quinta-feira, 29 de abril de 2021

O filho do rei do baião


Na verdade, para começo de conversa, o título é uma grande provocação, pois ele com certeza foi muito mais do que apenas o filho do Rei do Baião, Luiz Gonzaga. E digo mais (mesmo sabendo que irei desapontar muitos fãs do Gonzagão): embora adore o Forró que eternizou o pai, de "Asa Branca" à "Danado de bom", sempre fui mais fã do filho. Seu cancioneiro tinha mais a minha cara, o meu jeito de pensar e ver o mundo. 

Acreditem: Gonzaguinha, que nos deixou completa hoje três décadas após um infeliz acidente de carro no interior do Paraná, vai deixar saudade na MPB. Muita saudade. 

Eu tinha apenas 13 anos quando ouvi ele cantando pela primeira vez numa estação de rádio. A música em questão era "E vamos à luta" e quando ele disse na letra "eu acredito é na rapaziada..." eu tive a certeza absoluta de que estava falando comigo. Perguntei a meu pai, que estava na sala ouvindo comigo quem era aquele moço que cantava, e ele me disse: "esse aí é o Gonzaguinha, filho do rei do baião". E eu repeti na mesma hora: "o filho do rei do baião". 

Procurei as músicas do pai dele pensando que Gonzaguinha seguisse o mesmo estilo. Não. Ele preferiu um caminho diferente, mas não menos brilhante. Daí para me encontrar, ao longo da adolescência, com canções memoráveis como "Grito de alerta", "Comportamento geral", "Sangrando" (que, para mim, sempre foi extraordinária), "O que é o que é?", "Lindo lago do amor" e "Eu apenas queria que você soubesse", entre tantas outras, foi um pulo. Melhor: um salto. 

Minha mãe tinha um CD da coleção Bis com os melhores sucessos do cantor e compositor que eu praticamente roubei para mim, de tanto que eu o ouvi. Eu lembro até da minha irmã mais nova, irritada, perguntando toda vez que eu colocava o disco pra tocar: "você só sabe ouvir isso?". E o pior é que naquela época eu realmente só queria ouvir aquilo. E nada mais. 

Gonzaguinha falou de praticamente tudo: do Morro de São Carlos (e como falou!), de palavras, das coisas da vida, das dores do palhaço, de meninos guerreiros, da fome crônica do país, da labuta diária do trabalhador, do índio alegre, de Geraldinos e Arquibaldos, de Santos e Silvas, dos garotos lendo revistas em banheiros, transformou até o feijão em protagonista musical de respeito. E um adendo pessoal: quando ela cantava samba, então, era um caso à parte.  

Na música dele "a casa era grande e cabia todo mundo". Pena que uma parte da crítica musical e da imprensa volta e meia preferia rotulá-lo como antipático, como pouco afeito ao meio social. Nunca percebi isso nele. Na verdade, eu sempre o enxerguei como alguém que não perdia tempo com as tolices da mídia tendenciosa e alienada e preferia gastar sua energia trabalhando à dar papo àqueles que confundiam meio artístico com vida vazia e fútil. E com esses, sim, Gonzaguinha foi implacável, chegando a se retirar do recinto (perfil esse, aliás, que o filme do diretor Breno Silveira, Gonzaga - de pai pra filho, traz algumas nuances). 

Não vou falar de sua relação problemática com o pai, pois isso os fãs de longa data já conhecem de cor e salteado. E, além do mais, este é um artigo-homenagem. 

Em 2019 a escola de samba Império Serrano escolheu a música "O que é o que é?" como seu enredo e teve reações divididas, entre os que gostaram da ideia e aqueles que acharam um erro. Mais Gonzaguinha que isso, que era um provocador nato, impossível...

Entretanto, depois de tudo o que eu disse até aqui, não posso deixar de mencionar um fato importantíssimo. Acredito piamente que minha admiração por Gonzaguinha tem muito a ver com uma característica específica: sempre vi em seu semblante e postura a cara viva do povo, que sai pra trabalhar todo dia, se fode, ganha mal, está sempre na berlinda e não foge da luta. E isso era completamente diferente de tudo o que eu via em muitos artistas nacionais daquela época. Não fosse assim, talvez o tivesse deixado pelo meio caminho como tantos outros. 

A sociedade brasileira não faz a menor ideia da falta que um artista como ele está fazendo no atual momento que o país vive. E isso, sem sombra de dúvidas, é uma lástima irreparável que eu espero que um dia se corrija.  

Fica com Deus, mestre. Sempre!


domingo, 25 de abril de 2021

É o que acontece quando passamos do limite


Definitivamente a humanidade é um estudo de caso sórdido. Por mais que eu reflita sobre ela, chego à conclusão de que não passamos de um grupo gigantesco de pessoas voltados à um moral fetichista, impregnada de vaidade excessiva e que só pensa em usar o próximo a seu bel prazer (e que se danem as consequências disso!). 

Olhemos ao redor por um mero instante e certamente nos depararemos com versões as mais diversas desse terrível animal que é o ser humano. Lógico que não são todos, mas também não são poucos. E nos últimos anos a demanda por este tipo de criatura contraditória e vil cresceu e muito e a mentalidade política e social é bastante responsável por isso. Não sei bem onde iremos parar nos próximos anos, mas certamente o cenário que vem se construindo não é nada bonito. 

