sábado, 31 de outubro de 2020

Para sempre Bond, James Bond


O meu pai dizia que, depois de John Wayne e Clint Eastwood, ele era o maior astro que o cinema hollywoodiano já teve. E muito por causa dessa declaração eu corri atrás durante anos - desde os tempos de VHS e das vídeo locadoras de bairro -, procurando por seus filmes, mesmo os mais antigos, em preto-e-branco. E meu pai estava absolutamente certo. O cara era uma lenda, insubstituível! 

Dito isto, como lidar com o fato de que o cinema americano (e a sétima arte mundial) perderam o ator Sean Connery, que faleceu hoje, dormindo, aos 90 anos de idade? Não, meus caros leitores, não há palavras suficientes que expliquem essa perda. 

Connery se consagrou de forma definitiva por um dos personagens mais famosos da história de hollywood: o agente da Scotland Yard Bond, James Bond. Encarnou o agente britânico por sete vezes (até hoje o que mais interpretou o personagem), durante os anos de 1962 e 1983. E desde já confesso minha predileção por 007 contra Goldfinger, um clássico eterno... Contudo, eu vou mandar vocês verem (ou reverem) todos. E isso é uma ordem. 

Entretanto, iludem-se ou não conhecem de fato sua filmografia aqueles que o resumem apenas a isto. Pelo contrário. Sean foi um artista eclético, versátil, capaz de transitar de Shakespeare ao universo das adaptações de histórias em quadrinhos com o mesmo impacto. Não existia para ele "personagens menores". 

O golpe de John Anderson (filme de Sidney Lumet que deveria ser redescoberto pelas novas gerações); Zardoz (ficção científica alucinógena do diretor John Boorman); O homem que queria ser rei (de John Huston); Robin e Marian (onde entrega um Robin hood envelhecido ao lado de Audrey Hepburn para o diretor Richard Lester); Outland: comando titânico; o imortal Ramirez de Highlander: o guerreiro imortal; o monge detetive Baskerville de O nome da rosa; e até mesmo na pele do pai de Indiana Jones, clássico de Spielberg. 

Todas essas produções - e muitas outras - tiveram a ilustre presença e talento de Sir Sean Connery (sim, e ainda por cima ele foi reconhecido pela realeza britânica). 

Adendo importantíssimo: a voz é um capítulo fundamental na carreira de Connery. Considero-a, aliás, uma das melhores que eu ouvi no meio até hoje. Quem quiser entender melhor do que eu estou falando procure por Coração de dragão, de Rob Cohen, no qual dá voz à Draco (eu fui ao cinema, na época, só para ouvir a parte dele!). 

De seus últimos longas antes da aposentadoria, meus preferidos são Justa Causa, de Arne Glimcher; A rocha, de Michael Bay; Lancelot: o primeiro cavaleiro, de Jerry Zucker (onde encarna o Rei Arthur) e o extraordinário Encontrando Forrester, de Gus Van Sant, para mim seu último grande filme. 

E eu sei que vocês vão perguntar "mas você não esqueceu do...?". Claro que não. Como esquecer do indefectível Os intocáveis, de Brian de Palma, pelo qual o ator ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante em 1998, pela interpretação do detetive Jimmy Malone? Eu simplesmente achei que ele merecia um parágrafo só para ele. 

Com a morte de Connery o cinema não perde apenas seu mais famoso e icônico James Bond. Ele perde também sua elegância, suas boas escolhas e certamente seu carisma (algo que, nos últimos anos, eu venho sentindo falta na indústria cinematográfica). Se por um lado a sétima arte fica mais empobrecida a partir de hoje, ao menos temos o consolo de poder rever toda a sua obra, de preferência mais de uma vez. E acreditem: para quem nunca deu uma chance a esse mestre, não sabem o que estão perdendo!

Faltou dizer alguma coisa? Faltou. Fica com Deus e o meu muito obrigado!


sexta-feira, 30 de outubro de 2020

No confessionário


Durante a graduação na faculdade, uma década atrás, estudei na mesma sala com um rapaz adepto dos movimentos LGBTQIA e ele escrevia sua monografia de final de curso acerca de figuras públicas deste mesmo segmento. Mais do que isso: ele queria também saber a opinião de pessoas heterossexuais sobre esses movimentos e certa vez perguntou-me o que eu pensava a respeito do assunto. E eu me lembro exatamente do que lhe respondi: 

"Eu espero que essas pessoas tenham lucidez e muita paciência para lidar com o que ainda vêm por aí, de encontro a elas e de forma furiosa. Vejo o país se tornando cada vez mais conservador e covarde nos últimos anos e quem não se adequar ao sistema certamente será caçado por esses moralistas. Se eles (os homossexuais) não tomarem cuidado ou não souberem lidar com a situação, podem vir a se tornar os judeus do século XXI". 

A reação do rapaz foi de apreensão, mas ao mesmo tempo de entendimento. Ele próprio já percebia o retrocesso do país e vinha tomando cuidado com o que falava em certos segmentos. 

Pois é... Quem diria que eu me pegaria pensando nisso tudo de novo ao assistir a versão da Netflix para Os rapazes da banda, remake do diretor Joe Mantello para um clássico dirigido cinco décadas atrás pelo extraordinário William Friedkin!

Inspirado na peça homônima de Mart Crowley e construído de forma visível para transparecer a ideia de um teatro filmado, Os rapazes da banda conta a história de um grupo de amigos homossexuais que se reúne num apartamento para comemorar uma festa de aniversário quando se deparam com a chegada de um visitante inusitado que vira o clima do lugar de ponta-a-cabeça. 

Michael (Jim Parson, o eterno Sheldon de Big Bang Theory), Harold (Zachary Quinto), Donald (Matt Bomer), Larry (Andrew Rannelis), Cowboy (Charlie Carver), Emory (Robin de Jesus), Bernard (Michael Benjamim Washington) e Hank (Tuc Watkins) se reencontram para relembrar histórias, dividir experiências e festejar ao som de boa música e muita bebida.

