sexta-feira, 30 de outubro de 2020

No confessionário


Durante a graduação na faculdade, uma década atrás, estudei na mesma sala com um rapaz adepto dos movimentos LGBTQIA e ele escrevia sua monografia de final de curso acerca de figuras públicas deste mesmo segmento. Mais do que isso: ele queria também saber a opinião de pessoas heterossexuais sobre esses movimentos e certa vez perguntou-me o que eu pensava a respeito do assunto. E eu me lembro exatamente do que lhe respondi: 

"Eu espero que essas pessoas tenham lucidez e muita paciência para lidar com o que ainda vêm por aí, de encontro a elas e de forma furiosa. Vejo o país se tornando cada vez mais conservador e covarde nos últimos anos e quem não se adequar ao sistema certamente será caçado por esses moralistas. Se eles (os homossexuais) não tomarem cuidado ou não souberem lidar com a situação, podem vir a se tornar os judeus do século XXI". 

A reação do rapaz foi de apreensão, mas ao mesmo tempo de entendimento. Ele próprio já percebia o retrocesso do país e vinha tomando cuidado com o que falava em certos segmentos. 

Pois é... Quem diria que eu me pegaria pensando nisso tudo de novo ao assistir a versão da Netflix para Os rapazes da banda, remake do diretor Joe Mantello para um clássico dirigido cinco décadas atrás pelo extraordinário William Friedkin!

Inspirado na peça homônima de Mart Crowley e construído de forma visível para transparecer a ideia de um teatro filmado, Os rapazes da banda conta a história de um grupo de amigos homossexuais que se reúne num apartamento para comemorar uma festa de aniversário quando se deparam com a chegada de um visitante inusitado que vira o clima do lugar de ponta-a-cabeça. 

Michael (Jim Parson, o eterno Sheldon de Big Bang Theory), Harold (Zachary Quinto), Donald (Matt Bomer), Larry (Andrew Rannelis), Cowboy (Charlie Carver), Emory (Robin de Jesus), Bernard (Michael Benjamim Washington) e Hank (Tuc Watkins) se reencontram para relembrar histórias, dividir experiências e festejar ao som de boa música e muita bebida.

Contudo, todo esse planejamento ruirá com a chegada de Alan (Brian Hutchison), um antigo colega de faculdade de Michael que ele sempre considerou gay, "mas nunca teve coragem de se assumir" e que agora vive uma crise no casamento. Alan pergunta se pode dar uma passadinha rápida na festa para falar com Michael e ele topa. Pronto. Está iniciado o embrião do caos.

Michael pede que os demais convidados não fiquem tão eufóricos ou desmunhequem em excesso, pois o amigo pode não entender tamanho liberalismo. Entretanto, a ruptura e as divergências surgem, o álcool corre solto e Michael decide propor um jogo sórdido: cada uma das pessoas na festa deve ligar para alguém que já amou na vida e fazer uma declaração aberta. 

Nesse momento a narrativa proposta por Crowley ganha um tom de confessionário e o que vemos na tela é o lado B do ser humano, aquele que ele sempre prefere esconder do convívio com os demais. Cicatrizes são expostas, arrependimentos são evidenciados e uma enorme lacuna onde despeito, rivalidade e ressentimento ditam as regras de forma cruel e ambígua aparece. 

Ponto vital a ser vislumbrado pelos espectadores: prestem atenção nos poucos diálogos e nos muitos silêncios incômodos envolvendo Michael e Harold. Para mim, de todo o grupo são os dois agentes de maior rivalidade presentes na casa. E detalhe: houve um momento de tensão antecipatória providencial para que eu percebesse que o desfecho daquela situação seria catastrófico (mas não menos avassalador, pelo menos para os fãs de bom cinema). 

Mantello e, logicamente, Crowley criam juntos um clima claustrofóbico, quase um oráculo onde sentimentos afloram quando mais deveriam ser represados. Sim, pois há desabafos na vida que ficariam melhor engavetados (principalmente quando a vida decidiu seguir um caminho diferente daquele que planejávamos a priori). 

Moral da história (se é possível acreditar numa moral nesse caso): os seres humanos estão sempre à procura de suas piores escolhas, quando o silêncio deveria ser visto com lucidez, e simplesmente não conseguem se desapegar do passado. Não importa o quanto tentem. 

E voltando ao parágrafo inicial: imaginem toda essa repressão sendo posta para fora em tempos de fake news, sensacionalismo e uma sociedade que busca a fama e o holofote a qualquer custo. Lógico que vai dar merda. Em algum momento, vai dar merda. Só não sabemos quando nem quanto. 

Mas não dá para antecipar o tamanho da tragédia. Nós (ainda) vamos ter de esperar o epílogo de todo esse ressentimento...


Sem comentários:

Enviar um comentário