quarta-feira, 27 de março de 2019

O inferno são os outros


Quando escrevi recentemente na minha crítica cinematográfica sobre o filme Infiltrado na Klan, do diretor Spike Lee, que a América (leia-se: Estados Unidos) está debilitada eu sabia do que falava e ratifico aqui minha posição. Nunca se viu na história da humanidade um país idolatrar tanto o ódio ao seu semelhante - ainda mais se ele for estrangeiro - como hoje em dia na terra de Donald Trump. Aquela velha moral que eu sempre achei arcaica nos discursos americanos de "somos a maior nação", "somos imbatíveis" ganhou contornos do maquiavelismo mais puro. Em outras palavras: odiar virou um grande esporte na terra do Tio Sam. 

Mais uma prova viva disso? Saio do cinema após assistir ao longa Nós, do diretor Jordan Peele, extasiado. Mais ainda: perplexo. E penso: "estamos diante da veneração à barbárie". 

Jordan Peele é um cineasta curioso. Começou sua carreira atuando em séries de comédia e acabou por escolher o terror como viés para sua faceta diretor. Até aí, nada demais. Até porque hollywood possui um grande mercado nesse gênero. Porém, o terror de Peele é ácido, negro, de um amargor profundo porque reflete as mazelas de sua tão querida nação. E pior: ele é negro. E ser negro nos Estados Unidos... Já viu! 

Em seu longa de estreia atrás das câmeras, Corra!, ele utiliza-se do discurso do racismo nas entrelinhas de uma história aterradora, das coisas mais atemorizantes que eu assisti nos últimos anos. Digo mais: foi a primeira vez, desde os clássicos Wes Craven e Dario Argento, que um cineasta mexeu de fato com meus brios. Resultado: ele faturou o Oscar de melhor roteiro original e decidiu partir numa nova empreitada, cheia de novos temores. 

Agora, em Nós, ele conta a história de Adelaide Wilson (Lupita Nyong'o, simplesmente fantástica!) e sua familia. No passado, quando criança, ele sofreu um trauma envolvendo um passeio num parque de diversões que mexeu profundamente com sua cabeça. Já adulta, viaja com o marido e os dois filhos para passar as férias de verão numa cidade à beira-mar e se depara com versões maléficas de si e seus familiares, trajados de vermelho e portando tesouras. Com apenas esta informação você pode pensar: "é mais um daqueles filmes slasher, na linha Jason, Freddy ou Michael Meyers. Não, meu caro amigo cinéfilo! Você não conhece Jordan Peele. 

A história verdadeiramente por trás da trama começou quando a versão do mal de Adelaide diz: "eu sou americana". Neste exato momento eu me lembro do que representa ser americano no século XXI, pós-11 de setembro. E imediatamente um letreiro se abre diante de mim com a palavra em neón, piscando: XENOFOBIA

Acompanhem os jornais e tablóides assim que possível e vejam como nossos amigos norte-americanos tratam os imigrantes, os refugiados, os não-nativos. Sim, porque desde que me entendo por gente eu percebo que ser americano de fato é ser nascido no país, filho de país também nascidos no país. Não há espaço para mestiços, latinos e cidadãos emprestados. Não há meio-termo. Sorry! 

Portanto, a saga de Adelaide, seu marido e filhos é a luta por uma cidadania construída a fórceps, um direito que não deve ser maculado, distorcido ou transformado de forma alguma. Os outros, os estrangeiros, não passam de bárbaros, de invasores, que adentraram nossas terras para tomar tudo o que temos. A eles, que fiquem atrás de muros, que vão cometer seus atos terroristas bem longe, que entendam que aqui quem manda somos nós, descendentes dos fundadores dessa grande nação. 

Eu sei, eu sei... Vocês vão dizer que trata-se de uma família negra, logo não aceita por certas instituições conservadoras e hipócritas. Contudo, mesmo eles se vêem como legítimos quando diante dos fantasiados assassinos. E a jogada proposta pelo diretor com a campanha dos anos 80 pedindo que todos dêem suas mãos e peçam paz no mundo mostra de forma clara, ao invés de conscientizar cidadãos distintos da necessidade de aceitarmos nossas diferenças, o hiato que existe nesta "grande nação". 