E assim como existem aqueles que "deixam pra lá", que "não tem nada a ver com isso", que "só se importam com suas próprias vidas", há também um outro tipo mais ácido: aquele que decide revidar, que não vai deixar barato ou morrer no esquecimento. E Cassandra (Carrey Mulligan), protagonista de Bela vingança, longa de estreia da diretora Emerald Fennell, é dessas. 

Ficou marcada de forma perturbadora por uma tragédia ocorrida com uma amiga quando cursava Medicina na faculdade e não viu os algozes desse crime serem punidos. Na verdade, os viu prosperar, obterem sucesso, construírem família, tudo com o consentimento da leniência que é dada ao universo masculino toda vez que comete erros por um cultura eminentemente misógina. E ela percebe então que se não tomar uma atitude ela própria nada mudará. Nunca. E com isso trama sua vingança com requintes de sordidez proporcional à que sofreu. 

Há um aspecto na vida de Cassandra que me fez lembrar do conflito existencial que era a vida de Brandon, o viciado em sexo vivido por Michael Fassbender em Shame, de Steve McQueen. Enquanto ele não consegue se libertar de sua vida lasciva, mesmo quando encontra uma mulher disposta a dividir sua vida com ele, Cassandra simplesmente não consegue abandonar a ideia de vingança e seguir em frente com sua existência. Seus pais percebem isso, a mãe de sua amiga percebe isso, mas ela simplesmente não consegue desviar da rota que planejou. 

E isso sempre - ou quase sempre - costuma cobrar um preço amargo no final. 

Entretanto, ela também possui mais motivos para desconfiar da aproximação dos demais (principalmente de um antigo colega daquela época). Afinal de contas, quando estudante, testemunhou de perto a covardia que era dirigida às mulheres, que ainda por cima muitas vezes, tiveram que dissimular ou desconversar sobre o assunto, caso contrário teriam suas carreiras ou vidas destruídas. E isso, evidentemente, é um tapa na cara de quem não pode ser diferente da maioria que faz e acontece com a aprovação de um sistema corrupto e hipócrita. 

Gosto particularmente da trilha sonora do filme, que poderia apelar gratuitamente à Beyoncés e Katy Perrys, mas prefere tomar um outro caminho. Ela meio que me fez pensar não somente na perda da inocência como também numa nova abordagem sobre temáticas como canções de ninar, contos de fadas e todo o universo infantil. (Detalhe: prestem atenção numa versão modernizada de um música de sucesso da cantora Britney Spears. Achei o arranjo não somente interessantíssimo e inovador como ele também antevê todo o macabro desfecho da trama).  

Passada tanta dor e tanto desrespeito, o legado que o filme de Emerald me trouxe foi: não caiam na tentação de transformar o longa num libelo a favor do empoderamento feminino. Ele é muito mais do que isso. Bela vingança fala, no final das contas, do que acontece quando nós, seres humanos, passamos do limite e deixamos de respeitar o outro. E quando esses seres humanos pertencem a uma classe privilegiada, então, é um caos generalizado. 

Vai ter muito homem conservador ou velha guarda chamando essa produção de revanchista ou "cheia de mágoa" e desde já adianto: eles provavelmente não entenderam nada do que viram e ainda por cima defendem o outro lado, por uma questão de identificação pessoal. Mas isso é problema deles, não do filme, que é direto em suas intenções (às vezes até demais).

P.S (ou um palpite): pelo que eu tenho visto na temporada de prêmios desse ano a atriz Carrey Mulligan é uma forte candidata ao Oscar de melhor atriz. Eu certamente votaria nela se fosse membro da Academia.  


quinta-feira, 22 de abril de 2021

Reloading...


Música é uma coisa louca, não é mesmo? Quando menos se espera ela subverte completamente a lógica e explode qualquer resquício de convicção que nós tínhamos até então.

E o mercado fonográfico está certo em dizer que há artistas e artistas. E cabe a nós, ouvintes, decidirmos o que realmente nos interessa musicalmente ou não e também entender quando o artista entra naquele momento da carreira que antecede uma virada. 

A cantora Pitty, por exemplo, me interessou desde que a ouvi pela primeira vez na rádio (digo, na época em que eu ainda ouvia rádios comerciais, antes da popularização do you tube e do Spotify). Artista baiana que preferiu a fúria do rock ao axé e ao trio elétrico que Dodô e Osmar eternizaram. E desde o primeiro momento eu percebi nela um percentual de revolta bastante controlado, não evidente, que fazia com que o seu charme (e, lógico, sua voz) aflorassem. 

O tempo passou, a cantora gravou os encantadores Admirável chip novo (2003), Anacrônico (2005), Chiaroscuro (2009) e Setevidas (2014), bem como seus álbuns ao vivo, de turnê, e o projeto paralelo Agridoce. E eis que chega a hora de desbravar um novo caminho.

