terça-feira, 30 de novembro de 2021

O que faz deles um casal?


"Viver à dois é para poucos", diziam meus pais e pelo que pude testemunhar do casamento deles, estavam cobertos de razão. Eu mesmo, em mais de 40 anos de vida, nunca me imaginei como parte integrante deste universo. E ainda digo mais: vejo o casamento como um grande enigma sem solução. Uns vão dizer que vale pela experiência e/ou catarse, outros que foi a melhor coisa que poderia lhes ter acontecido, simplesmente porque não conseguem viver sozinhos. Para mim, é uma incógnita que não vale o risco. 

No entanto, tenho um verdadeiro fascínio por peças de teatro, livros e filmes que abordam o tema. E quanto mais complicado ou fora da curva o casal, melhor. Tem quem chame isso nos EUA de guilty pleasure (vai entender o tio Sam!). Adoração mórbida à parte, ninguém esmiuçou o tema como o cineasta sueco Ingmar Bergman, gênio que fuçou as dores e angústias humanas como ninguém. Mas ninguém chegou perto de sua maestria (embora tenham tentado à exaustão). 

Dentre os que tentaram o mais recente, o produtor Hagai Levi - escritor por trás da soberba série de televisão Em terapia, com o fascinante ator Gabriel Byrne como protagonista - arriscou a empreitada de realizar um remake da minissérie Cenas de um casamento, um clássico na filmografia de Bergman, para o canal HBO. O resultado, mais uma vez, divide opiniões. Mas quer saber? Até mesmo essa divisão é bem-vinda e acrescenta para o debate sobre a trama. 

Aliás, vamos a ela: Mira (Jessica Chastain) e Jonathan (Oscar Isaac) são o casal que aparentava estabilidade, mas tudo rui quando Mira diz que se apaixonou por outra pessoa, no caso um homem mais novo. Detalhe imprescindível: um aborto que antecede essa notícia foi um catalisador fundamental para o começo do fim da relação (embora Mira diga ao marido que há anos vive sufocada, sem paixão). 

Eles têm uma filha, Ava, ainda pequena, e esse será um grande ponto de conflito na separação. Com quem ficar, dividir a guarda... E o pior: eles nunca estão completamente distantes. Um precisa da presença do outro, transformando o casamento num cabo de guerra difícil de explicar. Até mesmo a palavra divórcio (e o fato de ambos não estarem convictos da necessidade dele) vira uma pedra de Calcutá em qualquer conversa ou discussão que tenham. E as discussões - que são muitas e parecem intermináveis - é uma grande questão a dividir o público espectador. 

Em sites de cinema e críticas que li vi muitos "entendidos" dizendo que o bate-boca interminável entre Mira e Jonathan é o maior problema da série. Uma delas chegou a dizer: "se o divórcio é o preço que eles têm de pagar para que eu não tenha mais que ouvir nenhuma discussão, que seja!". Honestamente... Me pareceu o típico comentário de quem viveu isso na pele, de quem não gostava das D.Rs e fez de tudo para pular essa parte quando estava casado. O problema: nenhum casamento é uma festa que nunca termina. 

Quando eu tinha por volta de meus 12, 13 anos ouvi um senhor de seus 70 anos me confessar sua opinião sobre o matrimônio. E ele disse: "o problema dos casais, principalmente os de hoje em dia, é que eles não entendem que o casamento não é a festa, o trocar de alianças, o buffet, o bolo, os docinhos, a benção do padre... Não, meu jovem! O casamento é o que vem depois. O que acontece depois que a festa acabou. E a sociedade contemporânea não consegue mais viver fora da festa". 

E ao lembrar desse discurso, percebi que as discussões de Mira e Jonathan eram o que menos me aborrecia. O problema mesmo era a incapacidade dessa nova sociedade viver a dois. Estamos cada vez mais imediatistas, imaturos, interesseiros, colocando nossos interesses na frente de quem quer que seja. Logo, como dividir o espaço com outra pessoa, casar, ter filhos? Às vezes a mera realização disso já parece um absurdo. 

O que faz de Mira e Jonathan um casal é exatamente essa dificuldade de permanecerem juntos, de serem exclusivos um ao outro. E não adianta os mais velhos reclamarem, chamarem de ingenuidade ou falta de paciência. Os tempos são outros: mais corridos, frenéticos, quase esquizofrênicos. Sou de opinião que a vida se transformou num convite à solidão, pois é melhor ficar sozinho do que magoar alguém. Contudo, o ser humano ainda precisa de sexo, de uma boa conversa, de companhia. Nasce daí um grande conflito. 