Tudo em Nós é perturbador: desde a voz das versões do mal da família Wilson até a trilha sonora incômoda (houve, aliás, um momento em que eu fiquei pensando se não teria sido mais eficaz para o diretor trabalhar com o silêncio, como fez o ator John Krasinski no seu ótimo Um lugar silencioso. Eu fiquei muito perturbado com todo aquele ruído!). E isso tem uma razão de ser: o longa exprime o sentimento de repulsa de um país que simplesmente perdeu relevância mundial nos últimos anos, tentando recuperar o tempo perdido na marra, às custas de outras nações. 

A consequência disso: um ódio gratuito e uma busca desesperada por protagonismo no mundo, em detrimento de escolhas e vontades alheias. Bem a cara do país que dilacerou o México no passado e agora os acusa de serem canalhas, bandidos, usurpadores. 

Chego em casa após a sessão ruminando tudo o que vi, num sentimento quase claustrofóbico, e pensando comigo qual será a próxima artimanha dele. Dizem que seu próximo projeto será uma releitura da clássica série de ficção-científica Além da imaginação. E meu coração já começa a palpitar!!!

Para aqueles que acreditam que o terror é gênero morto, estão enganados. Vejam esta pequena jóia (e com direito a pitadas de humor negro, é bom que se diga!). E para aqueles que ainda acreditam no discurso neoliberal da grande nação, a terra dos homens livres... Na boa. fiquem com Jordan Peele. Pois não custa nada duvidar da classe dominante. Nem que seja só um pouquinho. 

sexta-feira, 22 de março de 2019

O evangelho da periferia


Podem sonhar com dias melhores as pessoas de cor? E por que elas precisam ser rotuladas como "de cor"? Finalmente, qual a cor das pessoas "de cor"?  Não podem ser seres humanos, simplesmente, como todas as outras pessoas? Pois é... Parece que no Brasil, não! A eles não é dado o direito de ser nada. Menos que nada. Ainda bem que ainda tem gente que se levante contra isso, quem nade contra a maré, quem acredite que aceitar tudo calado (por conta de determinismos biológicos e sociais passados) não está com nada, não é uma opção.

- Há tempos procuro um caminho para escrever sobre rap, hip-hop, cultura negra e não o encontro. E eis que me deparei, alguns meses atrás, com a notícia de que o vestibular da Unicamp desse ano trouxe em sua bibliografia obrigatória Sobrevivendo ao inferno, da banda Racionais MC's, um álbum musical que virou livro. Certamente uma ousadia para aqueles que estão acostumados a ver autores como João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos ou Clarice Lispector na lista. 

Resultado: vou atrás do livro em várias lojas e descubro que, infelizmente, à primeira vista, todos queriam comprá-lo e encontra-se esgotado. Não o encontro de cara, mesmo morando no RJ, com suas gigantescas megastores. Certamente os habitantes da cidade maravilhosa que fizeram a prova em SP compraram tudo com antecedência. E o jeito é esperar a prova passar e uma nova edição sair.  Contudo, só consigo ter o livro em minhas mãos só depois do carnaval. E é uma grata revelação (mesmo).

No álbum, a banda começa "rezando" à São Jorge da Capadócia (mas uma versão musical, criação do mestre Jorge Benjor). Certamente pedindo a Deus que protejam suas almas aflitas sempre condenadas ao sofrimento e ao fracasso. 

Vem o Gênesis, a regra do jogo. O jogo? Sim, imposto aos homens negros de bem, trabalhadores, como tantos outros nesse país de Meu Deus!, sem direito ao mínimo básico necessário. Quem manda sempre manda e obedece quem não perdeu o juízo ainda. E nesse contexto sórdido estatísticas terríveis sobre a realidade do homem negro no Brasil são apontadas. Digo mais: evisceradas. 

