quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O crime nunca se sofisticou tanto como agora

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Está cada vez mais triste e difícil viver numa sociedade como a nossa, em que decisões são tomadas visando o lucro, a concentração de renda e o bem-estar de milionários que acreditam estar acima do bem e do mal em qualquer circunstância. O dinheiro, meus caros leitores, tornou-se praticamente uma constituição, um manual de regras dentro da realidade cotidiana em que vivemos. Se você tem, é o cara. Caso contrário, dane-se. E não conseguimos fazer nada que mude isso. 

Sempre tive a impressão, desde adolescente, de que a sociedade fosse perniciosa e interesseira por natureza. E talvez por isso meus relacionamentos sociais sejam tão complicados e dignos de uma boa análise (falo no sentido terapêutico mesmo!). E a razão de pensar assim é bem clara: acredito piamente que seres humanos são criaturas incompreensíveis. Por mais que tentemos entendê-los, eles sempre encontram uma maneira ou de nos confundir ou nos decepcionar. Eu sei, eu sei... É uma visão de mundo extremamente derrotista, mas confesso-a aqui a vocês com uma enorme franqueza. E não consigo ver mudança alguma à vista. 

Pois bem: meus temores aumentaram ainda mais nesta última semana depois que assisti ao novo filme do diretor Steven Soderbergh (cineasta famoso, a meu ver, por cutucar a onça com vara curta em assuntos espinhosos. Que o digam seus longas anteriores Traffic e Erin Brockovich!), o pequeno e extraordinário - embora alguns espectadores dessa nova geração viciada em franquias e remakes possam considerá-lo "uma grande bobagem" por não estar repleto de CGI ou efeitos especiais - A lavanderia

Steven dessa vez se debruça sobre o escândalo do Panamá Papers e explica o desdobramento da tramoia de forma mais eficaz e menos confusa do que fez o diretor Adam Mckay no também interessante A grande aposta

Duas figuras ilustres são fundamentais para entendermos toda essa maracutaia fiscal: os usurários e debochados Jurgen Mossack (Gary Oldman, fazendo o sotaque típico dos canalhas que sabem ludibriar os outros como ninguém) e o charmoso Ramón Fonseca (Antonio Banderas), sócios nessa empreitada e na arte de enganar investidores. 

Após passarem a mão em fundos de pensão e economias de centenas de pessoas ao redor do mundo (e enviar essa bolada para paraísos fiscais em locais paradisíacos) eles acabam por esbarrar com a pessoa errada quando dão o calote na simplória, mas não menos inteligente Ellen Martin (Meryl Streep, ótima!). É ela que decide investigar as intenções do escritório pertencente a dupla quando o dinheiro responsável pela indenização dada após a morte do marido num acidente de barco simplesmente desaparece da conta. 

Contudo, ela não é a única a ficar no prejuízo. Diariamente, milhares e milhares de pessoas ao redor do mundo vêem suas esperanças e projetos irem para o ralo após depositarem sua confiança em homens inescrupulosos como a dupla Mossack/Fonseca e suas empresas extraordinárias, que prometem um futuro de sossego, sem problemas financeiras, para seus investidores. 

Fiquei o tempo todo comparando a realidade mostrada no longa-metragem com as inúmeras pessoas aqui no Brasil que fazem contrato para comprar um imóvel na planta com determinadas construtoras e ao receberem o apartamento se deparam com um produto de péssima qualidade, isso quando ele não possui falhas estruturais graves. E o meu sentimento de repulsa quando ouço depoimentos na tv de representantes dessas mesmas empresas é o mesmo. "Acidentes acontecem", eles costumam dizer com a cara mais deslavada do mundo. 

Resumindo a ópera aqui narrada: A lavanderia nos mostra a que ponto chegamos em termos de ganância humana. Nunca antes na história da humanidade o crime se sofisticou tanto e de forma tão abjeta, tão atroz. E ao mesmo tempo tão brilhante. Nós, cidadãos de bem, nos tornamos reféns de seres execráveis que abusam de seu charme, seus paletós bem cortados e seus discursos polidos e bem embasados para arruinar a boa fé alheia. Está cada vez mais difícil acreditar em honestidade no mundo. E a tecnologia só piorou os fatos. 

Ao fim da projeção, mesmo sabendo do desmascaramento da quadrilha (assunto que ganhou projeção internacional e principalmente nos EUA, na época), meu cérebro ainda fica inquieto pensando na quantidade de pessoas que ainda passam pelo mesmo golpe, não foram ressarcidas e pior: nem sabem mais da existência dos ladrões, pois eles encontram-se foragidos, gozando de uma vida ótima (com o dinheiro dos outros, é claro!). 