O nome dele: Matriz, gravado no ano passado. E eu percebo uma pegada diferente. Daquelas que me fazem pensar na hora: "eu preciso ver a versão show disso, ouvir a moça cantar diante do seu público e só então tirar ou confirmar minhas próprias conclusões". Mais: eu consigo ouvir uma cantora modificada, remodelada. 

E eu estava certo. 

Matriz ao vivo na Bahia, realizado um ano após a versão de estúdio, é o momento reload de Pitty. De recarregar as baterias, fazer as pazes com o passado glorioso, entender tudo o que funcionou até agora, antes de seguir em frente rumo a um novo horizonte. E ela se sai extremamente bem nessa função, sem deixar de lado sua postura de protesto e as letras ácidas. 

Para os fãs do óbvio, do comercial, aqueles que querem a confirmação de suas expectativas, há muito do que se orgulhar aqui. Seus maiores sucessos - "Memórias", "Na sua estante", "Teto de vidro", "Dançando", "Equalize", "Me adora", "Máscara", entre outros - estão presentes em apresentações arrepiantes. E o público canta junto o tempo todo. 

Já para quem busca novidades e desvios de rota há também um momento desabafo total (quem ouvir o disco vai saber do que eu estou falando na hora!) pelo caminho equivocado que o país vem tomando nos últimos anos. A própria cantora diz antes de tocar a música que "não imaginava que fosse precisar cantá-la de novo, que preferia deixar o passado no lugar dele", mas às vezes o que a vida nos propõe é não abandonar a batalha. E com isso ela transforma a canção num manifesto estiloso, que arrebata aplausos de seus fãs. 

No final das contas e, ao fim de mais de uma hora e quarenta de puro rock e adrenalina, nos deleitamos com o que a MPB - quando quer - pode oferecer de melhor. Sim, eu falei MPB. Rock nacional também merece essa classificação, embora muitos fanáticos do gênero não gostem de ouvir essa correlação (e isso é problema exclusivo deles!).     

Matriz ao vivo na Bahia é intenso, é melódico, é ternura, é música da mais alta qualidade, mas principalmente, é aquele mergulho que precisamos dar antes de tomar a decisão de mudar todo o trajeto e pegar um novo caminho. E Pitty está pronta para essa nova travessia, pois pesquisou, se atualizou, buscou novos ritmos e parceiros. Como disse no título deste artigo: fez um interessante reloading. 

Qual será o próximo capítulo desta história? Esta é melhor parte: o tempo dirá. E ela, com certeza, não tem a menor pressa de vê-lo chegar.


domingo, 18 de abril de 2021

Os novos peregrinos


Eu tinha por volta dos meus 20 anos de idade quando procurei numa biblioteca de bairro informações a respeito do regime de hipotecas que rege o mercado imobiliário norte-americano. Eu queria entender o que um cidadão da terra do Tio Sam precisava fazer para ser dono de sua própria residência. E a resposta que chegou até mim foi: fiquei extremamente horrorizado. A sensação que me povoou durante os meses seguintes foi a de que estava diante de uma sociedade manipulada, que gosta de ser feita de escrava. 

E como bom cinéfilo que sou, durante anos pensei: "Hollywood jamais exporá esta triste realidade num longa-metragem. É barra pesada demais e pior do que isso: eles não gostam de mostrar suas derrotas e distorções com muita facilidade".

Mas não é que uma cineasta chinesa decidiu falar do legado produzido por essa cultura sórdida e além disso se tornou favorita ao prêmio de melhor direção no Oscar desse ano? Sim, podem acreditar. A polêmica temática sobre moradia nos EUA chegou às telas do cinema feita de forma seca, crua, mas não menos visceral. E em tempos de crise financeira global e "a maior nação do mundo" mostrando que, na verdade, nunca foi tudo isso que vendeu para o resto do planeta, vale a pena dar uma fuçada nesse lamaçal. 

Refiro-me à Nomadland, filme da diretora Chloé Zhao, e a verdade sobre "A América será grande novamente", promovida pelo governo antecessor.

Acompanhamos a saga de Fern (Frances McDormand), uma mulher que simplesmente cansou da ideia de passar a vida inteira trabalhando por uma casa que no final das contas nunca será dela, pois a hipoteca foi criada com a clara intenção de mantê-la trabalhando até morrer, sob a desculpa de que no final ela realizaria o sonho da casa própria. Pura ilusão! E ela então decide morar em seu trailer, viajando de cidade em cidade em busca de pequenos trabalhos temporários e bicos. 

Sua melhor fonte de renda é um trabalho na Amazon que não dura o ano inteiro e por isso ela precisa preencher a lacuna com outros serviços. Do contrário, não conseguirá manter suas despesas pagas. E são muitas. Qualquer defeito no veículo, doença por menor que seja ou deslize ocorrido acarretará num ônus e isso pode afetar sua renda básica. Logo, ela vive uma vida cigana, sempre na berlinda. 

E durante sua travessia conhece muitos como ela, divide suas experiências e lamentações. Eles são os novos peregrinos dessa nação que, outrora, teve que viajar muito, bater muita perna, antes de fincar território num lugar que pudesse chamar de seu. E essa é exatamente a melhor história do filme. É quando conhecemos os Estados Unidos da América que os tabloides, a Casa Branca e a indústria cultural não querem que você, espectador, conheça. Já que esse país não venderia ao restante do mundo a pecha de grandioso, de maior potência mundial, que eles volta e meia apregoam em seus discursos e eventos majestosos.  

