meio a tanta caretice e conservadorismo babaca na hollywood dos últimos tempos ainda é possível aos cinéfilos apreciar um cineasta e uma equipe corajosa, disposta a produzir cinema sem tanto apego à rótulos e personagens que não passam de mercadorias caras e repetitivas. 

Depois de Godzilla Minus One, essa é mais uma grata surpresa nesse começo de 2024... 


segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Essa é uma rainha de bateria!!!


Começa fevereiro e com ele a angústia que antecipa o carnaval carioca. Os últimos preparativos para que a Marquês de Sapucaí receba as agremiações com todo o garbo que elas merecem, os primeiros blocos fazendo o esquenta, os ensaios técnicos para tirar as últimas dúvidas antes do grande desfile, as pessoas programando suas respectivas viagens com antecedência... Calma, gente! Está quase. É semana que vem.

Entretanto, há uma figura em particular que sempre me intriga nessa época do ano. São as rainhas de bateria das escolas de samba. É simplesmente impressionante o que essas mulheres fazem com os seus próprios corpos em plena avenida. Mas é preciso ressaltar: nos últimos anos eu vinha um tanto decepcionado com as rainhas e musas, achando-as mais beleza do que samba no pé (para mim, fator imprescindível para assumir tal posto, tão cobiçado a cada ano que passa). 

É exuberante ver mulheres como Paolla Oliveira, Viviane Araújo, Sabrina Sato e tantas outras beldades à frente de suas baterias, mas... é magnífico ver uma rainha na excelência do seu ofício, em total sintonia com os ritmistas de sua escola. E é nesse momento que entra em jogo a personagem desse post: falo de Mayara Lima, rainha de bateria da escola de samba Paraíso do Tuiuti. 

Ela não é uma atriz ou cantora famosa, uma celebridade internacional de hollywood, muito menos uma youtuber badalada. Contudo, guarda todas elas no bolso com uma facilidade assustadora. Nestas últimas semanas andei conferindo uns shots do you tube (aqueles vídeos curtos, de poucos segundos) de Mayara em plena ação em ensaios de rua da escola ou de apresentações na cidade do samba ou no próprio sambódromo. Em uma palavra? Surreal! Vejam vocês mesmo e me digam depois o que acham.

Como explicar o segredo de Mayara, logo eu que nem me arrisco a sambar? Sua sintonia com os integrantes da bateria, seu ritmo pessoal, seu carisma, enquanto os homens a olham, em êxtase. Mayara Lima é não só a melhor rainha de bateria do carnaval carioca como a cara da festa de momo, uma festa cada vez mais elitizada e que precisa urgentemente de mais figuras como ela, completamente devotada à folia. 

A moça de apenas 25 anos, professora de dança e cria da comunidade do Tuiuti, em São Cristóvão, é a prova viva do elo cultural que existe desde priscas eras entre o samba e as favelas, um elo que os governantes insistem em romper sempre que podem para beneficiar uma classe elitista que, na hora H, não está nem aí para a festa, só quer saber de sua própria vaidade e privilégios. Logo, a jovem Mayara é o resquício do que (ainda) pode ser o carnaval e a cultura popular desse país se os gananciosos de plantão não estragarem tudo - de novo.

A Paraíso do Tuiuti desfila segunda, 12 de fevereiro. É a penúltima a atravessar a avenida e desde já aguardo a apresentação de Mayara, que é um capítulo à parte dentro da própria agremiação. Que ela mais uma vez mostre o que o samba tem de melhor, principalmente para aqueles que não cansam de vê-lo como mero negócio ou produto. E que venha o carnaval, porque o povo não aguenta mais de tanta ansiedade!