"Tá foda, tá cada dia mais foda viver nesse país que não tem presente, na verdade nunca teve, mas adora falar sobre o futuro, sobre ser uma potência mundial, sobre ser uma cópia dos EUA ou da Europa embora não se preocupe com o básico para o povo". Eu escrevi isso anos atrás num artigo que fiz sobre literatura e nada mudou. Na verdade, piorou. E muito (é bom que se diga).
De positivo? Saber que não sou o único a perceber tudo isso, a ficar enojado diante de tudo isso. Há quem também não só veja como transforme essa dor toda em arte. E não qualquer arte. O rapper pernambucano Criolo é desses e não é de hoje que vem chamando a minha atenção. Acompanho sua trajetória desde o álbum Convoque seu buda e digo logo, admirador de longa data que sou: é o melhor rapper do país na atualidade. E canta samba e tudo (procure por Espiral da ilusão e tirem suas próprias conclusões!).
Com seu novo álbum recém-lançado, Sobre viver, ele desce ainda mais fundo em seu discurso agressivo porém necessário, mete a mão na lama com gosto e aponta sua metralhadora verborrágica para todos os lados.
Os títulos das canções, antes mesmo de começarmos a ouví-las, já incomodam por osmose: "Diário do Kaos" (e o Kaos com K me remete imediatamente ao extraordinário livro de Jorge Mautner, outra pedrada no ego da sociedade que precisa ser redescoberto pelo povo brasileiro o quanto antes), "Pretos ganhando dinheiro incomoda demais", "Me corte na boca do céu a morte não pede perdão", "Quem planta amor aqui vai morrer", etc etc etc. Mais do que isso: elas refletem um país com imensa vocação para a omissão e o genocídio.
Para os fãs de parcerias, há o sempre magistral Milton Nascimento (para mim, "a voz" desse país que precisa urgentemente de vozes), Liniker, Mc Hariel e Tropkillaz, o que resulta numa mistura interessantíssima de influências. Contudo, o mais importante desse trabalho: Sobre viver é um manifesto puro. Um álbum que não tem pudor ou vergonha de expor as mazelas de um país que não reconhece suas próprias mazelas.
Entre os múltiplos desabafos, frases duras como "O primo é o crime, o crime é cofre", "Todo secundarista é um alvo marcado", "Só o amor pode te afastar do canhão", "Essa guerra não acaba/ e amanhã tudo de novo", "Somos a mágoa dessa estrutura", "O Estado é só uma criança sentada chupando manga", "No Brasil professor apanha, é processado"... A maioria delas, claro, mais destinadas à classe negra, menos abastada, e eternamente massacrada por nossos dirigentes.
Há de tudo um pouco nas canções de Criolo: Ogum e Iemanjá (orixás andam na moda em tempos de Exu como enredo vitorioso da Acadêmicos de Grande Rio na Marquês de Sapucaí), citação da Bíblia, intolerância, luto, cansaço com a política nacional, a perda de um parente para a Covid, até mesmo a mãe do cantor e compositor, Maria Vilani, deu sua contribuição, pôs sua voz - pôs o seu - na reta. Tudo à serviço de um sonho. Um sonho de mudança. Mudança que nunca vem, mas precisa. Urgentemente.
Deixo aqui uma dica de fã enjoado, que presta atenção em detalhes que a maioria dos ouvintes não querem prestar: fiquem de olho na percussão ao longo das faixas. É de um deslumbre que não se vê todo dia na MPB. E a MPB - em tempos de artistas de plástico que só sabem rebolar a bunda e cheios de marra que só sabem falar grosso - precisa e muito de elogios. Tem até o mestre Jaques Morelenbaum na faixa "Pequenina", o momento mais intimista e pessoal de todo o álbum.
Dizer mais o quê? Nada. Vai ouvir e sentir o clima, preguiçoso, que eu não tenho obrigação nenhuma de explicar cada segundo do trabalho e, além do mais, vocês precisam conhecer algo mais além de sofrência, sertanejo universitário e Anitta liderando o spotify mundial.
Peraí, peraí... Faltou dizer mais uma coisa, sim: a música brasileira precisa de mais registros musicais como esse Sobre viver. O quanto antes. Porque não é só sobre música. É sobre resistência.
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