"Minha palavra vale um tiro". canta, não, grita em alto e bom som Mano Brown, o líder do grupo e voz ativa entre os manifestantes mais radicais do país. Homens como ele são considerados, por grande parte da sociedade que se diz cristã e por isso acima de qualquer suspeita, terroristas da periferia (e eu faço questão de pôr a expressão em negrito para acentuar ainda mais o discurso de ódio dessa tal parte da sociedade).

Malandro é aquele que não se submete ao sistema,  que não trai a causa, que não "enbranquece" de graça, deixam claro os integrantes da banda, num tom direto, ríspido, sem rodeios. 

Ser negro no Brasil, tratar de exclusão, de famílias disfuncionais, de andar na berlinda, carente de tudo, e levantar a cabeça, continuar olhando em frente, procurando um caminho que produza significado, que não seja um mero clichê: esse é o objetivo primordial de todo o trabalho (escolha você a versão musical ou literária)

A violência acaba por se tornar o modus operandi dos que precisam sobreviver, na marra. E para completar o pacote da miséria humana vivido por esses homens e mulheres excluídos do montante geral da população, os ditames básicos: drogas, escolhas erradas, amizades escusas, prisão, etc etc etc. 

Ao final do volume, como um epílogo esperançoso, quem sabe até mesmo uma quase elegia, a banda agradece às comunidades, á periferia, as únicas que entendem de fato a triste realidade desse povo jogado para segundo plano. Aliás, periferia é um palavra que classifica bem as razões por trás da existência de Sobrevivendo ao inferno. Os Racionais fazem, de forma precisa e cheia de provocações, um grande evangelho da periferia, onde nem sempre as orações, por mais bem intencionadas que sejam, surtem efeito e a expressão "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come" é elevada à máxima potência. 

Parabéns à Unicamp pela decisão de trazer a poesia contemporânea do rap ao cânone acadêmico e espero que a decisão seja seguida por mais instituições universitárias, pois é preciso fugir do velho clichê imposto por certas organizações - como a Academia Brasileira de Letras, por exemplo - que adoram defender o clássicos em detrimento de outras vertentes literárias existentes no Brasil). 

Enalteçam os excluídos! Antes que seja tarde demais!!!

sexta-feira, 15 de março de 2019

A sociedade videogame


Termina o carnaval, começa o ano (como reza a tradição tupiniquínica deste país Peter Pan). E mal acabou a festa de momo nos deparamos com mais uma triste tragédia - e este ano de 2019 já se mostrou terrível só nesse primeiro trimestre no quesito "tragédias em larga escala". Refiro-me ao massacre ocorrido no colégio em Suzano, cidade paulista. 

Entretanto, mais terrível ainda do que a própria tragédia em si mesmo é um fato que venho acompanhando de forma persistente nos últimos anos ao redor do mundo: estamos nos transformando numa sociedade videogame. 

Ligue a tv da sua casa e aposto que não conseguirá ficar míseras 24 horas sem ver uma tragédia ou desastre ou atentado terrorista ocorrendo em algum ponto do planeta terra. Nos tornamos destruidores em massa e numa escala que remete à dos jogos em rede (tão queridos por adolescentes frequentadores de lan houses). Os games preferidos dessa geração são aqueles em que pessoas matam outras pessoas gratuita e indiscriminadamente, diferente da minha época em que o barato mesmo era jogar Frostbite e Freeway no Atari. Eu sei... É macabro, porém muito real.

Lembro de ter ficado perplexo ao ler numa matéria de jornal que a empresa que fabricava o sistema de disparo de mísseis e treinava os profissionais que seriam responsáveis por tirar as vidas de cidades inteiras era a mesma que fabricava o tão querido e desejado Playstation. Mais uma vez: eu sei... Continua mórbido. 