Houve um momento da película em que me peguei relacionando Fern e todas aquelas pessoas que vivem na estrada com o jovem Chris McCandless, personagem de Emile Hirsch no filme Na natureza selvagem, de Sean Penn. A única diferença é que Chris decidiu abandonar sua casa e família porque não conseguia viver sob a ótica do sistema (ou seja: entendia sua vida dentro de uma ótica marginal). Já Fern desistiu do sistema por considerá-lo falho e injusto. 

E ela vê no discurso daqueles que não aceitam seu estilo de vida ou tentam vender para a sociedade a ideia de que o país fez a melhor escolha para todos uma espécie de manipulação muito bem construída pelos governantes. Tive, inclusive, a impressão numa determinada cena de que ela olhava para seu interlocutor como se ele fosse um indivíduo que acabasse de passar por uma lobotomia, tamanha a disparidade entre suas opiniões.

Ao final da projeção o que fica de mais evidente é a sensação de niilismo e cansaço daqueles que lutam contra a maré para sobreviver um dia de cada vez, pois foi apenas isto que lhes sobrou do chamado sonho americano há tantas décadas acalentado. 

Nomadland pode até não ganhar o Oscar de melhor filme e ser vencido, como tantos outros no passado, pelo eterno moralismo da academia. Filmes corajosos como O segredo de Brokeback Mountain e O resgate do soldado Ryan já viveram essa sina, perdendo para longas de gosto discutível e que perderam relevância meses depois da premiação. Contudo, dentre todos os candidatos desse ano e por tudo o que vem acontecendo no país nos últimos quatro anos, seria o postulante ideal ao prêmio. E alguns talvez me perguntem nesse momento o porquê. 

Respondo: porque às vezes, por mais dura que seja a verdade, e por mais que não queiramos enxergá-la, seja por vergonha ou covardia, ela precisa ser mostrada e reconhecida. E isso é mais justo do que vivermos eternamente na mentira.     


quinta-feira, 15 de abril de 2021

Uma pulp fiction tupiniquim


Sabe quando você anda cansado de ler as mesmas coisas, seja livro, hq, peça de teatro, roteiro de cinema, e acha tudo pasteurizado, criado para agradar um mercado que só pensa em mesmices, republicações de sucesso e continuações de franquias milionárias? Então... Essa semana, graças a uma graphic novel antiga, abandonada aqui em casa, eu me deparei com o legítimo sentimento de que ainda há gente corajosa produzindo o que quer, do jeito que acredita, sem precisar olhar atrás da nuca para atender à demanda de quem só pensa em faturar e o resto que se dane. 

E a premissa foi mais ou menos essa: 

Dois caminhoneiros, uma estrada, uma carga indecifrável a quem os entregadores sequer podem ver, interrupções e conflitos durante todo o trajeto.  Resumindo: um trabalho extremamente perigoso. A reunião desses poucos elementos já é o suficiente para termos uma história com requintes de crueldade e morbidez. Sem contar o clima dark proposto pelas aves negras sobrevoando as páginas da revista no começo e no fim da história.

Rafael Grampá, o quadrinista responsável pelo ácido e forte Mesmo Delivery, é isso até a raiz dos cabelos: sarcástico, contundente, afiado como uma lâmina de barbear e sem medir as palavras um segundo sequer. E não tem a menor vergonha de se apropriar de tendências e estilos que vieram se consagrando nas últimas décadas em várias vertentes artísticas. Da novela pulp ao cinema do inconsciente de David Lynch tudo interage com a obra de Grampá, que é múltipla sem fazer esforço.

Em sua incursão por esse universo roadie, obscuro, ele agrega desde as obsessões tarantinescas até um clímax que lembra, em parte, os contos sobrenaturais do mestre do policial Edgar Allan Poe. E para que não venham me acusar de ter deixado de fora a música, é fácil perceber a influência de artistas que vão de Pearl Jam a Nirvana, passando por Creedence Clearwater Revival, quando folheamos cautelosamente - e essa é uma palavra que precisa ser administrada com cuidado durante toda a leitura - página a página desse espetáculo visual. 

Seus traços brutos (tanto quanto os músculos de um dos caminhoneiros envolvidos na trama) que nem por isso perdem o rigor e a excelência quando unidos, compõem um conjunto muito bem tecido de cores e linguagem, deixando o leitor sem ar e, ao final da história, desejando mais e mais.

Grampá segue uma linha que tem se tornado referência no quadrinho nacional, principalmente depois da ascensão internacional de nomes como Gabriel Bá e Fábio Moon, que vêm arrebatando prêmios de renome no exterior. E esse estilo tem uma explicação muito fácil de ser definida pelos leitores: eles não tem vergonha de arriscar. Digo isso porque percebia nos quadrinhos brasileiros durante um tempo uma vontade incômoda de parecer tradicionais em excesso (salvo, é claro, exceções lendárias como Henfil, Angeli e outras feras de longa data). 

