quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Vultos virtuais


Eu sei que soarei mais uma vez tenebroso e negativo e pessimista e todos aqueles adjetivos recorrentes que os moralistas de plantão não querem ouvir e ainda por cima fingem que não existem porque lhes é mais cômodo, mas... Está difícil ser brasileiro. Pior: está difícil ser um ser humano nesse século XXI cheio de catarses e extremismos os mais diversos. A sensação de vazio (ou niilismo) nos persegue de forma corrente e ficamos ainda mais apreensivos por não sabermos o que está por vir. Nunca a expressão "aguardem as cenas dos próximos capítulos" ficou marcada de forma tão brutal. E aguardamos temerosos. 

E em meio a tanta falta de significado, dessa ausência de chão onde pisar, é um verdadeiro colírio para os olhos e um bálsamo para alma me deparar com um monólogo teatral tão forte, tão pungente, tão verdadeiro como G.A.L.A, do sempre controverso diretor Gerald Thomas, e saber que outros como eu também estão aflitos.

Em meio a um naufrágio metafórico (o cenário da Casa Malagueta nos mostra um barco encalhado e ao fundo as chaminés de uma suposta usina nuclear), a personagem que dá título ao espetáculo - vivida de forma brilhante pela atriz Fabiana Gugli - promove seu desabafo repleto de fúria e desencanto sobre o país em que vive, principalmente em tempos de pandemia. Contudo, é preciso levar em consideração o fato de que se trata do membro de uma elite. Logo, esperem também as defesas mais estapafúrdias e equivocadas. 

Ao final da sessão, que foi exibida online no portal do Sesc no youtube, leio numa matéria da Folha de São Paulo uma alusão ao espetáculo como uma grande poesia concreta. E ao me lembrar dos livros que li desse período, principalmente dos irmãos Campos, e do quanto quebrei minha cabeça para lê-los, vejo que a declaração dada pela colunista Lenise Pinheiro está corretíssima. 

G.A.L.A é uma interessante poesia concreta sobre a dor e o desespero de uma elite nacional estúpida, cujo único mérito que teve ao longo da vida cheia de contradições foi o de arrecadar um vasto patrimônio e nada mais. E, ainda por cima, se acredita por algum motivo determinista e biológico, acima das demais camadas da sociedade por causa disso. 

A protagonista a todo momento conversa com Sancho (seu amor, comparsa, familiar, amigo, todas as opções anteriores?) e lhe impõe a culpa pelo fracasso do país, da sociedade, do mundo como até então o conhecemos. Se traveste de Dom Quixote e prefere acreditar que ela não tem nada a ver com isso. Resgata lembranças dos seus tempos áureos, os olhos brilham quando rememora os dias felizes de ostentação, em que sua classe mandava, as demais obedeciam em silêncio e nada mais. Até tenta emular um discurso sobre igualdade social, mas patina porque a classe a qual pertence nunca entendeu de fato o significado da palavra empatia (no fundo, acha até que o verbete nem deveria existir). 

E quando menciona a dependência pela empregada doméstica e a compara a outros vícios como a cocaína, a heroína, o crack, é fácil perceber - pelo menos eu entendi de cara a fina ironia - que estamos diante de um fragmento extremamente doente e ilógico da nossa sociedade que, cá entre nós, nunca foi uma nação. Longe disso...

Gala e seu interlocutor telefônico (e ela própria usa essa expressão na peça) são vultos virtuais, nada mais do que aquelas velhas amizades que abundam nas redes sociais, cada dia mais desvinculadas de qualquer semelhança com a vida real, cotidiana. São opacos, quase invisíveis, o oposto do que se possa considerar tangível ou mesmo ético. Afinal de contas, são a parte privilegiada de nossa sociedade. Esperar qualquer coisa de diferente dessa incompreensão ou dessa alienação costumeira é puro delírio daqueles que ainda pensam que a sociedade é capaz de aprender com os próprios erros. 

As referências culturais presentes - como a camisa com a estampa da atriz Marilyn Monroe, o mito fabricado por hollywood que acabou por suicidar-se e a canção dos rolling stones que resume o mundo a uma singela busca por satisfação pessoal -, aliadas à iluminação de Nicolas Caratori, nos transpõem para um mundo surreal, praticamente anárquico e repleto de dúvidas sobre o futuro que está logo ali, na esquina, prometendo novas assombrações. E eu torço ansiosamente para que elas não deem as caras!

O que fica de legado da experiência brilhante ao fim da apresentação é o gosto amargo do que viramos nesse país da pose, da posse, da eterna mania de querer ser colônia, da falta de educação, saúde e principalmente critério. Para praticamente tudo. Eu não faço a menor ideia do que esperar, mas há um lado meu que receia que, na verdade, eu já tenha esperado demais e não tenha me dado conta disso. 

Portanto, ir para onde e fazer o quê virou um grande labirinto, uma inusitada incógnita e nada mais. 


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