Eu não sou um leitor apegado ao cânone, pois acredito que precisamos também conhecer o que está fora dele. E acreditem: há muita coisa boa no mercado literário que não é endeusada por críticos e editoras. A própria ideia de se relacionar com a literatura é um conceito singular (pelo menos, para mim). Prefiro quebrar a cara fazendo as minhas escolhas do que me decepcionar seguindo um caminho proposto pela indústria do best-seller ou um crítico de viés popular, mas tendencioso em demasia.
Contudo, é preciso admitir: quando o cânone acerta, ele acerta em cheio. Foi assim com Shakespeare, com Rimbaud, com Machado de Assis, com Cervantes e certamente é assim com Fiódor Dostoiévski, que no último dia 11 de novembro, se vivo fosse, estaria comemorando os seus 200 anos de existência.
Dostoiévski renderia uma biografia de mais de mil páginas, um estudo para uma tese de doutorado nas mais importantes instituições de ensino do mundo, e não um mísero artigo desleixado. Eu sei... Mas eu preciso - muito! - fazer essa homenagem. O autor que se tornou atemporal por seus próprios méritos e escreveu sobre essa sociedade na qual estamos afundados até o pescoço muito antes dela sequer sonhar em existir, não é um literato qualquer. Pelo contrário. É justamente do que o mercado editorial anda precisando mais do que nunca hoje e não consegue encontrar na atual geração, mais interessada em modismos e franquias descartáveis.
Fiódor Dostoiévski retratou as profundezas da alma humana com uma facilidade assustadora. Falou de compaixão, ética e empatia, para ele os temas mais relevantes e imprescindíveis na conversa de qualquer ser humano que se preze. E no auge de sua escrita, mordaz, elegante, e de uma transparência absurda, questionou o individualismo exagerado, a falta de responsabilidade do homem e propôs a beleza (não a da aparência, mas a dos sentimentos, da compaixão) como a salvação do mundo.
Pena que as gerações posteriores, na sua eterna prepotência, não entenderam nada do que ele disse.
Em obras como Crime e castigo, O idiota, Os irmãos Karamazóv, Os demônios, entre tantas outras, é possível testemunharmos uma forte teatralidade, baseada em questões e dilemas éticos. Mais do que isso: o autor traz pensamentos sobre as estruturas da sociedade, mas trazidas em forma de questionamentos. Ou seja, ele propõe no fim das contas um interessante repensar sobre a realidade, tendo em vista o quanto a sociedade do seu próprio tempo andava perdida, à deriva.
E é mais comum do que parece pegar um livro de Dostoiévski de forma equivocada e lê-lo à luz de debates entre a fé ortodoxa e o racionalismo ou sob o âmbito da luta de classes. Não, meus caros leitores! Há quem dera fosse fácil explicar o autor dessa maneira. Vocês precisarão de bem mais do que isso, acreditem!
Num artigo publicado no Jornal do Brasil exclusivamente sobre os 200 anos do autor russo o professor Leonardo Guelman, do Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF), recomenda aos leitores de primeira viagem que comecem a conhecer a obra de Dostoiévski pelo romance epistolar Gente pobre, que trata de gente simples dos cortiços de São Petersburgo, dos miseráveis que sempre estiveram presentes na obra dele (o que o pesquisador chama de "semente da humanidade").
Não saberia ao certo por onde começar a indicar a alguém um livro sequer desse mestre da narrativa. Eu iniciei minha relação com sua obra por Os irmãos Karamazóv e, confesso, que achei bastante complexo. E tenham isso em mente: não é um autor simples de ler. Mas é justamente dessa dificuldade, dessa precisão e rigor, que nasceu o meu interesse por seu trabalho. E depois que você engata, não larga mais, podem me cobrar depois aqui!
Ao final dessa resumida (mas não menos agradável) experiência permaneço com a ideia que sempre tive acerca de Dostoiévski: ele é, sem sombra de dúvidas, o Shakespeare russo. Desnudou, como pouquíssimos, o véu de hipocrisia e falso moralismo que cobre grande parte da humanidade. E fez isso de uma maneira tão simples, mas tão simples, que parece até injusto ou covarde com nós, leitores. Mas acreditem: não é. É só talento mesmo.
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