Já nessa nova geração de autores, ao contrário, não há limites no que concerne a responder a pergunta: "O que esperar quando se lê um trabalho desses jovens inquietos?". E esse é exatamente o grande mérito dessa obra gráfica. É inventiva e faz com que o leitor queira sempre um pouco mais no quadrinho seguinte.

Terminada essa experiência - pois trata-se de mais do que uma simples leitura -, chego a conclusão, como chegarão aqueles que ousarem enfrentar esse desafiador trabalho, de que mais do que mostrar um universo até então desconhecido para os leitores tupiniquins, Mesmo Delivery reinventa a arte gráfica nacional num patamar nunca antes visto na história da nona arte (pelo menos, a parte da história que nos interessa). 

Procurem outros trabalhos de Rafael. O cara manja! Por quê? Diálogos fortes, duros, sem pudor, batalhas sangrentas por motivos torpes ou medíocres, frases de duplo sentido, rixas, apostas e um sentimento misto de niilismo e redenção bem ao gosto do autor que vem se transformando num interessante legado do nosso mercado quadrinístico nos últimos anos. E isso por si só já vale uma bela conferida em seu trabalho. E quem quiser saber mais do que isso, aí só lendo... 


domingo, 11 de abril de 2021

Parece que vou a um lugar muito escuro


Definitivamente a fé, para a sociedade contemporânea, virou uma reles moeda de troca em meio a uma humanidade perversa e cínica que adora se esconder atrás de estereótipos religiosos para justificar suas intenções malignas. E não é preciso irmos longe para percebermos toda essa distorção comportamental. Ela está por aí, a olhos nus, fazendo das suas em tempo integral. E pior: com um sorriso de deboche nos lábios. 

Um colega meu das antigas, também cinéfilo apaixonado como eu, aparece aqui em casa com uma cópia do filme Saint Maud, da diretora Rose Glass, que venho correndo atrás já há algum tempo. Ele me diz que vou adorá-lo justamente porque traz em suas entrelinhas uma reflexão sobre esse aspecto mórbido da sociedade. E não está enganado. Pelo contrário. Me deparo - isso sim - com um longa de uma ferocidade assustadora e brutal desde o primeiro fotograma. Daquelas histórias que você precisa assistir não importa o quanto ela o incomode. E tudo isso porque está refletindo um traço visceral desse ser humano dos chamados "novos tempos". 

Maud (Morfydd Clark, absolutamente imprevisível) é uma jovem cuidadora que passou por um revés recente num hospital onde trabalhava e foi desligada da função. É contratada para tomar conta de uma ex-coreógrafa, Amanda Kohl (Jennifer Ehle), que encontra-se impossibilitada de andar por causa de um dano na coluna cervical. Conhece a rotina da casa, bem como os costumes de sua cliente. E embora ela pareça um tanto ousada em seus costumes para o seu gosto, tudo leva a crer que ambas se darão bem. 

O problema: Maud vê na coreógrafa e, principalmente, em suas escolhas de carreira, uma vida suja, polêmica, voltada para o mal. Quando se depara com uma matéria na internet acerca de um espetáculo do qual a artista participou em que ela se refere a sua relação com a arte como "às vezes parece que vou a um lugar muito escuro", ela fica horrorizada e, mais do que isso, acredita que Amanda está sob o efeito de uma espécie de possessão. Em outras palavras: para Maud, é o demônio que rege a vida de sua cliente.  E ela, por sua vez, se vê na condição de uma emissária de Deus e, por isso, tem a obrigação de curá-la desse mal, afastando-a de qualquer tentação. 

Nesse momento aviso aos leitores da crítica e possíveis espectadores do longa, que fiquem de olhos abertos para importantes entrelinhas que surgirão ao longo da narrativa. Não ponham a mão no fogo totalmente por Maud. Há, ao contrário, muito sobre o que duvidar no que diz respeito ao caráter da jovem cuidadora. E foi nesse exato momento que eu entendi porque o meu colega das antigas (lembra dele?) me emprestou esse filme. 

É possível fazer uma correlação evidente entre Maud e muitos membros de certos segmentos religiosos do nosso país e também do mundo. E me refiro à eterna mania que certos religiosos têm de ver o mal, o pecado, o errado, apenas nos outros, se escondendo atrás de uma falsa aura de pureza. Não somente isso: nunca presenciamos de forma tão forte um desserviço tão grande à chamada liberdade religiosa. Qualquer mentalidade ou raciocínio que fuja da cartilha desses segmentos extremistas é visto como "antiético", "anticristão", "contra a moral e os bons costumes" ou atenta "contra a moral divina", como se somente eles forem os verdadeiros detentores da palavra de Deus. 

Ou como bem diria o saudoso Renato Russo em sua canção Faroeste caboclo: uma mentalidade confusa, na linha "Se dizia que era crente, mas não sabia rezar".

Detalhe: poderia até dizer com folga que Maud, como personagem, é praticamente uma figura metonímica (ou seja: representa a parte pelo todo de um sistema desigual, cafajeste e que prima por conduzir a vida alheia - no caso, a daqueles que não se submeteram à vontade desta estrutura contraditória - segundo um modelo repressivo, pautando ideias, amizades, lugares, onde devemos ir, o que pensar, o que falar, etc), parcela de um projeto que visa à exclusão de qualquer possibilidade de diferença. 

