segunda-feira, 30 de maio de 2022

O ator-referência


De novo a cultura e a arte nacional sofrem um terrível revés. E dessa vez - pelo menos para mim - o baque foi devastador.  

Ele era elegância, estilo, voz, postura e nem por isso deixou de fazer o homem do povo, com seus trejeitos e falares, quando o trabalho assim o pediu. Foi padre, governador, travesti, presidiário, escravo, policial, bicheiro de escola de samba, político corrupto... Na verdade, é mais fácil dizer o que ele não foi nas telas. 

De Macunaíma à O beijo da mulher aranha, de Orquídea Selvagem (um drama meio erótico de Zalman King protagonizado por Mickey Rourke e rodado aqui no país) à Rainha Diaba (provavelmente o filme que o definiu para muitos críticos), de Eles não usam black-tie à Carandiru. E isso tudo não explica 10% da carreira dele. 

Falo obviamente do mestre, da lenda Milton Gonçalves, que nos deixou hoje aos 88 anos. Nos últimos tempos ele andava sumido da tv e do cinema, após um AVC que sofreu em 2020. Uma pena. Qualquer pessoa fã da boa dramaturgia admirou Milton. 

Ouví-lo falar inglês era inebriante. Na verdade, a sua voz era um show à parte. Poucos artistas me deixaram a mesma impressão. Milton era o que eu chamo de o ator-referência e com folga. E não somente na atuação, embora tenha destacado esse aspecto da sua carreira. Na tv ele também dirigiu novelas icônicas, como Os irmãos coragem e a lendária Escrava Isaura

E não posso deixar de destacar também outro viés de sua carreira: a luta pelo reconhecimento dos atores negros dentro da classe artística. Para quem leu obras seminais como A negação do Brasil - o negro na telenovela brasileira, de Joel Zito Araújo (que também virou um documentário sublime), Milton foi uma figura fundamental nessa batalha que permanece até os dias de hoje, em tempos de matança e extermínios à etnia negra nas grandes metrópoles. 

Ao lado de figuras como Ruth de Souza, Haroldo Costa, Zózimo Bulbul, Abdias do Nascimento, entre outras feras, lutou com unhas e dentes pelo respeito ao talento dos artistas de cor. E quem acha isso pouca coisa não faz realmente a mínima ideia do que significa ser negro (e artista) num país como o nosso, que em mais de 200 anos nunca discutiu de forma sensata o que foi a escravidão.  

A partida de Milton Gonçalves, depois de tantos bons artistas falecidos recentemente, me faz pensar novamente (e ando cansado disso!) no quanto a classe artística anda empobrecendo ano a ano. A mídia infelizmente passou a evidenciar o que existe de pior em termos de arte por conta da falta de boa renovação. Os atores deram lugar aos reboladores de bunda e imitadores de vozes. E o pior: eles estão se achando. 

Como prêmio de consolação nos sobra seu legado artístico gigantesco. Em seu perfil no IMDb (que eu fui fuçar logo depois que soube da notícia de seu falecimento) constam mais de 170 créditos. Ou seja: um artista versátil, que fez praticamente de tudo um pouco. 

E pensar que ele fora esse ano tema do carnaval da Acadêmicos de Santa Cruz na série Ouro, mas infelizmente não pode desfilar. Triste ironia!

Mestre, fique em paz com uma certeza: sua contribuição para a cultura desta nação jamais será esquecida. E cabe a nós, fãs de longa data, fazermos com que novas gerações a conheçam também, nem que seja na marra. Toda felicidade do mundo, onde quer que você esteja! 


quinta-feira, 26 de maio de 2022

Ainda indomáveis


O cinema americano não se cansa de repetir a velha fórmula de sucesso e enveredar pelo mundo mágico da nostalgia. A eterna premissa de que "se funcionou ontem, pode funcionar hoje também" nunca esteve tão presente na meca do cinema. Entretanto, nem sempre ela é sinônimo de grandes realizações (que o diga, por exemplo, longas como Caçadores de emoção, da diretora Kathryn Bigelow, que em sua nova versão transformou-se num festival de ecobaboseiras e uma fotografia estilosa, tirando todo o mérito da produção original). 