Vivemos numa realidade inventada por pessoas maquiavélicas que desejam a todo custo a eliminação ou destruição do seu semelhante. Se o próprio conceito de amizade tornou-se deturpado após a invenção das redes sociais, imaginem então a sanha de quem deseja tirar do jogo qualquer pessoa que não condiga com suas certezas e opiniões. 

Onde iremos parar já passou de pergunta desesperada à mero delírio dos poucos habitantes lúcidos que ainda lutam para sobreviver em meio à barbárie. 

Tornamo-nos um mundo que trata a violência como algo divertido, banal. E o ponto mais extremo disso é a maneira como a indústria de cinema e a mídia em geral apropriaram-se dessa mentalidade para criar um universo doentio, travestido de entretenimento. 

Pergunto-me a todo momento o que sobrará para as próximas gerações, que já nascem completamente esfaceladas pela falta de um sistema de ensino legítimo e perspectivas de sobrevivência válidas. Lutamos sofregamente para continuarmos relevantes. Sentimentos como alegria e reconhecimento deram lugar a uma competição - e essa é uma palavra que pautará todo este século XXI - irritante e injusta, pois seus jogadores não se encontram em igualdade de condições. 

Somos (falo dos lúcidos, dos sobreviventes) pequenos Davis falhos e incompetentes guerreando inutilmente contra Golias mecanizados, com superpoderes, versões aprimoradas do outrora Deus ex machina. Falar em injustiça é pouco. É covardia mesmo! 

Ou como disse certo intelectual outro dia desses para um jornal de grande circulação: "vivemos o triunfo da mentira". 

Não é mais uma questão de "até quando?" ou "dias melhores virão". Trata-se de encararmos os fatos de frente ao invés de permanecermos observadores distantes de toda esta desgraça diária e contínua. 

O problema: fazer a sociedade entender isso. E querer mudar. 

sábado, 9 de março de 2019

América debilitada


O problema dos impérios (e daqueles que os idolatram) é um só: a falsa crença de que são imbatíveis, infalíveis, acima de qualquer suspeita. A eles nada acontece, pois ditam os rumos da vida moderna. Lêdo engano, meus caros! O império romano que o diga. Durou cinco séculos e mesmo assim não se encontra mais entre nós. E diga-se de passagem: já foi tarde. 

Nosso império atual, o tão superestimado (opinião minha) Estados Unidos, também rezou nessa cartilha durante anos. E fez de tudo - desde usar a chegada do homem à lua até o mal explicado 11 de setembro - para manter-se no auge dessa nossa "pós-modernidade" (as aspas são intencionais). Deu no que deu. 

A terra de Tio Sam - hoje de Donald Trump - vive seus piores momentos há algum tempo e não consegue entender que o mundo, maior do que uma única nação, precisa evoluir, crescer, andar com as próprias pernas. Resultado: uma crise de valores, social e econômica, sem precedentes. Contudo, ainda há homens de fibra capazes de expor as mazelas dessa nação contraditória. Mais: expor o problema desde suas raízes. Um deles, com certeza, é o cineasta Spike Lee. E faz isso em sua cinematografia desde que me entendo por gente (vejam Faça a coisa certa, Clockers e Malcolm X e tirem suas próprias conclusões!). 

Pois bem: com Infiltrado na Klan, Spike faz seu maior ato político em forma de cinema das últimas duas décadas e isso fez muito bem a ele. O diretor precisa colocar para fora seu discurso raivoso e não menos verídico para explicar as raízes do que vem acontecendo com a América nos últimos anos. Vocês não acompanham os jornais? Pois deveriam. Funcionários públicos sem receber salário há meses, marchas envolvendo supremacistas brancos, o retorno da Ku Klux Klan ao cenário político e um presidente impopular que faz com que o país não consiga mais dialogar com a Europa como antes. E isso só para começar. 

Spike Lee não conta somente a extraordinária história de Ron Stallworth (John David Washington), policial negro do Colorado que consegue fazer contato com uma das sedes da Ku Klux Klan e infiltrar um agente (mais complicado ainda: um policial judeu) dentro da organização. Como seria simples se fosse apenas isso! Não. O diretor mais polêmico e controverso de hollywood conta, isso sim, a história de anos de preconceito e racismo desta grande nação, que sempre se vendeu às demais como "a terra das oportunidades". 