Contudo, é preciso aquietar àqueles que possam estar temerosos com o fato de que este seja um filme gospel (e, portanto, tedioso). Nada disso! Saint Maud é terror dos bons, assustador em suas intenções e sabe deixar o jump scare e a cereja do bolo para o final. 

Vejo no longa de Rose Glass uma desconstrução (quase uma subversão) dos chamados filmes de exorcismo e a luta entre o bem e o mal. Aqueles espectadores que continuam idolatrando O exorcista, de William Friedkin, como o grande clássico do gênero, certamente verão aqui um interessante - e remodelado - exemplar. Entretanto, não esperem pelo modelo clássico. O terror, a meu ver, sempre foi mais do que apenas sustos, padres portando bíblias e água benta e adolescentes endemoninhadas. 

Agora é com vocês. Mais do que isso e eu entrego todo o élan do filme (e isso não se faz!).


quinta-feira, 8 de abril de 2021

A mãe do teatro carioca


O teatro, muito mais do que simplesmente interpretações extraordinárias e toda a equipe (figurinistas, cenógrafos, contrarregras, etc) que rodeia o espetáculo, é um organismo vivo. Mais do que isso: é praticamente uma segunda família na vida de quem vive dentro desse meio. Sou da opinião que ou você vive intensamente dentro desse universo ou é meramente um reles espectador ou crítico teatral. E não existe um meio termo para explicar de fato o que significa pertencer a este mundo complexo, mas não menos encantador. 

Logo, imagine a tristeza de quem adora o mundo teatral e as salas de espetáculo não poder, em pleno ano de centenário da dramaturga, escritora e professora Maria Clara Machado, nossa maior expoente nesse meio que comemoraria no último dia 3, se viva, a glamourosa data, assistir a uma peça sequer por conta da pandemia do novo Covid que continua fazendo vítimas por onde passa e é responsável direto pelo fechamento dos teatros (que viram nas sessões online uma válvula de escape para sobreviver). 

Parece ironia, mas não é. Amargo 2021! Se tudo se encontrasse na maior normalidade estaríamos certamente apreciando, junto com as crianças, aquilo que Maria Clara sabia fazer de melhor: encantar plateias ao redor do país. 

Fundadora do Tablado - escola e também companhia teatral das mais prestigiadas do país, que lançou muitos de nossos melhores artistas -, Maria Clara fez o meio teatral entender que não precisávamos tratar o público infantil de maneira diferenciada ou tatibitate. Via nos pequenos espectadores "seres extraordinários", sementes do que poderia ser o nosso melhor legado cultural. Dizia mais: "vejo nos frutos do tablado a salvação para o caos desse país". E levando-se em consideração o atual momento que o Brasil vive, de desmantelamento cultural do Oiapoque ao Chuí, é fácil perceber o quanto esta mulher inteligente e corajosa era também visionária.  

Sua obra é a essência do teatro amador, sem os recursos e o luxo dos grandes palcos. Contudo, isso não faz de sua arte um trabalho pobre ou menor. Pelo contrário. O método machadiano se tornou consagrado por aqueles que por ele trilharam seu caminho. E a lista é imensa; Certamente não teríamos grande parte do elenco de muitas emissoras de tv ou astros do cinema nacional não fosse a então "escolinha" de Maria Clara. E quem aprendeu a engatinhar lá dentro é eterno devedor. 

Vejo uma entrevista no site da EBC com o ator Marcelo Serrado, cria da casa, dizendo que ali fez de tudo: montou cenários, atuou, escreveu, produziu, dirigiu, deu aula e muito mais. Não se tratava de uma mera instituição de ensino tradicional e sim um lugar de convívio e coleguismo, onde todos aprendem e dividem com todos. 

Outra formada pelo Tablado, a atriz Fernanda Torres, chama Maria Clara de "a mãe do teatro carioca" e está certíssima. Não, meus caros leitores! Não é exagero, não. Não fosse seus fantasmas, dragões, bruxas e outras figuras sobrenaturais e os adultos de hoje (filhos do projeto de Maria Clara) não teriam a capacidade de sonhar, se encantar e, principalmente, se surpreender com o novo. Algo, aliás, que anda faltando e muito à sociedade brasileira contemporânea. 

A menina que veio de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro tentar a vida escreveu mais de 30 peças, traduzidas para o mundo inteiro e imortalizadas pelo público. Entre seus maiores sucessos cabe um parêntesis mais do que elogioso para espetáculos como Pluft - o fantasminha, A menina e o vento, O cavalinho azul, Maria Minhoca e A bruxinha que era boa. E o mais importante: defendeu em cada um de seus textos a máxima de que “A vida é uma só. E no teatro podemos ter várias vidas”. 

Em suma: via no palco um espaço libertador e transformador para qualquer ser humano que quisesse fugir da mesmice ou da zona de conforto cotidiana. 

