quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Terra alucinógena


Devo realmente estar ficando velho, pois não me lembro com exatidão da última festa louca da qual tenha participado. Provavelmente deve ter sido lá pelos idos de 1997, 1998... Por aí. E há que se levar em consideração que o conceito de loucura vigente naquele tempo era completamente diferente do que se vê hoje em dia nas atuais festas. No meu tempo de adolescente a premissa básica era azarar as gatas, não havia esse papo de ficantes rotativos e amizade colorida como rola atualmente. Chamavam de namoro quem namorava. Hoje não sei mais como funciona. 

E talvez por isso - por ter percebido essa mudança de comportamento das pessoas - eu tenha preferido, com o passar dos anos, a companhia dos lugares fechados, cinemas, teatros, salas de exposição, casas de show, fóruns de debate e, de preferência, com um público espectador saudável (e o que eu chamo de um "público saudável" é uma plateia que não queria simplesmente histeria, caos, tumulto, que saiba aproveitar o momento, o show, a apresentação, o evento ou como você quiser definir o motivo para sair de casa num final de semana).

Por esse motivo, foi uma grata (e estarrecedora) surpresa, se é que dá pra juntar essas duas instâncias numa mesma frase, ler Festa Infinita - o entorpecente mundo das raves, do jornalista Tomás Chiaverini, em que realiza uma apuração muito bem cuidada do perverso e abissal mundo das festas ao ar livre. 

"Raves? Que porcaria é essa?", perguntou uma tia minha, senhora lúcida de seus quase 80 anos, que estava presente no meu quarto no momento em que buscava informações para montar esse texto. Eu poderia, de forma curta e grossa, resumir a expressão nesses termos: são festas intermináveis (pelo menos, assim desejaria que fossem a maioria de seus frequentadores) regadas a muito álcool, sexo, drogas as mais variadas e muita música eletrônica. 

Muita gente, após esse meu comentário infame, iria certamente ao êxtase, bradando seus "Yeah", "Uhuuuu", "Falô", "É isso aí" e outros dialetos e gírias tribais contemporâneas, porém acabaria eu mesmo por admitir que minha interpretação é um tanto inexata. E por quê? Simples: porque não existe uma interpretação definitiva para esses megaeventos. Eles simplesmente existem. As pessoas amam participar deles. E ponto.

Só para ter uma breve noção do enlouquecimento que a mera referência a essa "festa" gera, a minha primeira reação ao contato com o verbete Rave no dicionário (Da língua portuguesa? Fiquei na dúvida agora), verbete esse que o próprio autor faz questão de trazer logo no início do livro, já é, por si só, impactante em demasia. 

Ver a palavra associada a definições tais como "delírio", "acesso de cólera", "fúria", "proferir palavras incoerentes", "ser louco", "querer algo a todo custo", entre outros impropérios, não é, definitivamente, um quadro nada positivo desse espetáculo, como bem diria minha saudosa avó que está no céu, "de horrores". Contudo, é preciso assumir logo de cara que as raves são comemorações para poucos, digamos, uma classe selecionada a dedo para participar de uma experiência transcendental (não sei porque nesse momento veio-me à mente a apresentação do Jimi Hendrix Experience no lendário Festival Monterey Pop, com o maior guitarrista de todos os tempos pondo em chamas sua Fender Stratocaster diabólica ao som dos uivos e gemidos de uma plateia ensandecida. Será isso mera coincidência? Creio que não...).

Poucos, eu disse mais acima? Que inocência a minha! Eles, alucinadamente, hiperlotam sítios, praias, descampados, numa cerimônia que dura horas, dias, semanas, sabe-se lá Deus se não meses.

Chiaverini, exímio investigador, que já havia mostrado toda a sua malícia regada a litros de óleo de peroba no anterior - e excelente! - Cama de Cimento, sobre o dia-a-dia árido dos sem-teto que vivem em São Paulo, fuça os meandros desse universo dark onde convivem de perto música techno em alto volume (gênero musical que eu mesmo só fui conhecer de maneira mais aprofundada a pouco tempo, após me emprestarem alguns CDs do Moby e do Fat Boy Slim) e GHB (ou anfetamina, o que for mais fácil de conseguir). 

E pra quem não sabe do que se trata, aconselho buscar mais informações a respeito, principalmente se você é um pai de família preocupado com a criação de sua prole e/ou pessoas liberais, algumas seminuas outras escrachadas, ditam a tônica dessa badalação. Depoimentos que de tão verídicos parecem absurdos, declarações bombásticas, confissões as mais desagradáveis - principalmente envolvendo relações sexuais -, tudo pontuado por uma narrativa que transita de forma exuberante entre o humor ácido e a denúncia feroz.

Relutei, confesso, bastante tempo antes de ler essa obra-prima do jornalísmo investigativo que estava dando sopa numa banca de livros usados numa feira ano passado. E hoje me arrependo de não tê-la lido antes. É um mal mais do que necessário para leitores de estômago forte e cabeça aberta. 

Festa Infinita é praticamente uma prestação de serviços pública travestida de reportagem, mostrando de forma direta e sem aliviar a barra de ninguém, por onde andam nossos irmãos e irmãs mais novas, sobrinhos, filhos, netos, bisnetos e quantas outras gerações mais houver. Ao término da última página lida, fiquei sentado no sofá da sala de estar ainda um tempo, digerindo o que acabara de ler (o que assombrara o meu mundo pacífico de maneira tão detalhista e cruel), pensando se ainda existe lugar saudável para adolescência no mundo de hoje e, caso a resposta a minha pergunta seja negativa, o que é isso que tomou o seu lugar nos últimos anos. 

Leitura obrigatória para quem deseja, pelo menos, entender um pouco desse mundo caótico, capitalista, vulgar (e chamado de alegre por alguns) em que vivemos atualmente. 


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