quinta-feira, 22 de outubro de 2020

O alienígena faminto


Gonzaguinha, um de nossos maiores cantores e compositores de todos os tempos, na canção o que é, o que é?, diz em alto e bom som que ficava "com a pureza da resposta das crianças" e se orgulhava disso. Aliás, bem fez ele. E pode-se dizer o mesmo do pintor, escultor e ceramista espanhol Joan Miró. Ele adorava os trabalhos artísticos desenvolvidos por crianças, logo completamente distantes de qualquer convicção ou esmero acadêmico. Para ele, às vezes, esse rigor estético todo só atrapalhava. 

E muito por conta disso fez de sua obra artística uma grande brincadeira, quase um delírio infantil. Fugiu sempre que pode do formalismo e desse mundo chato, cheio de regras e imposições (prova viva disso é que foi um ferrenho opositor e crítico do franquismo e do fascismo em geral). Miró era lúdico em todos os sentidos e fico às vezes me perguntando o que achavam disso seus professores quando ele estudou na Escola de Belas Artes de Barcelona e na Academia de Gali. Acredito que tenha sido visto, muitas vezes, como incompreendido. 

Por isso, gostei dele logo de cara. Era um outsider nato. 

Seu trabalho está repleto de influências as mais diversas, viajando dos movimentos fovista e dadaísta até a filosofia zen (e o conjunto de sua obra transparece muito desse clima, dessa sensação de pureza e silêncio). Contudo, ele não foi só isso. Havia também fúria em suas telas e esculturas e um senso crítico, de denúncia, sem igual. Prova viva disso é o curioso O carnaval do arlequim, pintura a óleo feita por ele entre 1924 e 1925.

Se é verdade para 10 entre 10 críticos de arte e marchands que suas telas transportam o público para mundos alienígenas, repletos de criaturas as mais bizarras e, por vezes, nonsenses, O carnaval do Arlequim é o melhor exemplo disso. E essa tela representa a grande virada na carreira do artista, que só começou a despontar de fato quando saiu de sua Espanha natal e partiu para a França, onde conheceu André Breton e Pablo Picasso, de quem se tornou parceiro e amigo. 

Dentro de seu projeto estético de brincar com a ideia do faz-de-conta, aqui Miró abusa de cores e sentimentos lúdicos. Sempre preferia as cores primárias, além do preto e do branco. Sempre pautava suas criações pelo uso de formas, figuras geométricas, imaginárias e símbolos próprios formados por manchas e por linhas carregadas. Era quase um artista ideogramático. E com Carnaval realiza um de seus projetos mais inusitados.   

Há, logicamente, dentro do quarto retratado (seria o quarto de uma criança, como tantas que ele observou criando? Provavelmente!) elementos do cotidiano, como a mesa e a janela, porém é preciso da parte dos observadores deter os olhos de forma mais demorada sobre as criaturas e objetos disformes que compõem a tela. São inúmeros insetos que brincam, dançam, parecem gritar, querendo chamar a atenção do público. As imagens que remetem ao surrealismo (do qual Miró é um de seus maiores expoentes) são nada óbvias e exigem atenção - e reflexão - de quem encara o desafio de tentar entendê-las. 

O arlequim, protagonista desta façanha, mostra seu rosto redondo e bigodes imensos e ridículos (sinto uma leve referência à Salvador Dali ou estou, como sempre, enxergando demais?) e tem o olhar triste e nervoso, captando um pouco da essência do próprio autor, que vinha de um período difícil em sua terra. 

Detalhe imprescindível: todas as criaturas pintadas na tela remetem a uma alucinação vivida pelo pintor, por causa do período de extrema fome pelo qual ele passava. E esse alienígena faminto mescla figuras disformes com objetos sorridentes e instrumentos musicais que praticamente se tocam sozinho. Em outras palavras: é a diluição do tempo, que ganha outros contornos dentro da mente controversa, mas não menos genial, deste grande artista. 

E caso tenha ficado faltando algum detalhe ou análise a mais (e acreditem: no mundo das artes plásticas, sempre ficará faltando e isso é o mais interessante de estudá-las; pois elas sempre serão como livros abertos à procura de novas opiniões) recomendo aos leitores deste mísero artigo que procurem sobre o pintor - cuja vida é por demais interessante e jovial - na internet ou, caso tenham grana sobrando, deem uma passadinha rápida na Albright-Knox Art Gallery, em Nova Iorque, onde a tela se encontra exposta atualmente. E tirem suas próprias conclusões. 

No mais, fica aqui uma dica amadora: procurem conhecer Miró de mente aberta. Como disse antes em parágrafo anterior, ele não se encaixa no formalismo estético das galerias e marchands. É um espírito livre. E como todo espírito livre que se preze precisa ser analisado com calma e sabedoria. 

P.S (na verdade, apenas um complemento literário): para saber ainda mais sobre o gênio de Joan Miró, procurem pelo extraordinário livro Joan Miro: I Work Like a Gardener (Interview with Joan Miro on his creative), por Joan Miró e Yvon Taillandier. O resto é com vocês!  


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