Mesmo com a pandemia tolhendo grande parte da produção cultural, novidades sobre a obra de Maria Clara estão por vir. Dentre elas, um documentário - O tablado e Maria Clara Machado, da cineasta Creuza Gravina, que espera somente a fase negra passar para estrear nas salas de projeção - e uma nova versão live action (agora em 3D) da peça infantil Pluft, o fantasminha, sob a direção de Rosane Svartman. Portanto, esperemos ansiosos! 

E que no seu aniversário de 200 anos ela receba com todo o mérito e garbo as honrarias que não pode ter desta vez... 


domingo, 4 de abril de 2021

Réquiem apaixonado


Como começamos a falar sobre um gênio, alguém que consideramos um gênio desde a primeira vez em que o vemos, acompanhamos tudo o que faz, e ainda assim não percebemos que ele é lembrado como realmente merecia? Resposta (minha e unicamente minha): deixamos sua história de vida registrada de forma a não persistirem dúvidas sobre ela. 

E foi exatamente isso que a mulher que o acompanhou até o último dia da sua vida fez. 

Em 2015, quando o cineasta argentino Hector Babenco realizou seu último longa, Meu amigo Hindu, inspirado na sua própria experiência de vida e na aproximação da morte (Hector lutava contra um linfoma já há algum tempo), ele colocou no roteiro uma conversa entre ele próprio - interpretado pelo ator Willem Dafoe - e a dita cuja. Mais do que isso: tentava convencê-la a deixá-lo vivo mais um tempo, para que pudesse realizar mais um filme. E em determinado momento a morte lhe perguntava se ele pretendia falar mal dela em seu filme. 

No ano seguinte Hector falece, aos 70 anos, e nos deixa um legado único dentro da cinematografia brasileira. Contudo, o mais importante, é que sua última companheira, a atriz Bárbara Paz realizou anos depois um documentário sobre o cineasta, sua vida, sua paixão (no caso, a sétima arte) e, principalmente, transformou justo a morte num personagem humano, singelo, repleto de ternura e extremamente necessário para entendermos este grande homem. 

Com Babenco - alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou, a jovem Bárbara - que se mostrou uma grata surpresa, indo de mera participante do antigo programa Casa dos Artistas à interessante realizadora em seu primeiro longa - nos apresenta um réquiem repleto de sentimento e paixão. E antes que me perguntem do que se trata um réquiem, pego de empréstimo algumas definições que vejo na internet, como por exemplo: 1. Prece ou louvor feito pela igreja aos mortos, 2. Composição ou música que tem o texto litúrgico da missa dos mortos como tema. 

E é preciso abrir o jogo logo de cara: dizer que Babenco não é co-diretor neste extraordinário documentário é, no mínimo, desonroso com o mestre. Ele está a todo momento guiando essa jovem e promissora cineasta, apontando caminhos, ângulos de câmera, escolhas possíveis de narrativa, fazendo confissões, expondo erros que cometeu no passado por ser muito vaidoso ou intolerante. 

Como pano de fundo de luxo seu legado (como comentei acima). Vemos sua filmografia brilhante passar diante de nossos olhos e me encanto de novo por me reencontrar com clássicos como Pixote - a lei do mais fraco, O beijo da mulher aranhaLúcio Flávio - passageiro da agonia, Ironweed, Carandiru e tantos outros. Sinto vontade de revê-los na mesma hora. Quem sabe o faça nos próximos dias e queira resenhá-los também. Se há um diretor na história do cinema nacional cuja carreira eu não tenha reprimendas é Hector. Coloco-o junto à artistas como Pedro Almodóvar, Werner Herzog, Federico Fellini e Charles Chaplin, formando um grupo de gênios dos quais sempre sou suspeito para falar, pois adoro tudo o que fazem.  

Há uma passagem no documentário em que Babenco alega não ter realizado ainda sua grande obra. Cá entre nós... Tenho minhas dúvidas. Um homem que viajou doente para a Amazônia, só para rodar um filme complicadíssimo (e ainda operou entre um estágio e outro da produção); expôs sua própria condição como presidiário e teve a honra de ver Jack Nicholson e Meryl Streep como seu casal de protagonistas e ainda assim não realizou seu apogeu? Duvido! Só pode mesmo ser falsa modéstia. 

Entretanto, ele também era um homem ácido, cheio de ironias e questionamentos, que se recusava a morrer antes de deixar claro para o mundo que havia realizado sua missão na terra. Vivia dizendo que quando morresse desejava ir para Hong Kong de alguma forma (fosse como espírito ou num caixão). E definitivamente era um apaixonado pelas mulheres. Que o diga uma das últimas cenas do filme, numa sala repleta de amigos de carreira e da vida!

É dessa mistura de amores e fúria, paixão e deboche, que nos inebriamos com um projeto documental bárbaro e de uma verdade avassaladora do primeiro ao último fotograma. E o mais importante: do jeito exato que o próprio Babenco tanto gostava.

Ao final da sessão - que foi exibida na última semana na programação da Globo News -, enquanto os créditos passam, eu fico sentado no sofá refletindo sobre o que vi. E chego à conclusão de que mais uma vez, como vem acontecendo com muita frequência neste país nos últimos anos, perdemos um grande homem e um fantástico artista. Que pena! O país precisa de mais diretores como Babenco e mais filmes como esse.

