Charles Dickens - assim como Robert Louis Stevenson e Jonathan Swift - representou um capítulo fundamental da minha infância e adolescência. Lembro-me exatamente, com riqueza de detalhes, das três vezes que li Oliver Twist, que considero uma obra seminal da literatura. E da minha sensação de êxtase ao terminar as três leituras. Era um narrador fantástico, como poucos. Considero um romance obrigatório na vida de qualquer leitor que se preze.
Contudo, Dickens passou grande parte de sua carreira estigmatizado como autor infanto-juvenil (muito pelo fato de seus livros trazerem grandes denúncias sociais à sua época, e o mercado editorial daquele período - bem como a sociedade - não queriam ver aquilo tudo exposto de forma franca e literal). E não bastasse isso, especificamente Oliver Twist, foi acusado naquele período de fazer uma retratação um tanto quanto negativa do povo judeu. Havia até mesmo quem visse o antagonista da trama, o usurário Moisés Fagin, como uma criatura execrável e difamatória para a classe.
Pois bem: sabendo disso, o quadrinista Will Eisner - para mim, honestamente, o maior da história da nona arte - debruçou-se sobre a trama e decidiu criar uma nova abordagem para o vilão da história. E o resultado desse, digamos, estudo de caso, está esmiuçado na inebriante e inesquecível graphic novel Fagin, o judeu (seu último trabalho autoral em vida, publicado em 2005).
Ponto importantíssimo: na trama, o vilão narra sua versão dos fatos à Eisner, com o intuito de desmitificar os estereótipos que se criaram acerca dele com o passar dos séculos. Mais: se diz negligenciado, ignorado pelo próprio Dickens.
Deixado isso claro, Eisner esmiuça a vida desse homem que veio da Europa Central para Londres ainda criança visando melhorar de vida e que, no entanto, aprende que precisa mesmo é se virar o quanto antes, jogar pelas suas próprias regras. E tudo por conta de sua condição social e do velho determinismo social (leia-se: "você nasceu pobre tem que morrer pobre, pois a vida que lhe foi destinada é essa) vigente na época.
A morte do pai, por conta de uma aposta numa luta de boxe e da mãe, muito doente, agrava ainda mais sua situação, já que fica largado nas ruas até o surgimento de um tutor para quem vai trabalhar, Eleazar Salomão. Mas não se iludam! A trajetória dele está longe de ter um final feliz. Pelo contrário. É uma saga cheia de percalços diários.
Fagin foi um pouco de tudo em sua jornada rumo à sobrevivência: alfaiate, faxineiro, mensageiro, trabalhou nas minas, ficou preso 10 anos numa colônia penal, virou degredado, deu golpe em comerciantes de rua... E, lógico, era sempre trapaceado, enganado, feito de bode expiatório ou vítima em muitas situações. Isso fora àqueles que passaram a vida perseguindo-o, tentando fazê-lo de escravo ou serviçal em tempo integral.
Ou seja: a vida de Moisés Fagin, diferentemente do que é mostrado no romance de Dickens, não foi a de um mero aliciador de menores inescrupuloso. Ele teve uma vida muito difícil, sem apoio de ninguém, e teve de encontrar o seu próprio caminho a muito custo e luta. Daí a insatisfação da comunidade judaica com Oliver Twist na época de seu lançamento.
E quando sua vida finalmente se cruza com a do jovem Oliver há um lado dele, desse idoso mesquinho e picareta, um lado bem escondido é verdade, que entende que aquele garoto se parece um pouco com ele mesmo. Oliver também conheceu o sofrimento desde a infância e cortou um dobrado para chegar ao seu objetivo. A diferença entre ambos é que o garoto não vendeu sua essência pela moral do lucro fácil e do capitalismo selvagem.
Ao final da leitura fico meio apreensivo pensando: terá Eisner refeito Dickens à sua maneira? Sim, é possível essa leitura. Ela é, inclusive, passível de um interessante debate. Entretanto, há também um lado meu que prefere acreditar - lado esse muito influenciado pela cultura pop que os próprios quadrinhos pautaram nos últimos anos - ser Fagin, o judeu, um inteligente e necessário spin-off.
E ao virar a última página exibo um sorriso de satisfação no rosto, agradecido pela leitura.
É... Mas uma vez o mestre por trás de Spirit e Avenida Dropsie acerta em cheio. Como somente os gênios são capazes de fazer! Procurem o álbum. Permitam-se ser surpreendidos por uma nova versão dos fatos desse que é um clássico literário universal.
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