Contudo, todo esse planejamento ruirá com a chegada de Alan (Brian Hutchison), um antigo colega de faculdade de Michael que ele sempre considerou gay, "mas nunca teve coragem de se assumir" e que agora vive uma crise no casamento. Alan pergunta se pode dar uma passadinha rápida na festa para falar com Michael e ele topa. Pronto. Está iniciado o embrião do caos.

Michael pede que os demais convidados não fiquem tão eufóricos ou desmunhequem em excesso, pois o amigo pode não entender tamanho liberalismo. Entretanto, a ruptura e as divergências surgem, o álcool corre solto e Michael decide propor um jogo sórdido: cada uma das pessoas na festa deve ligar para alguém que já amou na vida e fazer uma declaração aberta. 

Nesse momento a narrativa proposta por Crowley ganha um tom de confessionário e o que vemos na tela é o lado B do ser humano, aquele que ele sempre prefere esconder do convívio com os demais. Cicatrizes são expostas, arrependimentos são evidenciados e uma enorme lacuna onde despeito, rivalidade e ressentimento ditam as regras de forma cruel e ambígua aparece. 

Ponto vital a ser vislumbrado pelos espectadores: prestem atenção nos poucos diálogos e nos muitos silêncios incômodos envolvendo Michael e Harold. Para mim, de todo o grupo são os dois agentes de maior rivalidade presentes na casa. E detalhe: houve um momento de tensão antecipatória providencial para que eu percebesse que o desfecho daquela situação seria catastrófico (mas não menos avassalador, pelo menos para os fãs de bom cinema). 

Mantello e, logicamente, Crowley criam juntos um clima claustrofóbico, quase um oráculo onde sentimentos afloram quando mais deveriam ser represados. Sim, pois há desabafos na vida que ficariam melhor engavetados (principalmente quando a vida decidiu seguir um caminho diferente daquele que planejávamos a priori). 

Moral da história (se é possível acreditar numa moral nesse caso): os seres humanos estão sempre à procura de suas piores escolhas, quando o silêncio deveria ser visto com lucidez, e simplesmente não conseguem se desapegar do passado. Não importa o quanto tentem. 

E voltando ao parágrafo inicial: imaginem toda essa repressão sendo posta para fora em tempos de fake news, sensacionalismo e uma sociedade que busca a fama e o holofote a qualquer custo. Lógico que vai dar merda. Em algum momento, vai dar merda. Só não sabemos quando nem quanto. 

Mas não dá para antecipar o tamanho da tragédia. Nós (ainda) vamos ter de esperar o epílogo de todo esse ressentimento...


domingo, 25 de outubro de 2020

Desaprendemos a viver


Eu pensei que a tecnologia, de uma forma geral, havia sido inventada para facilitar a vida das pessoas, quebrar barreiras e preconceitos, expandir horizontes, equivaler a sociedade como um todo. Infelizmente, mais uma vez estava enganado. Fui ingênuo, confesso. No final das contas o que se vê é que trincheiras foram ampliadas, visões de mundo contraditórias e gananciosas foram transformadas em redomas, até mesmo em bolhas ideológicas. E o resultado final dessa equação torpe é o exacerbamento doentio e artificial do que chamamos de vida online (como se vida isso, de fato, fosse!). 

E o extraordinário diretor de cinema David Fincher nos avisou de tudo isso não faz muito tempo e não demos a mínima bola. Pior: uma grande parte da população mundial debochou, escarneceu, desdenhou, relativizou a questão...

Dito isto, vamos aos fatos que realmente importam.

Leio uma matéria no jornal O Globo que me informa que o longa-metragem de David Fincher, A rede social, completou uma década de existência e se tornou um ato premonitório da vida que estamos levando hoje em dia. E logo de cara eu penso: "cara, isso é triste! pacas!". Contudo, embora a premissa da matéria tenha seu caráter fúnebre e amargo, ela é exata em suas intenções. Nós (leia-se: a sociedade) realmente desaprendemos a viver. 

O filme se debruça sobre a saga do quarteto Mark Zukerberg (Jesse Eisenberg, ótimo!), os irmãos Cameron e Tyler Winklevoss (Armie Hammer) e do brasileiro Eduardo Saverin (Andrew Garfield) para criar o facebook, hoje tão popularizado, milionário e alvo de inúmeras polêmicas, principalmente envolvendo questões de privacidade e ética. E desde já é preciso adiantar que eles tiveram a ajuda "luxuosa" do também midiático - e inescrupuloso - Sean Parker (Justin Timberlake), criador do Napster, polêmico serviço de compartilhamento de música que deu o que falar anos atrás. Logo, dá para imaginar por alto o legado dessa parceria incomum. 

Esqueçam as rivalidades babacas óbvias e as discussões por conta de questões frívolas como "nós estamos namorando, mas você não mudou o seu status de solteiro do perfil" ou "eu pensei que nós fôssemos sócios igualitários nessa parada aqui!", a raiz do problema é ainda mais ampla. Trata-se de uma produção visionária sobre o fim de uma era. No caso, a era dos relacionamentos interpessoais. 

E se acham que eu estou exagerando deem uma boa olhada ao redor nas festas de 15 anos e casamentos e formaturas ou qualquer outra celebração e percebam a quantidade de pessoas que não se comunicam mais. Todos preferem permanecer antenados em suas redes sociais, grudados a seus iphones de última geração. Nenhuma conversa ao vivo e a cores parece tão interessante quanto o mundo mágico do facebook (detalhe: ainda não existiam o instagram e o twitter, pelo menos com a força que eles têm hoje!). 

Em outras palavras: robotizamos as relações humanas e nos orgulhamos disso, chamamos de um "passo natural rumo ao futuro". Resta saber que futuro é esse.  

Na época de seu lançamento nos cinemas muitos críticos foram adversos à ideia da película ter sido indicada à 8 oscars (e venceu três na ocasião: roteiro adaptado, edição e canção original). Diziam muitos deles que a história não estava à altura dos Academy Awards. Que ela seria facilmente esquecida com o passar dos anos, pois tratava-se de uma temática vazia, quase fútil. Ledo engano, meus caros! O tema não somente se atualizou, se expandiu, como expôs nossa própria fragilidade para lidar com  a situação. 