P.S: o fato de Babenco - alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou ter vencido o Festival de Veneza como melhor documentário e ter sido o representante brasileiro na disputa do Oscar de melhor filme internacional deste ano é apenas um pequeno detalhe que abrilhanta ainda mais a importância deste grande filme. Não tentem enxergá-lo além disso!    


quinta-feira, 1 de abril de 2021

O camaleão das lentes


Algumas pessoas vieram ao mundo com a missão de fazer aquilo que sabem de melhor e nada mais além disso. Uns jogam futebol como gênios, outros escrevem como pouquíssimos, tem aqueles que se destinaram a ofertar a genialidade da sua voz, isso fora os que desenham, correm, pilotam, pintam e bordam. Já para o fotógrafo Bob Wolfenson o barato mesmo, aquilo que lhe dignifica, é captar a imagem das pessoas da maneira que melhor lhe apetece. E a sensação que se tem ao vermos suas fotografias é a de que ele fotografou praticamente todo mundo. 

Mais do que isso: ele vem fazendo disso a sua vida há exatos 50 anos sem parar! E eu fico cansado só de pensar como ele conseguiu todos esses flashes. 

Bob fotografou até gente que sempre se mostrou avessa à fotos (que o diga o rapper Mano Brown, do grupo Racionais MCs, que posou para ele recentemente numa capa da revista Elle). Fotografou dos mais ilustres e famosos aos mais anônimos, e mesmo assim não perdeu sua genialidade. É, sem sombra de dúvidas, pelo menos para este que vos escreve, o fotógrafo de pessoas mais famoso desse país. E ainda assim tem gente (leia-se: críticos) que acha pouco o legado dele. 

Vejo a notícia de suas cinco décadas de carreira num vídeo do Zeca Camargo no facebook e ele fornece a página do fotógrafo no instagram. Corro imediatamente para lá. Afinal de contas, fotografia é algo que mexe comigo (embora eu não goste de posar para a câmera de ninguém; nunca fez meu tipo ser modelo de nada!). Não bastasse o perfil na rede social, também dou um pulinho em seu site oficial, https://www.bobwolfenson.com.br/. Fico inebriado. 

Wolfenson nos oferece um passeio completo pelo país e também o mundo, indo da política ao mercado fonográfico, com direito à desportistas, artistas plásticos, top models, inclusive colegas de profissão. 

Somente pelas lentes desse mestre poderíamos testemunhar registros inusitados, como por exemplo a apresentadora Xuxa comendo uma banana, a nudez corajosa da modelo gorda Thaís Carla, Malu Mader fumando cigarro, os cabelos esvoaçantes de Hermeto Pascoal, as tatuagens contrastando com a pele branca da escritora Fernanda Young, Dinho Ouro Preto - vocalista da banda Capital Inicial - exibindo suas tranças rastafári, a modelo Ana Beatriz Barros enrolada numa cobra à la Luz del Fuego. E mais, muito mais. Procurem só para vocês verem. 

E mesmo quando não está clicando apenas celebridades e famosos em poses exóticas ou diferenciadas tudo parece grandioso diante de sua câmera: uma simples mesa de sinuca, as chaminés de uma fábrica, um salão de festa, o sorriso de uma prostituta, o caos provocado por uma enchente, celulares e animais apreendidos em operações policiais, passageiros cotidianos viajando em transportes coletivos, fachadas de prédios, azulejos, projetores de cinema... Nada passa pelo seu radar sem perder o viés da sensibilidade. 

Acham que acabou? Nada! Bob Wolfenson fez capas de discos e de livros, ensaios para a Playboy, pôsteres de longas cinematográficos, realizou até um projeto em que fotografava pessoas na rua. Se há uma palavra que cabe como uma luva quando nos referimos a ele é camaleônico. 

Sim, é isso mesmo que você leram: Bob Wolfenson é o camaleão das lentes. E não digo isso em detrimento de outros mestres da nossa fotografia, como Sebastião Salgado e Evandro Teixeira. Nada disso. É simplesmente uma percepção única que eu sempre tive a respeito do seu trabalho. Vejo-o como uma figura ímpar, seja dentro do mundo da moda, da publicidade ou mesmo como artista autoral. E, se como bem diz o verbete fotografia, o bom fotógrafo é aquele que "escreve com luz", então Bob é ficcionista e dos bons e figura rara nos dias de hoje quando se trata de narrativa. 

O garoto que se tornou fotógrafo por conta de uma Marilyn Monroe que apareceu melancólica numa foto de Richard Avedon (palavras do próprio artista da imagem) deu lugar à um fenômeno de mídia difícil de ser superado em seu metiê. E mais: não vejo na mídia uma pessoa sequer que não tenha gostado de ser fotografada por ele. Vide seu carisma em meio a quem trabalha no ramo. 

Passados dez parágrafos, chego aquele momento do texto que já sabia de antemão que iria acontecer: impossível falar tudo sobre o mestre. Ele é muito maior do que qualquer coisa que eu ainda vá dizer aqui. Logo, melhor encerrar este projeto de crônica e mandar vocês procurarem o trabalho dele por conta própria.  

Estamos combinados?