Mas, às vezes, com boas intenções e um diretor que não se empolgue ou tente reinventar a roda, é possível realizar façanhas interessantes. E em meio a tantos remakes desnecessários e tentativas frustradas de trazer o passado de glórias hollywoodianas de volta, Top Gun: Maverick, do diretor Joseph Kosinski, se mostra uma grata surpresa em tempos de projetos grandiosos, mas com roteiros previsíveis ou toscos. 

O protagonista, vivido novamente por Tom Cruise (que começa a mostrar os sinais fisionômicos do passar da idade), ainda continua o mesmo rebelde de sempre e não à toa estacionou em sua carreira militar como Capitão. 36 anos se passaram e ele ainda arranja tempo para não seguir piamente as regras da hierarquia militar. E durante um teste para um caça que se pretende o mais veloz do mundo, ele abusa de seu talento e mete os pés pelas mãos de novo, sendo removido do projeto. 

E para onde mais poderiam enviá-lo? Exatamente. Para a velha escola que o formou como piloto. Só que desta vez ele terá que ser instrutor de um grupo de jovens pilotos cotados para uma missão praticamente impossível (o que, logicamente para os fãs de longa data do autor, remete a seu outro protagonista de renome: o agente Ethan Hunt). Maverick é certamente a pessoa menos indicada para o trabalho, mas seu antigo parceiro, Iceman (Val Kilmer), é o único a colocar a mão no fogo por ele. 

E há ainda uma outra atenuante para tornar a empreitada de Maverick ainda mais complicada: Rooster (Miles Teller), filho de seu antigo parceiro, Goose, é um dos pilotos que serão instruídos por ele, e possui uma rusga de longa data com o amigo do pai. Nem mesmo o ressurgimento da antiga namorada, Penny (Jennifer Connelly) servirá como facilitador ou alívio na hora em que ele estiver no olho do furacão, tentando transformador este grupo de jovens rebeldes - como ele próprio fora, no passado - em uma equipe. 

Quando o projeto de Top Gun: Maverick foi anunciado eu confesso que não colocava a menor fé nele e por uma razão óbvia: porque tudo o que o filme original, dirigido por Tony Scott, tinha de melhor ou não estaria na nova história por uma impossibilidade narrativa (caso de Goose, personagem de Anthony Edwards, que morreu no longa de 1986) ou por conta da idade excessiva do elenco feminino (Meg Ryan e Kelly McGuillis, para quem conhece a fama hedonista de Tom Cruise, dificilmente participariam do novo longa e por uma questão meramente estética). 

Contudo, é preciso reconhecer que queimei a língua e a nova versão tem, sim, seus méritos. O primeiro o de fazer alusão ao longa oitentista sem soar piegas ou forçado. E a cena em que Val Kilmer, que luta contra um câncer de garganta há anos, contracena com Tom, é para mim de uma coragem absurda dos produtores. Tenho certeza que na mão de outra equipe eles certamente teriam sacado ele do elenco também. 

Aliás, entre os novos pilotos, há um novo Iceman, metido até dizer chega, desses caras que "sempre se acham o melhor em tudo" e não admitem concorrência. E dessa vez há pilotos do sexo feminino também. Afinal de contas, são novos tempos e elas vêm provando, nos últimos anos, que se saem bem nas mais diversas carreiras e profissões. 

O melhor legado do filme de Kosinski: eles continuam, sim, indomáveis. E mais: capazes de assumir missões que nenhum homem em seu juízo perfeito aceitaria. As batalhas aéreas me deixaram sem fôlego e Tom Cruise ainda mostra que é o cara quando o assunto é "fazer cenas perigosas sem dublê" (e como eu disse num parágrafo anterior: ele não é mais nenhum menino!). O único exagero? Não sei porque tanto alarde em torno da canção "Hold my hand" (e, sim, eu senti falta de ouvir Berlin cantando Take my breath away). Mas fazer o quê... o fenômeno Lady Gaga ainda persiste na indústria. 

Mas chega de blá blá blá porque vocês precisam ver o filme e tirar suas próprias conclusões. Ao descer dos créditos, apenas uma conclusão concreta veio à minha mente: foi o melhor regresso de um blockbuster do passado que eu assisti na última década. E isso - acreditem! - não é pouca coisa, não.  


quinta-feira, 19 de maio de 2022

O mago grego


Psiu, ei! Você aí! É... Você que pensa que o único papel da trilha sonora num filme de cinema é enfeitar, enbelezar, dar requinte ao que já era bom. Definitivamente você nunca ouviu os melhores compositores da história. Não faz a menor ideia de quem foi Nino Rota ou Ennio Morricone (só para ficar no básico: dois autores fabulosos, responsáveis por muitas das obras-primas do audiovisual). Ou em outras palavras: você não entende é nada, absolutamente nada, de sétima arte. 