No final das contas, o que percebo em Cenas de casamento (pelo menos, nessa nova versão) é que se trata de um grande estudo de caso sobre a imperfeição presente em qualquer ser humano. E da dificuldade de, ao menos, admitir isso. E essa mágoa, esse ressentimento, não é necessariamente algo ruim. Ela só precisa ser canalizada da maneira correta. As brigas, traições e separações, acreditem!, ensinam bem mais do que aparentam. Mas para isso é preciso uma sociedade que não enxergue tudo a ferro e fogo. Nem tudo é apenas certo ou errado. Que bom seria se fosse!

P.S: para você que viu e gostou de História de um casamento, de Noah Baumbach e Kramer vs. Kramer, de Robert Benton (vencedor de 5 Oscars em 1980), achei esse aqui um pouco mais profundo. Mas, cá entre nós, ele precisava ser. Do contrário, não seria o século XXI.   


quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Eu voltei a ser criança


Alguns artistas, desde pequeno, me passam a impressão de serem figuras inesgotáveis, que só irão parar de trabalhar, que só iremos parar de ouvir o seu nome, quando ele não estiver mais entre nós. O cartunista Ziraldo Alves Pinto - ou simplesmente Ziraldo - é uma dessas figuras. O menino que nasceu em Caratinga, em Minas Gerais, tinha um encanto todo particular pelo desenho, pelo mundo das imagens. E sempre achei, por acompanhar seu trabalho de perto, que se ele não fizesse disso sua profissão, seu modo de vida, não seria mais nada. 

Ziraldo deu um susto nos fãs em 2018, quando sofreu um AVC. E nesse momento eu temi que aquele seria o começo do fim. Já me preparava, inclusive, para escrever um obituário elogioso sobre ele, enaltecendo sua carreira e falando do quanto ele contribuiu para a minha formação cultural e profissional. Para meu alívio e felicidade, eu estava enganado. O velho mestre ainda tem muito o que mostrar. 

No dia da consciência negra saí de casa para ir ao Museu Histórico Nacional e me deparei com a exposição Terra à vista e pé na Lua. E me perdi no mundo lúdico de sua obra, que algumas pessoas só conseguem enxergar como infantil, mas eu sempre olhei além. E saí de lá com uma certeza: Ziraldo é um dos maiores patrimônios culturais que esse pais possui. O que falta é lembrar a sociedade brasileira disso!

O homem que foi pioneiro no design, promoveu uma  revolução na literatura infanto-juvenil, escreveu para os mais importantes jornais e tabloides do país (dentre eles, A folha de São Paulo, a revista Cruzeiro e o antológico O pasquim) e foi, com folga, dos maiores críticos de costume que o Brasil já teve, é homenageado de uma maneira que até ele iria às lágrimas se visse o resultado. 

É preciso enaltecer o trabalho de cenografia da dupla Susana Lacevitz e Philppe Midani. O capricho, a precisão, a maneira como eles fazem despertar automaticamente a nossa ideia de memória afetiva. Mais do que um mero passeio, a exposição é - como bem se propõe desde o início - uma aventura humana rumo ao desconhecido, nos conduzindo das navegações marítimas às conquistas espaciais. 

Fiquei perdido entre os painéis (alguns de até dois metros de altura) do Pátio Minerva e os personagens gigantescos do artista, representados em escala humana, no Pátio dos canhões. Tinha até - acreditem! - canhão atirando flores. Melhor resposta para um país que prefere nos últimos tempos armas à livros, impossível.

E por falar em livros, eles também estão por lá, inclusive as edições originais de algumas de suas obras. E Ziraldo tem muita história para contar nesse quesito: Zeróis, Menino maluquinho, Flicts, A turma do Pererê, O bichinho da maçã, O planeta lilás, O menino marrom... A lista é imensa. Além deles, quadrinhos, tirinhas, cartazes, onomatopeias, ufa! Deu até canseira uma hora. Mas eu me sentei um pouquinho e continuei. Porque queria ver mais. 

Quer ver a antiga máquina de escrever que ele usava? Está lá. Quer ver a cadeira de bar dele, item de colecionador que ele praticamente não divide com ninguém? Também está lá. Isso fora o lado tecnológico que funde a exposição com outras mostras do Museu através de QR codes espalhados pelos salões. Ainda querem mais? No dia 30 de novembro ainda haverá uma ação educativa chamada "O alfabeto começa com Z", voltada para pesquisadores e professores da rede pública municipal. Para saber mais, dá uma fuçada no you tube do Museu. Eu já estou no aguardo para ver. 