Na sua colcha de referências múltiplas, citações a obras-primas do cinema como E o vento levou e O nascimento de uma nação, figuras proeminentes e revolucionárias da Blaxploitation e personas e organizações políticas como Angela Davis e os Panteras Negras. Tudo misturado num caldeirão capaz de deixar muitos cidadãos de pele branca incomodados com seu discurso e empáfia (na própria sessão que eu assisti, fui capaz de perceber alguns narizes torcidos em alguns momentos). 

"Mas qual o objetivo de tanta raiva e desabafo?", dirão alguns demagogos de carteirinha (e eles estão, hoje em dia, mais presentes do que nunca). É simples de explicar, mas não de - para alguns, pelo menos - entender: a necessidade de continuar forçando a fechadura e a sensação de que se as comunidades negras pararem de falar, tudo será esquecido no dia seguinte com a maior naturalidade. Portanto, trata-se de um batalha para todo o sempre. 

Somos um mundo racista que se recusa a admitir seu racismo. Chama-o de brincadeira, de piada, de mau entendido etc. Dentro deste mundo racista há um capítulo especial chamado Estados Unidos. Uma pátria que adora se vender como "a maior nação que este mundo já viu" e, no entanto, não consegue reconhecer nem mesmo seus próprios semelhantes, simplesmente pelo fato de pertencerem a uma outra etnia. Mais: acusam os negros de não serem os reais fundadores dessa pátria. Triste, mas real. Logo, não há outro jeito senão encarar a guerra de frente e fazer seus descendentes entenderem que eles terão de continuar o processo depois que os pais falecerem e assim por diante. Não há espaço para tréguas ou acordos. Não aqui. Não hoje, nem amanhã, nem no dia seguinte. 

Spike Lee encerra seu "filme" (eu sei... é difícil ver o longa apenas como uma obra de entretenimento) com imagens duras, mas poderosas. Dá voz às vítimas recentes de manifestações ocorridas nos EUA, expõe com frieza a covardia dos que se dizem "raça superior". E, no final das contas, exibe uma América debilitada, fruto de anos e anos de exibicionismo e intolerância. 

Como último frame, libelo derradeiro deste momento ímpar e árduo que o país atravessa, uma bandeira nacional de ponta a cabeça (que na linguagem codificada pode significar tanto um pedido de socorro como um sinal de terrível sofrimento em situações de perigo). Em  outras palavras: a América pede ajuda. O problema: como ajudar a quem sempre ajudou apenas por interesse?

P.S: Spike Lee e seu filme foram indicados ao Oscar desse ano. E depois do que eu vi na tela naqueles 135 claustrofóbicos minutos, digo sem reservas: foi a maior ousadia do prêmio esse ano, mesmo não faturando a estatueta de melhor filme!

domingo, 3 de março de 2019

O desfile (Memórias de infância 14)


Chega o carnaval e com ele o famigerado desfile das escolas de samba na Marquês de Sapucaí, evento mais do que habitual na cidade maravilhosa. Porém esse ano, particularmente, comemoramos 30 anos de um desfile antológico. Provavelmente o mais famoso de toda a história do Sambódromo até hoje. Refiro-me ao desfile da Beija-Flor de Nilópolis no ano de 1989, Ratos e urubus, largem minha fantasia, vice-campeão do carnaval naquele ano. 

Eu tinha 12 anos naquela época e ia à Avenida Presidente Vargas, no centro, com meu primo para ver os carros alegóricos das agremiações, que ficavam estacionados no meio da rua, em frente ao Terreirão do Samba. E naquele ano específico me peguei sem entender nada quando vi o abre-alas da escola coberto com um plástico preto e os dizeres escritos numa faixa: "mesmo proibido, olhai por nós". 