Tornamo-nos avatares de nós mesmos, reles engrenagens de uma sociedade cada vez mais mecânica e repetitiva em seus atos. Sofisticamos o personagem de Charles Chaplin no clássico eterno Tempos modernos. E o problema agora não é mais a fábrica opressora e sim o fato de que não queremos mais o convívio humano da maneira como ele sempre existiu. Agora precisamos de uma interface, um computador, um reles aparelho entre nós. São eles que ditam como devemos nos portar, sentir, falar. Como disse antes: "cara, isso é triste!".

Não possuo respostas positivas ou soluções a longo prazo, mas espero sinceramente que consigamos virar essa página opaca para trilhar um novo caminho, um caminho mais honesto e coerente do que esse festival de solitários no qual estamos imersos e sequer nos damos conta. Pois, do contrário, a Alegoria da Caverna, do filósofo Platão, voltará numa versão ainda pior do que a original. E caso isso aconteça, o elo perdido que tanto deveríamos evitar ditará as cartas do jogo para todo o sempre.  

P.S (na verdade, um pedido): pelo amor de Deus, não deixemos isso acontecer!!!  


quinta-feira, 22 de outubro de 2020

O alienígena faminto


Gonzaguinha, um de nossos maiores cantores e compositores de todos os tempos, na canção o que é, o que é?, diz em alto e bom som que ficava "com a pureza da resposta das crianças" e se orgulhava disso. Aliás, bem fez ele. E pode-se dizer o mesmo do pintor, escultor e ceramista espanhol Joan Miró. Ele adorava os trabalhos artísticos desenvolvidos por crianças, logo completamente distantes de qualquer convicção ou esmero acadêmico. Para ele, às vezes, esse rigor estético todo só atrapalhava. 

E muito por conta disso fez de sua obra artística uma grande brincadeira, quase um delírio infantil. Fugiu sempre que pode do formalismo e desse mundo chato, cheio de regras e imposições (prova viva disso é que foi um ferrenho opositor e crítico do franquismo e do fascismo em geral). Miró era lúdico em todos os sentidos e fico às vezes me perguntando o que achavam disso seus professores quando ele estudou na Escola de Belas Artes de Barcelona e na Academia de Gali. Acredito que tenha sido visto, muitas vezes, como incompreendido. 

Por isso, gostei dele logo de cara. Era um outsider nato. 

Seu trabalho está repleto de influências as mais diversas, viajando dos movimentos fovista e dadaísta até a filosofia zen (e o conjunto de sua obra transparece muito desse clima, dessa sensação de pureza e silêncio). Contudo, ele não foi só isso. Havia também fúria em suas telas e esculturas e um senso crítico, de denúncia, sem igual. Prova viva disso é o curioso O carnaval do arlequim, pintura a óleo feita por ele entre 1924 e 1925.

Se é verdade para 10 entre 10 críticos de arte e marchands que suas telas transportam o público para mundos alienígenas, repletos de criaturas as mais bizarras e, por vezes, nonsenses, O carnaval do Arlequim é o melhor exemplo disso. E essa tela representa a grande virada na carreira do artista, que só começou a despontar de fato quando saiu de sua Espanha natal e partiu para a França, onde conheceu André Breton e Pablo Picasso, de quem se tornou parceiro e amigo. 

Dentro de seu projeto estético de brincar com a ideia do faz-de-conta, aqui Miró abusa de cores e sentimentos lúdicos. Sempre preferia as cores primárias, além do preto e do branco. Sempre pautava suas criações pelo uso de formas, figuras geométricas, imaginárias e símbolos próprios formados por manchas e por linhas carregadas. Era quase um artista ideogramático. E com Carnaval realiza um de seus projetos mais inusitados.   

Há, logicamente, dentro do quarto retratado (seria o quarto de uma criança, como tantas que ele observou criando? Provavelmente!) elementos do cotidiano, como a mesa e a janela, porém é preciso da parte dos observadores deter os olhos de forma mais demorada sobre as criaturas e objetos disformes que compõem a tela. São inúmeros insetos que brincam, dançam, parecem gritar, querendo chamar a atenção do público. As imagens que remetem ao surrealismo (do qual Miró é um de seus maiores expoentes) são nada óbvias e exigem atenção - e reflexão - de quem encara o desafio de tentar entendê-las. 

O arlequim, protagonista desta façanha, mostra seu rosto redondo e bigodes imensos e ridículos (sinto uma leve referência à Salvador Dali ou estou, como sempre, enxergando demais?) e tem o olhar triste e nervoso, captando um pouco da essência do próprio autor, que vinha de um período difícil em sua terra. 

Detalhe imprescindível: todas as criaturas pintadas na tela remetem a uma alucinação vivida pelo pintor, por causa do período de extrema fome pelo qual ele passava. E esse alienígena faminto mescla figuras disformes com objetos sorridentes e instrumentos musicais que praticamente se tocam sozinho. Em outras palavras: é a diluição do tempo, que ganha outros contornos dentro da mente controversa, mas não menos genial, deste grande artista. 

E caso tenha ficado faltando algum detalhe ou análise a mais (e acreditem: no mundo das artes plásticas, sempre ficará faltando e isso é o mais interessante de estudá-las; pois elas sempre serão como livros abertos à procura de novas opiniões) recomendo aos leitores deste mísero artigo que procurem sobre o pintor - cuja vida é por demais interessante e jovial - na internet ou, caso tenham grana sobrando, deem uma passadinha rápida na Albright-Knox Art Gallery, em Nova Iorque, onde a tela se encontra exposta atualmente. E tirem suas próprias conclusões. 

No mais, fica aqui uma dica amadora: procurem conhecer Miró de mente aberta. Como disse antes em parágrafo anterior, ele não se encaixa no formalismo estético das galerias e marchands. É um espírito livre. E como todo espírito livre que se preze precisa ser analisado com calma e sabedoria. 