E é uma pena (mais uma vez) saber que a única chance de vermos uma produção denunciatória e bem feita como essa é através de serviços de streaming como a Netflix, tendo em vista que as salas de cinema estão preferindo lobotomizar as pessoas com super-heróis e personagens sobrenaturais, ao invés de contar histórias relevantes e necessárias para entendermos o futuro do que chamamos de humanidade. 

Quer dizer: se é que isso ainda existe (pois tem horas que eu tenho a impressão de que já viramos uma bolha disforme e sem vida)

sábado, 26 de outubro de 2019

Ritual de iniciação


A todo momento me deparo com uma sociedade fetichizada, deslumbrada com uma versão de mundo onde o extraordinário e o espetacular tem mais valor do que a verdade e a ética. E isso em todos os lugares para onde se olhe: rádios, tv, internet, campanhas eleitorais, discussões entre namorados, mercado de trabalho, etc etc etc. Diante desse cenário claustrofóbico e desorientador, pergunto-me onde foi parar o verdadeiro significado da vida. 

Pois bem: nos últimos anos tenho adorado artistas, seja em que áreas de atuação trabalhem, que saibam valorizar temas como o cotidiano, o dia-a-dia, e não essa eterna mania de transformarmos nossa existência em algo mágico, grandioso, digno de status e inveja por parte dos demais. E o cartunista malasiano Lat, nesse sentido, me ganhou na hora com sua belíssima HQ O menino do Kampung

A graphic novel, que se passa no vilarejo que dá nome ao trabalho e é conhecido como a maior região mineradora do país, conta a história de formação do próprio autor (que ele transformou no pseudônimo Mat) desde o nascimento no seio de uma família bucólica até a idade em que precisará sair da cidade para realizar seus estudos. 

Em outras palavras: o autor realiza um grande ritual de iniciação para narrar o período que antecede sua vida profissional como cartunista e embora muitos que a leiam considerem sua vida cotidiana um tanto vã e vazia, diferentemente dessa indústria cultural que anda em voga no mundo nas últimas décadas, fabricando ídolos de plástico e formadores de opinião de péssimo caráter e conduta, ela diz mais sobre o mundo contemporâneo no qual estamos vivendo do que inúmeras publicações best-sellers que lemos hoje em dia e rotulamos de "a mais pura verdade". 

Desde o ritual que envolve o seu nascimento até a partida para outra cidade, onde estudará num internato, longe da família, vemos as desventuras e estripulias de um menino que conseguiu ser feliz com pouco (algo certamente inaceitável para os padrões da sociedade atual). Quando não está estudando o alcorão, Mat faz suas escapadas sem os pais saberem, vai pescar, conhece seus primeiros - e maiores - amigos, visita lugares proibidos para pessoas da sua idade, garimpa nos campos de estanho para descolar uns trocados, fica de olho nos dois irmãos menores, passa pela cerimônia do Bersunat (a chamada circuncisão, que acontece por volta dos dez anos de idade) e, claro, foge das surras promovidas pelos pais toda vez que se mete numa encrenca. 

Numa época onde o que importa no mundo quadrinesco são as façanhas de homens e mulheres repletos de superpoderes e criaturas sobrenaturais tentando a dominação do mundo e da espécie humana, talvez pareça um tanto entediante a leitura de O menino do Kampung para o público dito teen e muito provavelmente a revista encontrará seu público entre pessoas de mais idade. Pelo menos, eu tive essa impressão logo no começo da narrativa. Entretanto, recomendo aos mais jovens que conheçam a obra de Lat, pois ele mostra um lado do ser humano que anda em declínio neste final do século XX e início do XXI: o das relações sociais. 

O menino do Kampung fala, em linhas gerais, de vidas humanas sofridas, do enfrentamento do homem diante de uma realidade dura em países periféricos, de baixa concentração de renda e submissão à valores religiosos, onde a condição de vida é sempre tratada como um fio de navalha. E num território tão hostil quanto esse fica muitas vezes difícil acreditar em esperança e na velha máxima do "dias melhores virão". 