Num release que li a respeito da exposição antes de sair de casa vejo que a proposta é reler o passado e recriar o presente através da história de vários Brasis (meio que uma resposta ao atual governo federal, de viés sempre unilateral). Entretanto, o legado mais importante que a proposta me produziu foi: por mais de duas horas eu voltei a ser criança. E isso nenhum político, discurso de ódio ou fake news irá conseguir tirar de mim. 

Valeu, Ziraldo. Por tudo. E toda saúde do mundo pra você.    


domingo, 21 de novembro de 2021

À margem de tudo e todos


Existem cinemas feitos para arrebanhar cifras estratosféricas, lotar cinemas multiplex e alienar a cabeça de espectadores facilmente manipuláveis enquanto eles consomem pipoca e refrigerante. E também existem cinemas que incomodam tanto, mas tanto, que o último lugar no qual são exibidos é a própria sala de cinema e, por isso, precisam procurar seu próprio espaço, seu próprio modelo de distribuição. Mas ainda assim, com toda essa dificuldade e luta, fazem história e marcam uma geração.

O cinema marginal (também conhecido, na época, como cinema de invenção ou movimento udigrudi, uma corruptela da expressão underground) cabe perfeitamente nessa categoria. E ainda digo mais: acho que é o melhor exemplo de cinema cult que nós temos em toda a nossa cinematografia. 

Ponto vital para entendermos o que foi esse movimento: é praticamente impossível falar do cinema marginal sem mencionar o grupo do cinema novo, pois parte da temática dos marginais (expressão, por sinal, à qual eles próprios não gostavam de se ver associados) partia de um sentimento de decepção com o outro grupo. Eles, os marginais, reclamavam que os cineastas do cinema novo haviam traído sua própria proposta cinematográfica ao deixar de lado a chamada estética da fome - que retratava as injustiças sociais da época - para realizar um cinema mais comercial, de apelo popular. E o que eles queriam mesmo era desconstruir a realidade vivida naquela época. 

O pontapé inicial é dado quando os militares decretam o Ato Institucional número 5 (em 1968) e endurecem ainda mais a vida dos cidadãos brasileiros durante o regime militar. A repressão ganha status e os cineastas, revoltados, pois tiveram suas vidas devassadas, alguns até presos, decidem fazer de sua sétima arte uma luta contra o governo. Em outras palavras: mais do que mera forma de arte, os filmes desse período ganham o status de oposição ao governo, por suas temáticas fortes e, por vezes, dolorosas. 

A estética proposta pelo grupo era o grotesco. Logo, o público espectador daquele período poderia esperar por absolutamente tudo: imagens imperfeitas, desfocadas; enquadramento longe do convencional; deboche, ironia, exotismo, política, violência, sexo, escatologia, os corpos dos atores em cena ganham um novo aporte. Até mesmo a paródia e a chanchada, criticada pelos artistas do cinema novo, é revalorizada aqui. As tramas são insólitas, abordam o incomum, em muitos casos o anormal. Não tem o menor compromisso com a norma culta ou a regra. Pelo contrário... Querem chocar, incomodar o quanto puder.

Que o digam o jovem que mata os pais à faca e depois vai ao cinema; o marginal popstar, que assalta e se aproveita de mulheres indefesas, levando à loucura as autoridades policiais, mais conhecido como o bandido da luz vermelha ou mesmo Sônia Silk, a prostituta que sonha ser cantora de rádio, todos personagens anti-heroicos, desestruturados, à margem da sociedade, como bem preferem os cineastas desse período!

As produções, de baixo orçamento, praticamente experimentais, são produzidas em sua grande maioria na Boca do Lixo, em São Paulo (produção essa que, anos depois, acabou estigmatizada ou rechaçada como vulgar por alguns setores da sociedade, tendo em vista a temática erótica que propunha em muitos longas) e na Belair Filmes, no Rio de Janeiro (produtora idealizada pelos cineastas Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, que realizou sete longas mas acabou fechando as portas por pressão da ditadura). 

Dentre os grandes realizadores desse período (além dos fundadores da Belair), faz-se imprescindível aos espectadores de hoje e das próximas gerações conhecer a obra de Carlos Reichenbach (que, anos depois do fim do movimento, realizaria os fundamentais Lílian M.- relatório confidencial e Filme demência), Ozualdo Candeias (responsável pelo pioneiro A margem), Andréa Tonacci, José Mojica Marins (o Zé do Caixão), Olney São Paulo (do extraordinário Manhã cinzenta) e Luiz Rozemberg. E isso para ficar apenas nos nomes mais óbvios. 