P.S (na verdade, apenas um complemento literário): para saber ainda mais sobre o gênio de Joan Miró, procurem pelo extraordinário livro Joan Miro: I Work Like a Gardener (Interview with Joan Miro on his creative), por Joan Miró e Yvon Taillandier. O resto é com vocês!  


domingo, 18 de outubro de 2020

Nunca é pacífico


Sejam os caras-pintadas em pleno Impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello, seja o movimento norte-americano Black lives matter que tomou as ruas dos EUA nos últimos meses, a minha opinião continua a mesma: não existem manifestações pacíficas. Quem quiser que se engane com isso, com essa definição. Parece-me (na verdade sempre me pareceu) um enorme contrassenso. É como a ideia de guerra santa. Como posso eu acreditar numa guerra feita em nome de Deus? É preciso ser muito tolo - ou fanático ao extremo - para acreditar nisso. E acreditem: o mundo anda cheio de tolos e fanáticos. 

Entretanto, elas - as manifestações - continuam acontecendo ao redor do mundo de maneira, claro, nada pacíficas. E pior: gerando tragédias e injustiças de formas as mais assustadoras possíveis. E haja bala de borracha, coquetel molotov, gás lacrimogêneo e vocês sabem o que mais, para dar conta de toda essa guerra disfarçada de denúncia e busca por direitos civis. 

Dentre as mais famosas já ocorridas os estudantes de história e interessados em conhecimento cultural sempre se lembrarão da Convenção de 1968 em Chicago. E ainda existem aqueles que preferirão se lembrar do julgamento que aquela manifestação  causou, chamado por alguns de o "Oscar dos julgamentos", tamanho o impacto midiático que teve. 

Porém, antes é preciso delimitar um rápido registro histórico para leigos no assunto: era uma América assolada pela Guerra do Vietnã e as mentiras contadas pela Casa Branca ao povo, Martin Luther King e Bobby Kennedy haviam sido assassinados e os movimentos pelos direitos civis inundavam as ruas a todo momento. Logo, como esperar um desfecho agradável para qualquer conflito que acontecesse naqueles dias?

O resultado não poderia ser outro e você pode conferir um pouco dele no interessantíssimo Os 7 de Chicago, do diretor Aaron Sorkin, que ficou famoso em hollywood por seu roteiro de A rede social, de David Fincher. 

O filme entra de sola no processo que se seguiu a tal manifestação e que, na visão das autoridades tendenciosas, tinham como culpado sete homens: Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen, extraordinário!), Tom Hayden (Eddie Redmayne), Jerry Rubin (Jeremy Strong), David Dellinger (John Carroll Lynch), Rennie Davis (Alex Sharp), Lee Weiner (Noah Robbins) e John Froines (Danny Flaherty). E cabe aqui um adendo importante: ainda tentaram envolver na questão o líder do partido dos Panteras Negras, Bobby Seale (Yahya Abdul-Mateen II). Todos eles eram vistos pelo governo como vagabundos e párias da sociedade, logo as vítimas ideais. 

E a primeira barreira que eles terão de encarar logo de cara é o preconceituoso e pedante Juiz Julius Hoffman (Frank Langella, em atuação digna de Oscar). Vê-se, logo no primeiro instante do julgamento, que o juiz se comporta em cena como se os réus já fossem culpados simplesmente por pertencerem a uma determinada classe social dentro do país. Mas acreditem: a coisa piora e muito!

Entre os dois advogados que se digladiam dia-a-dia, semanas, meses a fio, o jovem promotor Richard Schultz (Joseph Gordon-Levitt), que a todo momento parece meio em dúvida sobre a lisura do processo, mas precisa seguir o protocolo, e o advogado de defesa William Kunstler (Mark Rylance), o que percebemos é que o verdadeiro motivo daquele julgamento encontra-se, de fato, fora do tribunal. Como o próprio Abbie Hoffman diz volta e meia: trata-se de um julgamento político. Eles, o Estado, precisam encontrar culpados que justifiquem toda aquela baderna. E eles, obviamente, nunca serão a polícia de Chicago, que incitou a violência sob ordens do prefeito Richard J. Daley (cabe aqui comentar, aliás, o único deslize do projeto: a ausência de um ator que interpretasse o prefeito).

E como não podia deixar de ser em todo julgamento dessa magnitude, provas são inventadas e ocultadas, testemunhas vitais para o desfecho do caso são impedidas de comparecer ou falar (e, dependendo do caso, têm seus testemunhos retirados dos autos do processo por uma simples deliberação arbitrária do juiz), membros do júri são ameaçados e substituídos por outros nada idôneos, agentes do FBI infiltrados na manifestação comparecem para dar suas visões contraditórias do que aconteceu, etc etc e hajam etc... Pois não se esqueçam: todo processo jurídico tem o seu quê de teatro. E um teatro profundamente sensacionalista. 

E com o desfecho do longa - que é arrasador! - fica clara e ratificada a minha opinião proferida no parágrafo inicial: nada é pacífico, principalmente quando há a presença do poder constituído do Estado na questão. Não passamos, no final das contas, de reles marionetes que precisam atender às demandas das chamadas "autoridades". Se nos comportamos bem, somos modelos de sociedade; se questionamos o status quo, somos inimigos de alta periculosidade e precisamos ser trancafiados em celas. E não se esqueçam: isso aconteceu em 1968. Mais 2020 do que isso, impossível!

E ainda tem gente por aqui, em pleno século XXI das fake news e do fascismo nas ruas, que acredita em passeata, greve, petição online, abaixo-assinado e chegar a um acordo... 


quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Terra alucinógena


Devo realmente estar ficando velho, pois não me lembro com exatidão da última festa louca da qual tenha participado. Provavelmente deve ter sido lá pelos idos de 1997, 1998... Por aí. E há que se levar em consideração que o conceito de loucura vigente naquele tempo era completamente diferente do que se vê hoje em dia nas atuais festas. No meu tempo de adolescente a premissa básica era azarar as gatas, não havia esse papo de ficantes rotativos e amizade colorida como rola atualmente. Chamavam de namoro quem namorava. Hoje não sei mais como funciona. 