Sempre vi a música como o grande alicerce do cinema. Sem ela, os longas, curtas e documentários seriam peças frias, sem significado ou mesmo glamour. Conheço gente que só de ouvir a trilha de um filme diz na lata o nome, o ano de realização, o diretor, quantos Oscars ganhou, etc etc etc. Sim, meus caros leitores! É o poder da música dentro da indústria cinematográfica. 

E hoje fico sabendo, atrasado (o que é imperdoável), que o mundo do cinema perdeu um de seus maiores nomes quando o assunto é trilha sonora. Falo do grego Evángelos Odysséas Papathanassíu. 

Perguntam-me na mesma hora: quem é este indivíduo de nome difícil? E eu já escolhi colocar o nome de batismo dele aqui de propósito. Só pra provocar. Não se enganem! Se vocês, como eu, são fãs mesmo da sétima arte e não somente do que a Marvel e a DC produzem, sabem exatamente de quem estou falando. Afinal de contas, Vangelis é um lenda dentro dessa indústria tão notória e criador de muitas trilhas que falam por si só, independente do diretor e da produção na qual trabalhou. 

Melhor exemplo não conheço para definí-lo como sinônimo de boa música do que a trilha do longa Blade Runner - o caçador de androides, de Ridley Scott (1982). Até hoje, se eu continuo revendo o filme toda vez que ele é reexibido na tv a cabo ou exaltado em algum serviço de streaming, podem ter certeza: é, em primeiro lugar, por causa de sua exuberância musical. E olha que não foi nem aqui que ele foi agraciado com o Oscar. 

Esta honraria coube à também maravilhosa trilha do filme Carruagens de Fogo, de Hugh Hudson (1981), cineasta do qual nunca mais, infelizmente, tive notícias. E é bom que se diga logo, mesmo que me taxem de puxa-saco dele: Vangelis merecia mais prêmios. Sua música sempre mexeu comigo e, em grande medida, foi a alma das produções nas quais trabalhou.

Ouvir seu trabalho era o mesmo que me transportar para um universo paralelo ou uma realidade alternativa. E bastava que aguardássemos mais alguns segundos e provavelmente estaríamos vendo criaturas sobrenaturais nos dando tchau. Sua música não parecia algo desse mundo (e quando digo isso, falo sério!). Quem achar que exagero, procurem por sua discografia em algum Spotify ou Deezer da vida e tirem suas próprias conclusões.  

Assim como Morricone, citado anteriormente, Vangelis tinha a capacidade extraordinária que somente os grandes do seu segmento possuem de se apropriar dos projetos que participou, de tomá-los para si. Tanto que durante o final da década de 1980 e início de 1990 cheguei a me perguntar porque ele não dirigia seus próprios longas. Tenho certeza que seriam um luxo e um deslumbre à parte. Mas ele, no fundo, sabia que se entendia melhor com as partituras e bem fez ele. 

Em seu perfil no IMDb constam mais de 160 créditos na categoria trilha sonora e 81 como compositor (ou seja: uma carreira longeva). Nos últimos anos eu andei me perguntando por ele, que andava sumido. Ele preferiu se dedicar aos documentários e curta-metragens. Seus últimos trabalhos foram os podcasts The Sermon e Beyond the Sermon

Se William Shakespeare foi o nobre bardo, Carmem Miranda a pequena notável e Nelson Rodrigues o anjo pornográfico, certamente o melhor rótulo que cabe à Vangelis é o mago grego. Sua música foi pura mística que embalou os sonhos de uma geração faminta por boas canções. E mesmo tendo partido aos 79 anos de idade fica uma sensação de que ele ainda tinha muito a entregar aos seus fãs mais exaltados. Enfim... Que fique em paz junto com sua genialidade. Ele certamente a mereceu. 