E para quem deseja conhecer um pouco do clima barra-pesada daquela época e do sufoco pelo qual os artistas daquele período passaram recomendo de olhos fechados o média-metragem Horror Palace Hotel, do diretor Jairo Ferreira - facilmente encontrado no you tube -, que embora seja de 1978 (portanto, posterior ao cinema marginal) mostra com exatidão o tom de frustração do meio artístico com o país naqueles tempos sombrios. Considero a obra um documento histórico!

De tristeza mesmo somente o fato de que a geração posterior (da chamada retomada do cinema nacional) não deu continuidade ao legado proposto por esses visionários e acabou, com o tempo, preferindo perder tempo com comédias insossas e produções de estética televisiva barata e artificial. Mesmo os cineastas de viés mais autoral, acabaram tomando um caminho diferente. Eu confesso que gostaria de ver um pouco dessa coragem na nossa sétima arte contemporânea, pois ela anda fazendo falta.

Mais isso é só um mero detalhe desse crítico chato que não tem mais o que fazer e acabou mostrando sua faceta ranzinza no final deste artigo!


quarta-feira, 17 de novembro de 2021

A metamorfose


O gênero terror já me assustou mais e já me passou uma ideia de ser mais sujo, nojento. Não, é sério! Eu tenho achado o gênero um tanto clean nos últimos anos (salvo, é claro, diretores interessantíssimos como Jordan Peele e Robert Eggers) e a culpa disso é da própria hollywood, que não investe tanto em novas ideias boas e perde tempo sucessivamente com remakes desnecessários. 

Nada era mais gratificante naquelas sessões de antigamente - no cinema e na tv, de madrugada - do que a boa e velha participação da maquiagem, dos efeitos práticos e das soluções baratas. Sim, pois CGI ainda não era sequer considerado prematuro naqueles tempos. 

E um grande exemplo disso, desse cinema assustador, sujo, repulsivo, que marcou época é o sempre cult (pelo menos, para mim) A mosca, do diretor David Cronenberg, que completa 25 anos em 2021. 

Acompanhamos a saga do cientista Seth Brundle (Jeff Goldblum) envolvido num projeto ultrassecreto. Ele convida a jovem jornalista Veronica Quaife (Geena Davis) para seu apartamento e lhe apresenta a um protótipo revolucionário de teletransportador. A princípio sua invenção parece extremamente bem-sucedida e desperta a atenção da jornalista, que quer fazer dele a sua matéria de capa. 

O problema é quando Brundle decide testar seu invento em si próprio e é teletransportado de um módulo para o outro junto com uma pequena mosca. Suas cadeias de dna se fundem e ele passa a sofrer mutações genéticas irreversíveis. Desde o gosto acentuado por açúcar até o desinteresse nítido por asseio, ele começa a se tornar um inseto gigantesco, para o pavor de Veronica, única a testemunhar toda a autodestruição do cientista de perto. 

A mosca faz parte, junto com longas como Videodrome - a síndrome do vídeo, A hora da zona morta, Gêmeos: mórbida semelhança e Scanners - sua mente pode destruir, daquela que eu considero a primeira fase da carreira do diretor David Cronenberg, que envolve - dentre outras temáticas - o fascínio exagerado pela maquiagem, o mórbido e o visual exótico. 

Com o passar dos anos e a chegada dos cabelos brancos Cronenberg acabou direcionando sua sétima arte para outro caminho e se tornou um interessante diretor de dramas existenciais. Contudo, até hoje eu confesso sentir falta desse "outro lado" dele nas telas. 

E no caso específico de A mosca, eu sempre vi o filme como a representação viva do que o escritor Franz Kafka fez com Gregor Samsa em seu livro mais famoso. Seth Brundle é, à maneira de Cronenberg, A metamorfose sem tirar nem pôr uma vírgula sequer. 

E é preciso fazer um adendo importante aqui: desafio qualquer leitor dessa crítica que viu o filme e seja capaz de me apresentar um filme mais nojento do que esse. Até hoje eu olho para um inseto pousando na mesa da cozinha quando estou almoçando e me lembro de toda a deterioração corporal sofrida por Brundle no longa. Eu nunca mais consegui olhar para estas pequenas criaturas sem um certo nojo (e isso, meus caros leitores, é com certeza mérito da produção). 

Depois de testemunhar toda essa nojentice muito bem criada como seria possível chamar esses filmes de exorcismo meia-boca e figuras sobrenaturais criadas em computação gráfica de assustadoras? Pois é. Como eu disse: o terror não assusta mais, não é mais repulsivo como antigamente. E isso é uma pena. 