Motivo: a Arquidiocese, indignada com o Cristo Mendigo - criação do carnavalesco (e gênio da passarela) Joãosinho Trinta -, pediu na justiça a não exibição da escultura. Daí, o plástico negro cobrindo o carro. Para muitos, aquela imagem terrível, castradora, era a prova viva do fim das esperanças da agremiação a concorrer ao título naquele ano. Mal sabiam eles que estavam redondamente enganados!

Joãosinho Trinta sempre fora criticado por não produzir enredos populares, e vender unicamente o luxo de suas fantasias e carros alegóricos. Em outras palavras: não era visto pelos críticos de carnaval como um carnavalesco do povo de fato. E quando proferiu publicamente a frase "o povo gosta de luxo; quem gosta de miséria é intelectual", isso acirrou ainda mais a rivalidade com esses mesmos críticos. 

Chega a hora da verdade, a escola entra na avenida, Neguinho da Beija-flor solta a voz e o resultado é o que muitos chamaram anos depois de "história não-oficial do país" (em comparação com a versão oficial vendida pela vencedora daquele ano, a Imperatriz Leopoldinense, com Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós). Mendigos rodeavam o cristo coberto, exibindo a faceta mais atroz e corajosa de nosso país Peter Pan, que se recusa a crescer e sair da desigualdade. E passada aquela miséria escancarada a escola trouxe seu luxo habitual, intercalando os dois Brasis que não se bicam com extrema genialidade. 

Contudo, não foram os passistas, as beldades seminuas ou o samba prafrentex que mais chamou a atenção da mídia e da sociedade naquele ano. Não, meus caros leitores! E, na verdade, o momento máximo desse desfile aconteceu no Sábado das campeãs, quando funcionários da própria escola retiram o plástico que recobria o Cristo, o exibindo para a plateia da Marquês de Sapucaí, ensandecida. Há um vídeo no youtube que mostra o desfile das campeãs na Rede Manchete e a reação apaixonada e delirante de Fernando Pamplona, outrora carnavalesco e naquele ano comentarista de carnaval pela emissora. Seu depoimento apaixonado foi a exata imagem do que os espectadores viram naquele dia. Um arraso!

Há quem critique os jurados pelo vice campeonato da escola naquele ano e quem defenda, no mínimo, o empate com a Imperatriz (eu confesso que, na época, também achei injusto). Entretanto, a Beija-flor conseguiu criar um precedente que se tornou cult com o passar dos anos: o dos desfiles que não ganharam o carnaval, mas entraram para a história por sua inovação e ousadia (já existe até um livro sobre desfiles que quase faturaram o título e mesmo assim marcaram época e não saem da cabeça dos foliões). 

Passadas três décadas o sentimento que me fica é o de nostalgia e um pouco de tristeza. Digo tristeza, pois não vejo nos desfiles de hoje a mesma capacidade de surpreender os espectadores. Já vi de tudo no carnaval do Sambódromo: escolas passando debaixo de chuva pesada, carro alegórico pegando fogo inteiro e impedindo a evolução da escola, agremiação desfilando no meio da escuridão, etc etc etc. E vejo Ratos e urubus, largem minha fantasia como um grande pioneiro nesse quesito, o de nos apresentar ao imponderável, àquilo que não é previamente planejado pela direção da escola. 

O que vejo hoje é o retrato do excesso de profissionalismo e interesse econômico: um desfile óbvio, sem grandes surpresas, onde muitas vezes já sabemos quem ganhará a taça antes mesmo de começar a apuração. E talvez por isso o meu desinteresse pela programação nos últimos anos. Tenho achado tudo um tanto comercial e sem valor cultural ou histórico.

Não fossem os artigos publicados em sites e jornais de grande circulação sobre este enredo revolucionário, eu teria perdido a chance de dividir com vocês essa memória deliciosa sobre um tema que, infelizmente, não volta mais... E esse ano? Será que rola uma surpresa? Uma que entre pra história? Acho difícil, mas não custa torcer. 

Bom carnaval.