P.S: ao pessoal que vai lá no Spotify e no Deezer dar uma conferida no legado do mestre, se encontrarem a trilha de 1942: a conquista do paraíso, também de Ridley Scott (1992), ouçam na mesma hora. É das coisas mais sublimes que eu já ouvi na vida. E eu jamais me perdoaria se esquecesse de citá-la aqui neste humilde artigo.

domingo, 8 de maio de 2022

Manifesto puro


"Tá foda, tá cada dia mais foda viver nesse país que não tem presente, na verdade nunca teve, mas adora falar sobre o futuro, sobre ser uma potência mundial, sobre ser uma cópia dos EUA ou da Europa embora não se preocupe com o básico para o povo". Eu escrevi isso anos atrás num artigo que fiz sobre literatura e nada mudou. Na verdade, piorou. E muito (é bom que se diga). 

De positivo? Saber que não sou o único a perceber tudo isso, a ficar enojado diante de tudo isso. Há quem também não só veja como transforme essa dor toda em arte. E não qualquer arte. O rapper pernambucano Criolo é desses e não é de hoje que vem chamando a minha atenção. Acompanho sua trajetória desde o álbum Convoque seu buda e digo logo, admirador de longa data que sou: é o melhor rapper do país na atualidade. E canta samba e tudo (procure por Espiral da ilusão e tirem suas próprias conclusões!). 

Com seu novo álbum recém-lançado, Sobre viver, ele desce ainda mais fundo em seu discurso agressivo porém necessário, mete a mão na lama com gosto e aponta sua metralhadora verborrágica para todos os lados. 

Os títulos das canções, antes mesmo de começarmos a ouví-las, já incomodam por osmose: "Diário do Kaos" (e o Kaos com K me remete imediatamente ao extraordinário livro de Jorge Mautner, outra pedrada no ego da sociedade que precisa ser redescoberto pelo povo brasileiro o quanto antes), "Pretos ganhando dinheiro incomoda demais", "Me corte na boca do céu a morte não pede perdão", "Quem planta amor aqui vai morrer", etc etc etc. Mais do que isso: elas refletem um país com imensa vocação para a omissão e o genocídio.

Para os fãs de parcerias, há o sempre magistral Milton Nascimento (para mim, "a voz" desse país que precisa urgentemente de vozes), Liniker, Mc Hariel e Tropkillaz, o que resulta numa mistura interessantíssima de influências. Contudo, o mais importante desse trabalho: Sobre viver é um manifesto puro. Um álbum que não tem pudor ou vergonha de expor as mazelas de um país que não reconhece suas próprias mazelas.

Entre os múltiplos desabafos, frases duras como "O primo é o crime, o crime é cofre", "Todo secundarista é um alvo marcado", "Só o amor pode te afastar do canhão", "Essa guerra não acaba/ e amanhã tudo de novo", "Somos a mágoa dessa estrutura", "O Estado é só uma criança sentada chupando manga", "No Brasil professor apanha, é processado"... A maioria delas, claro, mais destinadas à classe negra, menos abastada, e eternamente massacrada por nossos dirigentes. 

Há de tudo um pouco nas canções de Criolo: Ogum e Iemanjá (orixás andam na moda em tempos de Exu como enredo vitorioso da Acadêmicos de Grande Rio na Marquês de Sapucaí), citação da Bíblia, intolerância, luto, cansaço com a política nacional, a perda de um parente para a Covid, até mesmo a mãe do cantor e compositor, Maria Vilani, deu sua contribuição, pôs sua voz - pôs o seu - na reta. Tudo à serviço de um sonho. Um sonho de mudança. Mudança que nunca vem, mas precisa. Urgentemente. 

Deixo aqui uma dica de fã enjoado, que presta atenção em detalhes que a maioria dos ouvintes não querem prestar: fiquem de olho na percussão ao longo das faixas. É de um deslumbre que não se vê todo dia na MPB. E a MPB - em tempos de artistas de plástico que só sabem rebolar a bunda e cheios de marra que só sabem falar grosso - precisa e muito de elogios. Tem até o mestre Jaques Morelenbaum na faixa "Pequenina", o momento mais intimista e pessoal de todo o álbum. 

Dizer mais o quê? Nada. Vai ouvir e sentir o clima, preguiçoso, que eu não tenho obrigação nenhuma de explicar cada segundo do trabalho e, além do mais, vocês precisam conhecer algo mais além de sofrência, sertanejo universitário e Anitta liderando o spotify mundial. 

Peraí, peraí... Faltou dizer mais uma coisa, sim: a música brasileira precisa de mais registros musicais como esse Sobre viver. O quanto antes. Porque não é só sobre música. É sobre resistência.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Ele só queria fazer a diferença


É curioso continuar falando de Batman, seja como personagem cultural de uma era, seja como fenômeno pop. 