P.S: se tiverem tempo sobrando procurem também por A mosca da cabeça branca, de Kurt Neumann. Ambos são baseados num conto do escritor George Langelaan e a adaptação de 1958 também vale uma boa conferida (principalmente se você for cinéfilo raiz como eu!). 


sábado, 13 de novembro de 2021

O Shakespeare russo


Eu não sou um leitor apegado ao cânone, pois acredito que precisamos também conhecer o que está fora dele. E acreditem: há muita coisa boa no mercado literário que não é endeusada por críticos e editoras. A própria ideia de se relacionar com a literatura é um conceito singular (pelo menos, para mim). Prefiro quebrar a cara fazendo as minhas escolhas do que me decepcionar seguindo um caminho proposto pela indústria do best-seller ou um crítico de viés popular, mas tendencioso em demasia. 

Contudo, é preciso admitir: quando o cânone acerta, ele acerta em cheio. Foi assim com Shakespeare, com Rimbaud, com Machado de Assis, com Cervantes e certamente é assim com Fiódor Dostoiévski, que no último dia 11 de novembro, se vivo fosse, estaria comemorando os seus 200 anos de existência. 

Dostoiévski renderia uma biografia de mais de mil páginas, um estudo para uma tese de doutorado nas mais importantes instituições de ensino do mundo, e não um mísero artigo desleixado. Eu sei... Mas eu preciso - muito! - fazer essa homenagem. O autor que se tornou atemporal por seus próprios méritos e escreveu sobre essa sociedade na qual estamos afundados até o pescoço muito antes dela sequer sonhar em existir, não é um literato qualquer. Pelo contrário. É justamente do que o mercado editorial anda precisando mais do que nunca hoje e não consegue encontrar na atual geração, mais interessada em modismos e franquias descartáveis. 

Fiódor Dostoiévski retratou as profundezas da alma humana com uma facilidade assustadora. Falou de compaixão, ética e empatia, para ele os temas mais relevantes e imprescindíveis na conversa de qualquer ser humano que se preze. E no auge de sua escrita, mordaz, elegante, e de uma transparência absurda, questionou o individualismo exagerado, a falta de responsabilidade do homem e propôs a beleza (não a da aparência, mas a dos sentimentos, da compaixão) como a salvação do mundo. 

Pena que as gerações posteriores, na sua eterna prepotência, não entenderam nada do que ele disse. 

Em obras como Crime e castigo, O idiota, Os irmãos Karamazóv, Os demônios, entre tantas outras, é possível testemunharmos uma forte teatralidade, baseada em questões e dilemas éticos. Mais do que isso: o autor traz pensamentos sobre as estruturas da sociedade, mas trazidas em forma de questionamentos. Ou seja, ele propõe no fim das contas um interessante repensar sobre a realidade, tendo em vista o quanto a sociedade do seu próprio tempo andava perdida, à deriva.

E é mais comum do que parece pegar um livro de Dostoiévski de forma equivocada e lê-lo à luz de debates entre a fé ortodoxa e o racionalismo ou sob o âmbito da luta de classes. Não, meus caros leitores! Há quem dera fosse fácil explicar o autor dessa maneira. Vocês precisarão de bem mais do que isso, acreditem!

Num artigo publicado no Jornal do Brasil exclusivamente sobre os 200 anos do autor russo o professor Leonardo Guelman, do Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF), recomenda aos leitores de primeira viagem que comecem a conhecer a obra de Dostoiévski pelo romance epistolar Gente pobre, que trata de gente simples dos cortiços de São Petersburgo, dos miseráveis que sempre estiveram presentes na obra dele (o que o pesquisador chama de "semente da humanidade").  

Não saberia ao certo por onde começar a indicar a alguém um livro sequer desse mestre da narrativa. Eu iniciei minha relação com sua obra por Os irmãos Karamazóv e, confesso, que achei bastante complexo. E tenham isso em mente: não é um autor simples de ler. Mas é justamente dessa dificuldade, dessa precisão e rigor, que nasceu o meu interesse por seu trabalho. E depois que você engata, não larga mais, podem me cobrar depois aqui!

Ao final dessa resumida (mas não menos agradável) experiência permaneço com a ideia que sempre tive acerca de Dostoiévski: ele é, sem sombra de dúvidas, o Shakespeare russo. Desnudou, como pouquíssimos, o véu de hipocrisia e falso moralismo que cobre grande parte da humanidade. E fez isso de uma maneira tão simples, mas tão simples, que parece até injusto ou covarde com nós, leitores. Mas acreditem: não é. É só talento mesmo. 


quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Os caubóis também envelhecem


Há uma máxima da vida a qual não podemos superar, embora tentemos angustiadamente: o tempo. 