E talvez por isso - por ter percebido essa mudança de comportamento das pessoas - eu tenha preferido, com o passar dos anos, a companhia dos lugares fechados, cinemas, teatros, salas de exposição, casas de show, fóruns de debate e, de preferência, com um público espectador saudável (e o que eu chamo de um "público saudável" é uma plateia que não queria simplesmente histeria, caos, tumulto, que saiba aproveitar o momento, o show, a apresentação, o evento ou como você quiser definir o motivo para sair de casa num final de semana).

Por esse motivo, foi uma grata (e estarrecedora) surpresa, se é que dá pra juntar essas duas instâncias numa mesma frase, ler Festa Infinita - o entorpecente mundo das raves, do jornalista Tomás Chiaverini, em que realiza uma apuração muito bem cuidada do perverso e abissal mundo das festas ao ar livre. 

"Raves? Que porcaria é essa?", perguntou uma tia minha, senhora lúcida de seus quase 80 anos, que estava presente no meu quarto no momento em que buscava informações para montar esse texto. Eu poderia, de forma curta e grossa, resumir a expressão nesses termos: são festas intermináveis (pelo menos, assim desejaria que fossem a maioria de seus frequentadores) regadas a muito álcool, sexo, drogas as mais variadas e muita música eletrônica. 

Muita gente, após esse meu comentário infame, iria certamente ao êxtase, bradando seus "Yeah", "Uhuuuu", "Falô", "É isso aí" e outros dialetos e gírias tribais contemporâneas, porém acabaria eu mesmo por admitir que minha interpretação é um tanto inexata. E por quê? Simples: porque não existe uma interpretação definitiva para esses megaeventos. Eles simplesmente existem. As pessoas amam participar deles. E ponto.

Só para ter uma breve noção do enlouquecimento que a mera referência a essa "festa" gera, a minha primeira reação ao contato com o verbete Rave no dicionário (Da língua portuguesa? Fiquei na dúvida agora), verbete esse que o próprio autor faz questão de trazer logo no início do livro, já é, por si só, impactante em demasia. 

Ver a palavra associada a definições tais como "delírio", "acesso de cólera", "fúria", "proferir palavras incoerentes", "ser louco", "querer algo a todo custo", entre outros impropérios, não é, definitivamente, um quadro nada positivo desse espetáculo, como bem diria minha saudosa avó que está no céu, "de horrores". Contudo, é preciso assumir logo de cara que as raves são comemorações para poucos, digamos, uma classe selecionada a dedo para participar de uma experiência transcendental (não sei porque nesse momento veio-me à mente a apresentação do Jimi Hendrix Experience no lendário Festival Monterey Pop, com o maior guitarrista de todos os tempos pondo em chamas sua Fender Stratocaster diabólica ao som dos uivos e gemidos de uma plateia ensandecida. Será isso mera coincidência? Creio que não...).

Poucos, eu disse mais acima? Que inocência a minha! Eles, alucinadamente, hiperlotam sítios, praias, descampados, numa cerimônia que dura horas, dias, semanas, sabe-se lá Deus se não meses.

Chiaverini, exímio investigador, que já havia mostrado toda a sua malícia regada a litros de óleo de peroba no anterior - e excelente! - Cama de Cimento, sobre o dia-a-dia árido dos sem-teto que vivem em São Paulo, fuça os meandros desse universo dark onde convivem de perto música techno em alto volume (gênero musical que eu mesmo só fui conhecer de maneira mais aprofundada a pouco tempo, após me emprestarem alguns CDs do Moby e do Fat Boy Slim) e GHB (ou anfetamina, o que for mais fácil de conseguir). 

E pra quem não sabe do que se trata, aconselho buscar mais informações a respeito, principalmente se você é um pai de família preocupado com a criação de sua prole e/ou pessoas liberais, algumas seminuas outras escrachadas, ditam a tônica dessa badalação. Depoimentos que de tão verídicos parecem absurdos, declarações bombásticas, confissões as mais desagradáveis - principalmente envolvendo relações sexuais -, tudo pontuado por uma narrativa que transita de forma exuberante entre o humor ácido e a denúncia feroz.

Relutei, confesso, bastante tempo antes de ler essa obra-prima do jornalísmo investigativo que estava dando sopa numa banca de livros usados numa feira ano passado. E hoje me arrependo de não tê-la lido antes. É um mal mais do que necessário para leitores de estômago forte e cabeça aberta. 

Festa Infinita é praticamente uma prestação de serviços pública travestida de reportagem, mostrando de forma direta e sem aliviar a barra de ninguém, por onde andam nossos irmãos e irmãs mais novas, sobrinhos, filhos, netos, bisnetos e quantas outras gerações mais houver. Ao término da última página lida, fiquei sentado no sofá da sala de estar ainda um tempo, digerindo o que acabara de ler (o que assombrara o meu mundo pacífico de maneira tão detalhista e cruel), pensando se ainda existe lugar saudável para adolescência no mundo de hoje e, caso a resposta a minha pergunta seja negativa, o que é isso que tomou o seu lugar nos últimos anos. 

Leitura obrigatória para quem deseja, pelo menos, entender um pouco desse mundo caótico, capitalista, vulgar (e chamado de alegre por alguns) em que vivemos atualmente. 


domingo, 11 de outubro de 2020

Uma nova cartilha para os filmes de terror


Uma semana antes antes de assistir pela primeira vez O Iluminado, épico sobrenatural do diretor Stanley Kubrick, em VHS (sim, eu sei... Faz tempo isso!) um colega que morava na mesma rua que eu me emprestou o exemplar que tinha do romance homônimo, escrito por Stephen King. E eu praticamente surtei diante daquelas páginas. Não era a primeira obra de King que eu lia, mas certamente aquela que me tornou depois fanático pelo autor. Moral da história: nunca mais parei de acompanhar o trabalho dele. 