Quando vejo a última página do álbum, com o protagonista dentro do ônibus, partindo para sua nova jornada, e se despedindo dos colegas de infância, uma lágrima furtiva me foge aos olhos, pois também me lembro de minha infância e do quanto custou chegar à idade adulta. E é nessa hora que vejo o quanto o mundo piorou nos últimos anos. Ninguém se importa mais com o passado. Viramos uma sociedade de exibidos, de imediatistas, onde a história do outro é sempre perseguida, pois a nossa deve ser evidenciada a qualquer custo sob pena de nos tornarmos anônimos caso percamos a discussão (e isso seria, nos dias de hoje, um crime inafiançável). 

E qual é a moral dessa triste realidade? Ainda bem que podemos encontrar autores como Lat para nos colocar a par dos fatos e da vida como ela é, sem estrelismos ou exibicionismos. E a experiência do cotidiano nunca foi tão bem contada, nos mínimos detalhes, como nesta exuberante obra. 

Meus mais sinceros aplausos a quem consegue dizer tanto com tão pouco!

terça-feira, 22 de outubro de 2019

O assassino da família brasileira


Primeiramente um aviso de suma importância:

Esta crítica é desaconselhável para menores de idade e moralistas em excesso. Quem quiser seguir em frente, está por sua conta e risco! 

Era uma vez um cineasta de nome Neville D'Almeida, que decidiu seguir seu próprio caminho e suas próprias ideias e não se rendeu a um sistema hierárquico de produção. E apesar de saber das distorções culturais promovidas por seu país no que diz respeito a cultura e entretenimento, mesmo assim preferiu ser fiel a seu próprio talento e transgressão. O resultado disso: nasceu um dos artistas mais odiados - e formidáveis - da história da nossa sétima arte. 

Procurei pelo documentário Neville D'Almeida - Cronista da beleza e do caos, do diretor e crítico de cinema Mario Abbade, nos cinemas na época de seu lançamento no ano passado e quebrei a cara. Culpa de nosso circuito exibidor que adora boicotar produções cinematográficas que não atendem aos padrões do que os donos de cinema no nosso país querem de fato exibir. Frustrado, decidi esperar por sua exibição no Canal Brasil (provavelmente a única boia salva-vidas de muitos cinéfilos como eu que esperam por lançamentos nacionais e nunca encontram salas de projeção disponíveis para eles). E a consequência dessa espera foi a certeza de estar diante de uma produção brilhante e um dos melhores filmes que assisti neste ano. 

O filme viaja na mente sórdida e inteligentíssima de um de nossos maiores realizadores em toda a história da sétima arte nacional. Diretor de clássicos como A dama do lotação (durante 15 anos considerado a maior bilheteria da história do cinema nacional), Rio babilônia e Os 7 gatinhos, Neville é um provocador de mão cheia e a certeza de que nosso audiovisual também possui exemplares que não se submetem a regras impostas por políticas audiovisuais enfadonhas e leis de incentivo tendenciosas. 

O primeiro grande barato de assistir ao longa de Abbade é a grande discussão que ele promove ao conversar com antigos colaboradores de Neville sobre cenas polêmicas de seus filmes (muitas vezes taxadas de imorais ou pornográficas). Dentre as cenas analisadas, a da piscina em Rio Babilônia, que muitos consideram até hoje ter sido sexo real, Sônia Braga na cena do Ônibus em A dama do lotação, pela qual virou o maior mito sexual do cinema brasileiro e o jovem que assassina os pais a sangue frio em Matou a família e foi ao cinema, filme pelo qual o diretor ganhou a fama de assassino da família brasileira. Só pelo debate envolvendo os que o acusam de pornógrafo e tarado e os que defendem suas escolhas artísticas já valeu ficar acordado até as duas da manhã para ver o filme. 

Neville ficou mais associado ao cinema marginal do que ao chamado cinema novo e ele próprio faz uma crítica sobre o assunto no longa, chamando os integrantes do cinema novo de "os bons moços da sétima arte, os privilegiados" enquanto que aqueles que desafiavam a sociedade e o Estado vigente eram sempre rotulados de marginais, celerados, criminosos. 

O segundo ponto alto do filme a meu ver é um reconhecimento muito bem vindo (que eu próprio já fizera anos atrás, quando comecei a assistir seu trabalho) ao fato de que Neville D'Almeida foi o único cineasta nacional a realmente adaptar Nelson Rodrigues para o cinema como ele merecia. Ninguém na história do audiovisual brasileiro entendeu o anjo pornográfico e meteu o pé na lama por ele como Neville. E acreditem: quem conhece a obra de Nelson, principalmente a teatral, sabe que isso não é pouca coisa!