Lutamos contra o tempo de teimosos que somos. Ele chega, apronta das suas, vira nossa vida de ponta a cabeça, nos faz discutir e questionar absolutamente tudo. Pior: nos faz perder tempo, às vezes com coisas simples, com aquilo que está diante de nossos olhos e não somos capazes de ver nem mesmo com lupa ou telescópio. E ainda assim continuamos, seguimos em frente, putos, pois a sensação que se tem em alguns momentos é a de que a vida não passa de um jogo - às vezes de cartas marcadas, às vezes covarde, injusto. E precisamos lidar com as trapaças do dia-a-dia. 

O cinema, nesse sentido, sempre foi uma grande ferramenta para nos colocar à parte desse quesito, o tempo. E mais: ele é capaz de transformá-lo a seu bel prazer, desconstruí-lo, fazer dele gato e sapato, quando a ficção proposta assim o exige. Contudo, nos últimos anos, confesso que tenho andado um pouco decepcionado com certas narrativas que falam sobre o tempo. Tudo me parece um tanto pasteurizado, envelhecido. A sociedade persegue doentiamente a beleza, o status, a ganância, a identidade de gênero e a indústria cinematográfica acabou por comprar esses discursos de forma um tanto equivocada. Em outras palavras: quem poderia falar sobre o tempo parece acovardado ou diminuído diante dos assuntos que tomaram as páginas dos tabloides e a grande mídia.

Bem... Nem todo mundo. Clint Eastwood, o eterno caubói dos tempos de O cavaleiro solitário, Era uma vez no Oeste e o indefectível Os imperdoáveis (vencedor do Oscar), além de voz e corpo da grande persona que marcou a época das franquias, o policial Harry Calahan, continua por aí convivendo e narrando acerca de seus próprios traumas e fantasmas. E é exatamente isso o que ele faz com todo garbo e estilo em Cry macho, seu mais novo longa.  

Na trama, Mike Milo (Clint Eastwood) é um antigo ídolo dos tempos de rodeio que viu seus dias de glória passarem mais rápido do que ele gostaria e agora vive de realizar pequenos serviços para o inescrupuloso empresário Howard Polk (Dwight Yoakam). Polk, por sua vez, sabe melhor do que ninguém que pode contar com a confiança e a discrição de Milo em todos os sentidos e por isso pede para que o velho caubói atravesse a fronteira do México e traga seu filho para morar com ele, pois acredita que a influência da mãe promíscua e alcoólatra está fazendo mal ao garoto. A partir daí, o que vemos na tela, mais do que uma mera busca ou resgate, é um grande conflito de gerações como há um bom tempo eu não via em hollywood. Pelo menos não narrado dessa forma. 

Eastwood, embora com mais de 90 anos, ainda mostra bastante fôlego na direção e não desaponta como contador de histórias e criador de dramas existenciais. Mas para aqueles que vêm crucificando o diretor nos últimos anos por conta de suas escolhas pessoais e projetos, vai aqui um recado: esqueçam a figura notória e máscula que Clint construiu ao longo da carreira com Dirty Harry e os faroestes de Sergio Leone. O tempo, meus caros leitores, passou e o caubói envelheceu. Como, aliás, todo mundo um dia irá. 

Convencer o garoto problemático e mestre em encrencas a voltar com ele é uma saga por si só, mas o velho caubói não está disposto a entregar a toalha tão fácil. A mãe do menino, que não quer vê-lo morando com o pai, embora não dê a mínima para o filho, pede a um dos seus capangas que impeça que a dupla chegue à fronteira. E não bastasse isso, ainda por cima terão que se esconder, pedir abrigo à dona de um estabelecimento comercial - que se encanta pelo velho Milo -, serão confundidos com transportadores de droga e sabe-se lá Deus o quê mais.

Dos longas que Eastwood dirigiu nos últimos anos certamente foi o que eu mais gostei, pois achei coeso e não me soou melodramático em demasia. Pelo contrário: é de uma verdade assustadora quando toca em questões como heroísmo, juventude e velhice. E acredito que muitos dos espectadores que prefeririam que o diretor se aposentasse a produzir algo do tipo tenham se incomodado - e muito! - com esse aspecto. 

Nossa sociedade atual só pensa em festas, glórias e conquistas. Ninguém parece interessado naquilo que pareça remotamente real. Fugimos dos nossos próprios problemas sob a falsa crença de que eles simplesmente desaparecerão com o passar dos anos. Mas o tempo nunca funcionou dessa maneira. E aqui, em Cry Macho, o que vejo é um ensaio doloroso, mas extremamente necessário e verdadeiro, sobre o tempo, esse inimigo invisível e devastador que nos acompanha até o último dia de nossas vidas. 