Termino de ler a á última página do romance, corro para a vídeo locadora e alugo a adaptação de Kubrick. E após quase duas horas e meia de puro estilo, glamour e técnica cinematográfica, penso comigo: "esse cara é foda". Porém, eu não sabia mais ao certo se o cara que era foda tratava-se de King, Kubrick ou Jack Nicholson (que interpreta o protagonista). No final das contas, e passados mais de 25 anos, chego à conclusão de que os três representavam um mesmo núcleo. E a minha vida como cinéfilo mudaria depois daquele dia para todo o sempre. 

Pois bem: O Iluminado, obra seminal do gênero terror no cinema americano, completa quatro décadas sem perder um milímetro de sua relevância e impacto no mercado cinematográfico. Mais: ainda é idolatrada - e, de certa maneira, copiada em alguns aspectos - por gerações e gerações de cineastas a procura de prestígio e renome. E isso acreditem! não é pouco. Longe disso...

A saga da família Torrance, cujo patriarca Jack (Nicholson, simplesmente brilhante), é contratado para trabalhar como zelador no Hotel Overlook durante o período de inverno, quando o estabelecimento permanece fechado, é das experiências mais surreais e também inusitadas da história de hollywood. 

E quando uso a palavra inusitada para me referir ao projeto estou falando das escolhas de direção e de narrativa feitas por Kubrick. O Iluminado simplesmente não se encaixa, em nenhum momento, em qualquer tipo de padrão proposto para o gênero até então. E esse é justamente o seu maior legado para a posteridade. 

Não esperem por um clima gore, cheio de cenas violentas e banhadas a sangue na linha de Quadrilha de sádicos, de Wes Craven, realizado três anos antes. Muito menos o artifício mais do que repetitivo do jumpscare (que, aliás, eu sempre detestei e o considero um recurso típico dos "sem originalidade" alguma, por isso precisam assustar o público o tempo todo). Nada disso. Aqui o sangue quando jorra da tela busca um reação mais emocional da plateia e os tais "sustinhos" rápidos dão lugar a silêncios incômodos e provocadores. Algo bem mais apropriado ao estilo do diretor de clássicos como Laranja mecânica e 2001: uma odisseia no espaço.

Detalhe também imprescindível: o longa é todo rodado em sets onde a claridade dita o tom da trama. Nada de escuridão aqui, permitindo que personagens furtivos apareçam escondidos atrás de alguma porta. Quando vemos, por exemplo, as irmãs Grady que assombram Danny, filho de Jack, eles são mostradas em toda a sua exuberância visual e não como meros espectros. E há todo um clima de antecipação por trás daquele silêncio avassalador e daquelas luzes excessivas, como se a família soubesse de antemão quando a tragédia irá de fato acontecer.

Em suma, o longa de Kubrick propôs, à sua maneira, uma nova cartilha para os filmes de terror. Cartilha essa seguida no cinema contemporâneo por longas recentes como Um lugar silencioso e Hereditário, o que prova o quanto suas ideias não envelheceram até hoje, tamanha a ousadia com a qual foram realizadas na época.  

Reza a lenda urbana sobre o projeto que Stephen King não apreciou tanto assim a adaptação de Kubrick, que o incomodaram as chamadas "liberdades criativas" propostas pelo diretor. Contudo, acho-as bem vindas no sentido de relerem um clássico sem a necessidade de realizar uma mera cópia do livro. E é inegável - pelo menos para mim - que o trabalho de Kubrick foi digno de um mestre da sétima arte. Acredito que pouquíssimos teriam feito um trabalho melhor. E nesse sentido, vejam o longa-metragem Doutor Sono, de Mike Flanagan, que se propõe em alguns momentos uma "continuação" para este projeto. O desnível, meus caros leitores, é visível e gigantesco. 

E o que eu poderia dizer mais, além do que foi dito? Que o filme recebeu críticas mistas quando foi lançado nos cinemas? Até parece que isso afetou sua longevidade e proposta narrativa! Que ele merecia pelo menos um Oscar, mas não levou? Isso qualquer fã de terror sabe. Que existem teorias e mais teorias da conspiração sobre o Hotel Overlook e há inclusive um documentário de nome Room 237: O labirinto de Kubrick sobre isso? Procure o IMDb e saiba mais sobre o assunto. Honestamente... Chega de desculpas. 

O que interessa mesmo é que se trata de um filme à frente do seu tempo e do seu próprio gênero, que mudou completamente a maneira como hollywood passou a enxergar o que chamamos de terror. 

E isso, meus amigos, não se vê todo dia (que dirá numa hollywood repetitiva e presa numa bolha mercadológica como a atual!). 


quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Somos, antes de tudo, narrativas


Assusta-me - e muito! - o desinteresse da sociedade contemporânea por ela mesma. Vivemos como adversários e concorrentes desleais num mundo governado por zumbis tecnológicos, que arrastam seus Iphones de última geração seja para onde forem, tropeçam uns nos outros e sequer têm a ombridade de pedir desculpas. Mais: hoje em dia quem pede desculpas, em muitos casos, é quem leva a trombada. 

Perdemos a capacidade de entender o próximo, seja quem for, o colega de trabalho, o colega de classe na escola ou na faculdade, o vizinho, o porteiro, a empregada, o ascensorista, enfim... Estamos mais interessados em nossos próprios e hipócritas umbigos. E quando nos esforçamos por algo, esse algo tem alguma coisa a ver com status, poder ou fama. E ai de quem pense o contrário, pois será rotulado ou estereotipado de alguma coisa infame ou suja. Sim, é a era dos palavrões e do desrespeito mútuo e gratuito. 

Dito isto, fiquei felicíssimo ao entrar no site do Museu da pessoa, localizado em São Paulo, e perceber que ainda existe sim um rastilho de esperança em meio a tanto niilismo. Ainda existem pessoas preocupadas com pessoas. E isso além de raro é muito bem-vindo e extremamente engrandecedor. 

Passeio pelo arquivo do museu, pelas exposições virtuais, pelo "diário para o futuro" (uma espécie de legado pós-Pandemia), chego até a pensar em deixar o meu registro para a posteridade (ainda estou pensando nisso!) e me deparo com um quadro vasto de narrativas peculiares e não menos geniais. 