Entre polêmicas de bastidores (a história da festa que teria virado orgia por falta de estrutura e organização da equipe de filmagem, a imagem eternamente erotizada de que suas atrizes só poderiam trabalhar sem calcinha, pois do contrário não seria um fllme de Neville D'Almeida, etc) e entrevistas engraçadíssimas com atores e equipe técnica que trabalharam com ele (as declarações da Regina Casé por si só valem como um esquete de humor), o filme no final das contas nos apresenta um grande ensaio sobre uma mente subversiva de nossas artes, mas não menos brilhante. 

Se por um lado Neville não tem o reconhecimento dos mais intelectualizados e engajados politicamente (vide a polêmica por trás do filme Jardim de Guerra feito em 1968, em plena era do A-I 5 militar, e nunca exibido nos cinemas brasileiros por conta da censura), não é verdade que os membros do nosso cinema mais badalado na época (refiro-me à Glauber Rocha, Cacá Diegues, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, etc) o desprezassem. Pelo contrário. Ele é visto por muitos deles como o grande visionário da nossa sétima arte. 

O filme chega ao fim, após mostrar os últimos longas do diretor que não tiveram a mesma repercussão de seus dias de glória, mas não fiquei em nenhum momento com a sensação de estar diante de um cineasta datado. Continuo vendo artistas como Neville como forças-motrizes importantíssimas para entendermos o nosso cinema. Não fosse por esse senhor no passado certamente não teríamos hoje cineastas tão emblemáticos como Cláudio Assis e Gabriel Mascaro denunciando a hipocrisia de nossa sociedade. 

Levanto-me cansado do sofá para ir dormir, mas com a certeza de ter assistido um dos maiores documentos memoriográficos já feitos sobre a história do cinema nacional até hoje. E fico pensando tristemente: por que o nosso cinema não consegue hoje ter de novo um pouco dessa coragem, dessa ousadia, dessa vontade de dizer foda-se para o sistema? 

Ou resumindo:  será que em algum momento perdemos nossa relevância e não nos demos conta? Espero sinceramente que não. 

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

A peregrinação ontem, hoje, amanhã...


O que faz o teatro, arte maior dentre todas as artes pois ao vivo, diante de um cenário social onde nosso próprio direito à liberdade de expressão é tolhido e vê-se abertamente o retrocesso e a ignorância ganhando status e força dia-a-dia sem podermos sequer reagir? Simples. Ele recorre a voz dos mais necessitados e aquela que é considerada a maior obra literária brasileira do último século. Para quem não faz a menor ideia do que eu estou dizendo, refiro-me à João Guimarães Rosa e seu maior feito narrativo. 

Grande sertão: veredas, montagem teatral da multiartista Bia Lessa, pega carona num ontem de sofrimento (porém mais atual do que nunca em nossa sociedade fragmentada) para falar dos dilemas que provocamos hoje, agora, nesse país polarizado e cada vez mais ignorante, principalmente no que se refere à ética. 

A saga do jagunço Riobaldo, que busca prevalecer sobre seu arqui-inimigo Hermógenes, chegando a fazer um pacto com o diabo, enquanto almeja um final feliz com seu amor, Diadorim, é o retrato eterno da luta de classes que rege esse país contraditório desde os tempos em que Cabral aportou por aqui com suas caravelas. E nesse espetáculo extremamente midiático e moderno (é impressionante a maneira como a diretora remodelou a história, trazendo-a para os dias atuais sem perder a sua essência clássica), vale a pena ficar de olho, ser detalhista, para não perder um momento sequer de genialidade. 

A instalação que serve de palco aos atores é por si só um espetáculo à parte (tanto que pode ser visitada pelos espectadores a qualquer hora, antes mesmo do começo da peça, para que eles tenham dimensão da grandiosidade da montagem). Detalhe: nos assentos, os mesmos espectadores se deparam com fones de ouvido que deverão colocar para acompanhar a peça e ter uma percepção sonora completamente diferente da qual estamos acostumados nesse segmento. 

Quando as luzes se apagam e o show começa o que vi diante de meus olhos foi uma grande peregrinação (acredito ser essa palavra que melhor resume a montagem) de um homem humilde, sofrido, vivendo no cu do judas, mas que acredita na busca de sua redenção pessoal. Vejo em alguns sites algumas pessoas se referindo a Riobaldo como um grande filósofo e acho a comparação bem-vinda. Ele é um grande Sócrates do sertão, cheio de pequenas e brilhantes teorias. Mais do que isso: um homem que busca explicação para todo o sofrimento pelo qual tem de passar e mesmo assim o enfrenta com unhas e dentes. 