Você, festeiro, alienado, que já não queria ver o filme, ficou ainda mais decepcionado após a leitura desta crítica? Pois quem perdeu foi você mesmo. Um dia, quer você goste ou não, essa história também será a sua. Os questionamentos e dúvidas darão as caras e somente você poderá lidar com eles. Sem turminhas, galeras e amigos ao redor. E eu tenho é pena da decisão que você irá tomar quando esse dia chegar... 


sábado, 6 de novembro de 2021

A rainha da sofrência


Eu acordo antes das oito da manhã por causa da música que toca na casa da vizinha em frente. A mulher que canta fala de traição, diz que não aguenta mais, que não precisa passar por nada disso. E está certa a mulher que canta. E eu então me lembro da tragédia do dia anterior e de que não poderemos mais ouvir nada novo dela daqui pra frente. Cara... Isso é triste! 

Por volta das duas e quinze da tarde a música popular brasileira perdeu a cantora Marília Mendonça, a rainha da sofrência. Ela faleceu aos 26 anos, ainda uma menina cheia de vida e de ideias, por conta de um acidente aéreo em Minas Gerais, onde iria realizar um show. 

Da igreja aos vídeos no you tube (sim, aqueles vídeos em que, na maioria das vezes, você sempre pensa "não vai dar em nada" até que acontece). Dos vídeos às canções que escreveu para duplas sertanejas e o show pioneiro no Pará. Então a consagração, o fenômeno. Mas até que se tornasse a live mais assistida na pandemia, com mais de 3,5 milhões de pessoas assistindo online, muita água teve que correr por baixo dessa ponte.

Na série da Globoplay, Marília Mendonça: todos os cantos, pudemos conhecer um pouco da sua carreira, da sua vida, da correria, dos sacrifícios para estabelecer uma carreira, ainda mais num meio tão machista como é o sertanejo. E essa sempre foi a grande força da música - e do caráter - de Marília. 

Ela cantou a infidelidade dos machistas, pôs o dedo na ferida e lutou por aquilo que acreditava. Em suas canções deixava claro aos ouvintes que não veio ao mundo para ser "plano B na vida de ninguém". E certa estava ela, mulher empoderada e corajosa como poucas. 

"Saudade do meu ex", "Infiel", "De quem é a culpa?", "Eu sei de cor", "A gente não se aguenta", "Sentimento louco"... Hits que estão (e nunca sairão) da boca do povo, principalmente do público feminino. Marília era a voz dessas mulheres que não aguentam mais ficar no banco de reservas, que querem ir à luta e serem independentes. 

A reviravolta na carreira de Marília estava logo ali, na esquina, esperando por ela. A turnê internacional de As patroas, ao lado da dupla Maiara & Maraisa, chegara aos states com direito à outdoor na Times Square e tudo. E se alguém no meio artístico merecia mesmo isso tudo era ela. Uma pena!

E eu me pergunto: o que sobra para os fãs, que agora acompanham ao longo do dia as notícias sobre a investigação da tragédia? Como ela bem disse em uma de suas músicas, "todo mundo vai sofrer". E acredite: todo mundo sofreu. Mas também cantou e vai continuar cantando, porque o nome dessa moça precisa continuar sendo lembrado. 

Chego à conclusão - e vai ter muita gente me criticando, me chamando de exagerado, depois de ler isso que eu vou escrever agora - de que Marília Mendonça foi a Maysa do século XXI. Ninguém, absolutamente ninguém nos últimos anos, falou da dor e do sofrimento de uma maneira tão verdadeira, tão nítida e feroz, quanto ela. E como foi bom ouvir ela dizer aquelas palavras! 

No Brasil de hoje, cheio de misóginos, cafajestes e moralistas com seus dedos acusadores e discursos fajutos, nunca precisamos tanto de alguém como Marília. E por isso sua morte é tão sentida. 

Na ausência de palavras melhores e em meio às lágrimas que descem do meu rosto enquanto termino este singelo obituário, só me resta dizer "Fica com Deus, menina! E tenha certeza de que você era o máximo".  