O homem-morcego chegou a oito décadas de existência três anos atrás sem sentir o peso do tempo. Na verdade, pertenço ao grupo dos que acredita que sob certa ótica ele até que rejuvenesceu, se reinventou e foi deixando pelo meio do caminho certos estereótipos incômodos que o acompanhavam (como, por exemplo, aquela velha lenda de que ele e seu parceiro Robin, o menino prodígio, tinham um caso amoroso). 

O problema maior para mim, desde que me entendo como fã do herói, é que quando ele começou a ser adaptado para o audiovisual sempre deixaram de lado aquilo que o personagem tinha de mais atraente: seu caráter detetivesco. Sim, meus caros leitores alienados! Batman é um detetive e dos bons.   

E ao contrário dessa premissa, a tv e o cinema sempre preferiram focar seja no pastiche (que o diga a série televisiva sessentista com o ator Adam West e o dois longas megalomaníacos e afeminados do diretor Joel Schumacher) ou num comportamento soturno e distante do seu alter-ego (e nesse sentido o ator Michael Keaton foi o que melhor incorporou o milionário distante Bruce Wayne, no longa de Tim Burton de 1989). 

Já tivemos a chance de vê-lo rodeado de mulheres lindíssimas - Kim Bassinger, Michelle Pfeiffer, Anne Hathaway, Marion Cotillard, etc -, enfrentando acionistas inescrupulosos dentro de sua própria empresa e, claro, à caça de psicopatas os mais diversos, com direito a um capítulo à parte para o arquiinimigo mais famoso dele, o Coringa. Contudo, o Batman investigador sempre ficou em segundo plano nessas histórias (com espectadores chegando a comentar que o personagem era coadjuvante dos vilões em sua própria franquia). Até agora. 

Batman, de Matt Reeves - baita diretor que revolucionou a franquia Planeta dos macacos - é uma grande (e deslumbrante) surpresa nesse sentido. E desde já adianto: porradeiro do jeito que os fãs da velha hollywood tanto gostam. 

Robert Pattinson veste o manto do homem-morcego e prova por a mais b que entendeu a indústria hollywoodiana como poucos. Entrega um Bruce Wayne atormentado, que não tem nada de milionário e ainda por cima convive com uma crise interna que simplesmente não o abandona de jeito nenhum. Sua única voz da consciência é o mordomo Alfred (Andy Serkis, que merecia mais tempo de tela), que também carrega traumas que não divide com o patrão. 

A Gotham City de Reeves é pura barbárie e não à toa ele traz como referência para seu longa o assassino Zodíaco, que barbarizou os EUA na década de 1970. Seus habitantes transitam no limiar entre "os fins justificam os meios" e o "vale tudo para se salvar". Carmine Falcone (John Turturro), antigo sócio de Thomas Wayne, a mulher-gato (Zoe Kravitz), o pinguim (Colin Farrell, soberbo), o Comissário Gordon (Jeffrey Wright), resquício da ética numa polícia afundada na corrupção e o magistral e psicótico Charada (Paul Dano, sublime) são personalidades disformes num jogo de xadrez mais do que macabro. 

Mais do que isso: Bruce Wayne começa e entender que seu pai não era tão ético quanto ele sempre imaginou e isso também interfere em seu juízo de valor. Contudo, isso é o que filme tem de melhor. Ao contrário de outras versões onde se tentou vender o heroísmo do personagem acima de qualquer outro raciocínio, aqui vemos um Batman que erra, se precipita, titubeia, não avalia todas as possibilidades e por isso recomeça e entende que errar faz parte do jogo. Em suma: o detetive é, acima de tudo, humano (logo, falho). 

Não quero contar nenhuma premissa da história para não estragar a experiência dos outros. Portanto, prefiro dizer que os criadores desse oitentão destemido - Bob Kane e Bill Finger - certamente ficariam orgulhosos ao ver o que Reeves fez com a criatura deles. O Batman de 2022, usando as palavras dele mesmo na película, é um homem que só queria fazer a diferença em meio a tanto caos. Se conseguirá ou não, só o tempo vai dizer. 

Até lá que esperemos a continuação (já anunciada na última CinemaCon, para júbilo dos fãs e nerds de carteirinha)!