Observação importantíssima: a palavra narrativa, uma contribuição oferecida pelo mestre Gilberto Dimenstein, autor do extraordinário Cidadão de papel, pontua de forma muito elegante o contexto principal do projeto, que é compartilhar ideias e saberes do dia-a-dia. Falar de forma rasteira em senso comum realmente não explica o que é a proposta aqui. Nem de longe. 

São homens e mulheres das mais diferentes classes sociais e cleros e sexualidades, livres de amarras e pré-conceitos, a serviço da criação em conjunto de um conteúdo linguístico que se perpetue e dê frutos entre as próximas gerações. Aliás, isso é primordial: que a geração seguinte continue esse trabalho, se permita redescobrir-se (algo que os mais jovens andam precisando demais!). 

Grafiteiros, poetas, donas de casa, lavadeiras, professores, travestis, escritores de renome, motoristas de aplicativo, documentaristas, mulheres com dificuldade para engravidar, uma mulher que teve a infância roubada pelo trabalho precoce fabricando a sua primeira "boneca", o taxista que vê um bebê nascer dentro do seu veículo... São inúmeras as lembranças, no melhor estilo da chamada literatura oral. E enfatizo: é apaixonante ouvir todas essas histórias e entender o quanto cada uma dessas jornadas é indispensável para entendermos esse todo complexo - e controverso - que chamamos de população brasileira. 

De chato mesmo me pareceu apenas uma sensação de que aquilo que chamamos de povo atualmente não parece muito interessado em projetos como esse. Não dá a menor bola. Prefere discussões babacas sobre polarização política na internet (e quando digo discussões, refiro-me à debates rasos e sem o menor interesse de promover um consenso. Pelo contrário: querem ganhar a conversa no grito, como se só pudéssemos viver sob um pensamento único) e vídeos imbeciloides e infantis em redes sociais e canais de vídeo. 

Em suma: nos lobotomizamos e nos orgulhamos dessa falsa sensação de conforto produzida pela ignorância plena. E isso é terrível. 

Portanto, se você - como eu - também pretende sair da bolha ideológica e inumana na qual nos tornamos nos últimos anos, dê uma conferida em https://museudapessoa.org/. Se for Paulista, vá até lá. Confira pessoalmente. Aposto que sairão transformados da experiência. Eu, sem sombra de dúvidas, saí. 

Ou, em outras palavras, se permita RECOMEÇAR.

P.S: e ainda tem gente que diz que não se aproveita nada de bom ficando em casa em tempos de Coronavírus... 


domingo, 4 de outubro de 2020

Os servos de Deus


Vivemos em meio a uma sociedade estranha, excêntrica, instável e violenta em demasia. Diria mais: grotesca em muitos aspectos. E ainda assim tem quem a defenda a todo custo e diga a plenos pulmões que caminhamos rumo ao progresso e, por isso, tanta autodestruição e fúria acumulada. "É impossível concluirmos a nossa jornada sem passarmos por tudo isso; são os planos de Deus", me disse outro dia desses na rua um homem que conheço há anos e que sempre considerei de moral deturpada e dúbia, logo a última pessoa que deveria falar sobre planos divinos. 

E ao escrever a expressão planos divinos no parágrafo anterior chego àquela questão que considero um dos maiores catalisadores desse processo destrutivo no qual transformamos o mundo e por conseguinte a sociedade. Refiro-me ao fanatismo religioso. 

Contudo, é preciso antes mencionar um pequeno parênteses: somos uma sociedade repleta de fanatismos os mais diversos. Vejo fanatismo deliberado dentro das torcidas organizadas de futebol, nos partidos políticos e à sua maneira até mesmo nos fãs de filmes da Marvel e da DC (principalmente quando eles não conseguem se abrir para a possibilidade de uma sétima arte além da produzida por essas duas companhias). Enfim... Essa doença que costuma ver o outro como alguém menor ou irrelevante porque ele não se assemelha a mim tomou conta do mundo de forma devastadora. E quando ela está acrescida do fator religioso então, sai de baixo! 

Quando fiquei sabendo da existência do longa do diretor Antonio Campos, O diabo de cada dia, e do fato dele tocar exatamente nessa questão imediatamente me interessei pela produção. Qualquer diretor de cinema que rediscuta o discurso religioso à luz da razão e não do individualismo arrogante merece a minha presença diante da tela de tv ou da sala de cinema. 

Pois bem: o filme é não somente avassalador e fulminante em suas intenções como também inebriante para todos aqueles que (ainda) não perderam a sua lucidez e entendem que o mundo não se resume unicamente às palavras proferidas nos livros sagrados. 

Vemos a narrativa do escritor Donald Ray Pollock - autor do livro que deu origem a esta produção e também narrador da história - se debruçar sobre um grupo de pessoas extremamente contraditórias que vêm sendo classificadas nos últimos anos pela chamada "nova ordem mundial" de servos de Deus. E a todo momento, enquanto me estarreço com suas decisões e escolhas, falo comigo mesmo: "se isso é ser um servo do criador, é facilmente compreensível o porquê de tantas pessoas ao redor do mundo preferirem o ateísmo". 

Sim, meus caros leitores, para mim o filme é brutal nesse nível!

E dentre os personagens esmiuçados aqui dois chamam a minha atenção logo de cara: o Reverendo Preston Teagardin (a segunda interpretação interessante do ator Robert Pattinson que eu vejo esse ano em pouco mais de duas semanas), o retrato vivo da apologia cristã contemporânea, seja dentro de sua paróquia ministrando cultos enaltecedores e esperançosos, seja fora se envolvendo com as filhas de seus fiéis; e Willard (Bill Skarsgard, que ganhou notoriedade nos últimos anos após sua interpretação do palhaço Pennywise em It: a coisa), um homem simples, mas de fé cega, capaz de sacrificar o que for necessário para obter a atenção e o poder de Deus. 

