Definitivamente a fé, para a sociedade contemporânea, virou uma reles moeda de troca em meio a uma humanidade perversa e cínica que adora se esconder atrás de estereótipos religiosos para justificar suas intenções malignas. E não é preciso irmos longe para percebermos toda essa distorção comportamental. Ela está por aí, a olhos nus, fazendo das suas em tempo integral. E pior: com um sorriso de deboche nos lábios.
Um colega meu das antigas, também cinéfilo apaixonado como eu, aparece aqui em casa com uma cópia do filme Saint Maud, da diretora Rose Glass, que venho correndo atrás já há algum tempo. Ele me diz que vou adorá-lo justamente porque traz em suas entrelinhas uma reflexão sobre esse aspecto mórbido da sociedade. E não está enganado. Pelo contrário. Me deparo - isso sim - com um longa de uma ferocidade assustadora e brutal desde o primeiro fotograma. Daquelas histórias que você precisa assistir não importa o quanto ela o incomode. E tudo isso porque está refletindo um traço visceral desse ser humano dos chamados "novos tempos".
Maud (Morfydd Clark, absolutamente imprevisível) é uma jovem cuidadora que passou por um revés recente num hospital onde trabalhava e foi desligada da função. É contratada para tomar conta de uma ex-coreógrafa, Amanda Kohl (Jennifer Ehle), que encontra-se impossibilitada de andar por causa de um dano na coluna cervical. Conhece a rotina da casa, bem como os costumes de sua cliente. E embora ela pareça um tanto ousada em seus costumes para o seu gosto, tudo leva a crer que ambas se darão bem.
O problema: Maud vê na coreógrafa e, principalmente, em suas escolhas de carreira, uma vida suja, polêmica, voltada para o mal. Quando se depara com uma matéria na internet acerca de um espetáculo do qual a artista participou em que ela se refere a sua relação com a arte como "às vezes parece que vou a um lugar muito escuro", ela fica horrorizada e, mais do que isso, acredita que Amanda está sob o efeito de uma espécie de possessão. Em outras palavras: para Maud, é o demônio que rege a vida de sua cliente. E ela, por sua vez, se vê na condição de uma emissária de Deus e, por isso, tem a obrigação de curá-la desse mal, afastando-a de qualquer tentação.
Nesse momento aviso aos leitores da crítica e possíveis espectadores do longa, que fiquem de olhos abertos para importantes entrelinhas que surgirão ao longo da narrativa. Não ponham a mão no fogo totalmente por Maud. Há, ao contrário, muito sobre o que duvidar no que diz respeito ao caráter da jovem cuidadora. E foi nesse exato momento que eu entendi porque o meu colega das antigas (lembra dele?) me emprestou esse filme.
É possível fazer uma correlação evidente entre Maud e muitos membros de certos segmentos religiosos do nosso país e também do mundo. E me refiro à eterna mania que certos religiosos têm de ver o mal, o pecado, o errado, apenas nos outros, se escondendo atrás de uma falsa aura de pureza. Não somente isso: nunca presenciamos de forma tão forte um desserviço tão grande à chamada liberdade religiosa. Qualquer mentalidade ou raciocínio que fuja da cartilha desses segmentos extremistas é visto como "antiético", "anticristão", "contra a moral e os bons costumes" ou atenta "contra a moral divina", como se somente eles forem os verdadeiros detentores da palavra de Deus.
Ou como bem diria o saudoso Renato Russo em sua canção Faroeste caboclo: uma mentalidade confusa, na linha "Se dizia que era crente, mas não sabia rezar".
Detalhe: poderia até dizer com folga que Maud, como personagem, é praticamente uma figura metonímica (ou seja: representa a parte pelo todo de um sistema desigual, cafajeste e que prima por conduzir a vida alheia - no caso, a daqueles que não se submeteram à vontade desta estrutura contraditória - segundo um modelo repressivo, pautando ideias, amizades, lugares, onde devemos ir, o que pensar, o que falar, etc), parcela de um projeto que visa à exclusão de qualquer possibilidade de diferença.
Contudo, é preciso aquietar àqueles que possam estar temerosos com o fato de que este seja um filme gospel (e, portanto, tedioso). Nada disso! Saint Maud é terror dos bons, assustador em suas intenções e sabe deixar o jump scare e a cereja do bolo para o final.
Vejo no longa de Rose Glass uma desconstrução (quase uma subversão) dos chamados filmes de exorcismo e a luta entre o bem e o mal. Aqueles espectadores que continuam idolatrando O exorcista, de William Friedkin, como o grande clássico do gênero, certamente verão aqui um interessante - e remodelado - exemplar. Entretanto, não esperem pelo modelo clássico. O terror, a meu ver, sempre foi mais do que apenas sustos, padres portando bíblias e água benta e adolescentes endemoninhadas.
Agora é com vocês. Mais do que isso e eu entrego todo o élan do filme (e isso não se faz!).
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