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Vultos virtuais


Eu sei que soarei mais uma vez tenebroso e negativo e pessimista e todos aqueles adjetivos recorrentes que os moralistas de plantão não querem ouvir e ainda por cima fingem que não existem porque lhes é mais cômodo, mas... Está difícil ser brasileiro. Pior: está difícil ser um ser humano nesse século XXI cheio de catarses e extremismos os mais diversos. A sensação de vazio (ou niilismo) nos persegue de forma corrente e ficamos ainda mais apreensivos por não sabermos o que está por vir. Nunca a expressão "aguardem as cenas dos próximos capítulos" ficou marcada de forma tão brutal. E aguardamos temerosos. 

E em meio a tanta falta de significado, dessa ausência de chão onde pisar, é um verdadeiro colírio para os olhos e um bálsamo para alma me deparar com um monólogo teatral tão forte, tão pungente, tão verdadeiro como G.A.L.A, do sempre controverso diretor Gerald Thomas, e saber que outros como eu também estão aflitos.

Em meio a um naufrágio metafórico (o cenário da Casa Malagueta nos mostra um barco encalhado e ao fundo as chaminés de uma suposta usina nuclear), a personagem que dá título ao espetáculo - vivida de forma brilhante pela atriz Fabiana Gugli - promove seu desabafo repleto de fúria e desencanto sobre o país em que vive, principalmente em tempos de pandemia. Contudo, é preciso levar em consideração o fato de que se trata do membro de uma elite. Logo, esperem também as defesas mais estapafúrdias e equivocadas. 

Ao final da sessão, que foi exibida online no portal do Sesc no youtube, leio numa matéria da Folha de São Paulo uma alusão ao espetáculo como uma grande poesia concreta. E ao me lembrar dos livros que li desse período, principalmente dos irmãos Campos, e do quanto quebrei minha cabeça para lê-los, vejo que a declaração dada pela colunista Lenise Pinheiro está corretíssima. 

G.A.L.A é uma interessante poesia concreta sobre a dor e o desespero de uma elite nacional estúpida, cujo único mérito que teve ao longo da vida cheia de contradições foi o de arrecadar um vasto patrimônio e nada mais. E, ainda por cima, se acredita por algum motivo determinista e biológico, acima das demais camadas da sociedade por causa disso. 

A protagonista a todo momento conversa com Sancho (seu amor, comparsa, familiar, amigo, todas as opções anteriores?) e lhe impõe a culpa pelo fracasso do país, da sociedade, do mundo como até então o conhecemos. Se traveste de Dom Quixote e prefere acreditar que ela não tem nada a ver com isso. Resgata lembranças dos seus tempos áureos, os olhos brilham quando rememora os dias felizes de ostentação, em que sua classe mandava, as demais obedeciam em silêncio e nada mais. Até tenta emular um discurso sobre igualdade social, mas patina porque a classe a qual pertence nunca entendeu de fato o significado da palavra empatia (no fundo, acha até que o verbete nem deveria existir). 

E quando menciona a dependência pela empregada doméstica e a compara a outros vícios como a cocaína, a heroína, o crack, é fácil perceber - pelo menos eu entendi de cara a fina ironia - que estamos diante de um fragmento extremamente doente e ilógico da nossa sociedade que, cá entre nós, nunca foi uma nação. Longe disso...

Gala e seu interlocutor telefônico (e ela própria usa essa expressão na peça) são vultos virtuais, nada mais do que aquelas velhas amizades que abundam nas redes sociais, cada dia mais desvinculadas de qualquer semelhança com a vida real, cotidiana. São opacos, quase invisíveis, o oposto do que se possa considerar tangível ou mesmo ético. Afinal de contas, são a parte privilegiada de nossa sociedade. Esperar qualquer coisa de diferente dessa incompreensão ou dessa alienação costumeira é puro delírio daqueles que ainda pensam que a sociedade é capaz de aprender com os próprios erros. 

As referências culturais presentes - como a camisa com a estampa da atriz Marilyn Monroe, o mito fabricado por hollywood que acabou por suicidar-se e a canção dos rolling stones que resume o mundo a uma singela busca por satisfação pessoal -, aliadas à iluminação de Nicolas Caratori, nos transpõem para um mundo surreal, praticamente anárquico e repleto de dúvidas sobre o futuro que está logo ali, na esquina, prometendo novas assombrações. E eu torço ansiosamente para que elas não deem as caras!

O que fica de legado da experiência brilhante ao fim da apresentação é o gosto amargo do que viramos nesse país da pose, da posse, da eterna mania de querer ser colônia, da falta de educação, saúde e principalmente critério. Para praticamente tudo. Eu não faço a menor ideia do que esperar, mas há um lado meu que receia que, na verdade, eu já tenha esperado demais e não tenha me dado conta disso. 

Portanto, ir para onde e fazer o quê virou um grande labirinto, uma inusitada incógnita e nada mais.