Contudo, eles não estão sozinhos. Por toda a extensão do longa nos depararemos com uma plêiade de seres humanos os mais cafajestes e sórdidos possível, mas logicamente "repletos de boas intenções". O problema: eles se esquecem que até mesmo o inferno - para quem acredita nele, é claro! - está cheio delas. 

Até mesmo o último rastilho de lucidez dentro desse universo deprimente e atroz, o jovem Arvin (Tom Holland), sabe da dificuldade de permanecer puro e isento dessa parte nefanda e contraditória do mundo. Até ele, mesmo para defender a honra de um ente familiar, terá que recorrer às maiores atrocidades e vilanias. Pois como eu disse no primeiro parágrafo desta crítica: vivemos numa sociedade violenta em demasia. 

O longa-metragem chega ao seu fim e me deixa prostrado no sofá da sala, completamente arrasado. Vi alguns críticos de cinema na internet dizendo que sentiram falta do lado bom do mundo para contrabalançar em meio à tanta ganância, depravação e falta de ética. Eu também senti. Entretanto, fiquei também curioso para ler o romance de Pollock. Pareceu-me que ele fala de um EUA que vemos pouquíssimo, já que o país sempre gostou de se vender através de suas glórias e feitos. Achei interessante conhecer esse outro lado da América, o depressivo, o amoral, o indigesto. E nisso essa produção matou a pau. 

E se é possível extrair um legado de O diabo de cada dia, prefiro deixar como recomendação a seguinte frase: cuidado com pra quem você anda rezando ultimamente. Você pode estar pedindo da maneira errada.  

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Refazendo Dickens?


Charles Dickens - assim como Robert Louis Stevenson e Jonathan Swift - representou um capítulo fundamental da minha infância e adolescência. Lembro-me exatamente, com riqueza de detalhes, das três vezes que li Oliver Twist, que considero uma obra seminal da literatura. E da minha sensação de êxtase ao terminar as três leituras. Era um narrador fantástico, como poucos. Considero um romance obrigatório na vida de qualquer leitor que se preze. 

Contudo, Dickens passou grande parte de sua carreira estigmatizado como autor infanto-juvenil (muito pelo fato de seus livros trazerem grandes denúncias sociais à sua época, e o mercado editorial daquele período - bem como a sociedade - não queriam ver aquilo tudo exposto de forma franca e literal). E não bastasse isso, especificamente Oliver Twist, foi acusado naquele período de fazer uma retratação um tanto quanto negativa do povo judeu. Havia até mesmo quem visse o antagonista da trama, o usurário Moisés Fagin, como uma criatura execrável e difamatória para a classe.

Pois bem: sabendo disso, o quadrinista Will Eisner - para mim, honestamente, o maior da história da nona arte - debruçou-se sobre a trama e decidiu criar uma nova abordagem para o vilão da história. E o resultado desse, digamos, estudo de caso, está esmiuçado na inebriante e inesquecível graphic novel Fagin, o judeu (seu último trabalho autoral em vida, publicado em 2005). 

Ponto importantíssimo: na trama, o vilão narra sua versão dos fatos à Eisner, com o intuito de desmitificar os estereótipos que se criaram acerca dele com o passar dos séculos. Mais: se diz negligenciado, ignorado pelo próprio Dickens. 

Deixado isso claro, Eisner esmiuça a vida desse homem que veio da Europa Central para Londres ainda criança visando melhorar de vida e que, no entanto, aprende que precisa mesmo é se virar o quanto antes, jogar pelas suas próprias regras. E tudo por conta de sua condição social e do velho determinismo social (leia-se: "você nasceu pobre tem que morrer pobre, pois a vida que lhe foi destinada é essa) vigente na época. 

A morte do pai, por conta de uma aposta numa luta de boxe e da mãe, muito doente, agrava ainda mais sua situação, já que fica largado nas ruas até o surgimento de um tutor para quem vai trabalhar, Eleazar Salomão. Mas não se iludam! A trajetória dele está longe de ter um final feliz. Pelo contrário. É uma saga cheia de percalços diários.  

Fagin foi um pouco de tudo em sua jornada rumo à sobrevivência: alfaiate, faxineiro, mensageiro, trabalhou nas minas, ficou preso 10 anos numa colônia penal, virou degredado, deu golpe em comerciantes de rua... E, lógico, era sempre trapaceado, enganado, feito de bode expiatório ou vítima em muitas situações. Isso fora àqueles que passaram a vida perseguindo-o, tentando fazê-lo de escravo ou serviçal em tempo integral. 

Ou seja: a vida de Moisés Fagin, diferentemente do que é mostrado no romance de Dickens, não foi a de um mero aliciador de menores inescrupuloso. Ele teve uma vida muito difícil, sem apoio de ninguém, e teve de encontrar o seu próprio caminho a muito custo e luta. Daí a insatisfação da comunidade judaica com Oliver Twist na época de seu lançamento. 

E quando sua vida finalmente se cruza com a do jovem Oliver há um lado dele, desse idoso mesquinho e picareta, um lado bem escondido é verdade, que entende que aquele garoto se parece um pouco com ele mesmo. Oliver também conheceu o sofrimento desde a infância e cortou um dobrado para chegar ao seu objetivo. A diferença entre ambos é que o garoto não vendeu sua essência pela moral do lucro fácil e do capitalismo selvagem. 

Ao final da leitura fico meio apreensivo pensando: terá Eisner refeito Dickens à sua maneira? Sim, é possível essa leitura. Ela é, inclusive, passível de um interessante debate. Entretanto, há também um lado meu que prefere acreditar - lado esse muito influenciado pela cultura pop que os próprios quadrinhos pautaram nos últimos anos - ser Fagin, o judeu, um inteligente e necessário spin-off. 

E ao virar a última página exibo um sorriso de satisfação no rosto, agradecido pela leitura. 

É... Mas uma vez o mestre por trás de Spirit e Avenida Dropsie acerta em cheio. Como somente os gênios são capazes de fazer! Procurem o álbum. Permitam-se ser surpreendidos por uma nova versão dos fatos desse que é um clássico literário universal.