Contudo, ele não está sozinho nessa jornada. É acompanhado por seus amigos e seguidores, homens e mulheres que como ele já se acostumaram também a tanta provação e a falta de vontade política para melhorar a vida dos mais necessitados. 

Lembro que quando li o romance de Guimarães Rosa a primeira impressão que tive foi a de apavoramento. Era tudo tão real, mas tão duro, tão ácido, tão cruel, que me deixou arruinado, prostrado ao chão. Anos depois eu vi a adaptação feita pela Rede Globo em formato minissérie, com Tony Ramos e Bruna Lombardi na pele do casal Riobaldo e Diadorim e tive de novo a mesma impressão (no caso, apreensão) e virei fã de vez do texto, pela coragem de apontar o seu dedo acusador para o Estado cada vez mais leniente e opressor. 

Acho que foi a primeira vez na minha vida - e olha que já frequento teatro há tempos! - que eu gostaria de fazer parte do elenco de uma peça. Achei tudo tão vivo, dinâmico, de um brilhantismo e uma coragem únicas. A mesma Bia Lessa, por sinal, está fazendo também uma montagem inovadora de Macunaíma, obra-prima do modernista Mário de Andrade. E já fiquei curioso para assistir também. Mais que isso: quero captar mais um pouco da coragem desta mulher. Ah! As mulheres! Estão dando um banho nesse século XXI cheio de manhas e com vontade de guerrear por nada. Meu eterno respeito a elas.

O espetáculo se encerra e as pessoas aplaudem, choram, repensam suas vidas, repensam esse país controverso pós-eleições. Grande sertão: veredas é antes de tudo um convite à mudança, pedindo que nós, seres humanos covardes, tomemos uma providência. Não dá mais pra ficar de braços cruzados. A peregrinação não é só um momento. Ela é todo dia, ontem, hoje, amanhã, sempre. Pois os donos do poder nunca vão parar de nos castrar. Portanto, também não podemos parar de sonhar, não podemos desistir, não podemos entregar tudo de mão beijada. Agora não.

Mais do que nunca, agora é tudo ou nada. 

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

O show business é um campo de batalha


Quando era mais novo e escutava as estações de rádio em casa (minhas preferidas eram a Rádio Cidade e a Rádio Fluminense, conhecida como a maldita) eu tinha a impressão, toda vez que ouvia um artista que considerava foda, na linha Marvin Gaye, Gal Costa, Ray Charles, Legião Urbana ou Led Zeppelin, que sucesso era sinônimo de talento e ponto final. E me parecia fácil àquela altura da vida entender o sucesso desses artistas. Eles eram soberbos na maneira como conduziam seu trabalho e ponto. Esse tempo - como tudo mais na vida - passou e comecei a formular outras impressões à medida que figuras insossas como Britney Spears ou Justin Bieber tomaram conta da parada de sucessos. E então entendi a duras penas que o conceito de mercado era mais importante do que qualquer outra coisa. 

Em outras palavras: o que interessa, de fato, para o show business é a maneira como o artista deve ser vendido e não aquilo que ele necessariamente produz em forma de arte. Aliás, arte? Vivemos tempos de entretenimento rasteiro e olhe lá! E quem não gosta disso, que vá embora, que desligue o rádio, que não compre mais nada.

Esta semana assisti um filme que certamente atrairá o público teen por razões completamente diferentes das minhas, pois eles certamente ficarão encantados com o mundo pop de celebridades efêmeras, construídas por uma mídia cada vez mais tendenciosa. Falo do longa Teen Spirit, do diretor Max Minghella, que me trouxe de volta ao pensamento a ideia do quanto a indústria cultural pode ser nociva, muitas vezes, para a vida das pessoas (e a grande maioria da população mundial nem se dá conta disso). 

Teen Spirit conta a história da jovem Violet (Elle Fanning, fantástica!), uma adolescente de vida difícil, que luta para pagar as contas da casa onde mora junto com a mãe. Ela não difere de muitas jovens brasileiras, moradoras de subúrbio ou de favela, daquelas que "vendem o almoço para comprar o jantar". Contudo, ela possui um talento: a voz. E muito provavelmente talvez essa virtude seja sua última chance de dar uma volta por cima. Por isso, se inscreve num desses muitos reality shows musicais tão na moda atualmente, com filas gigantescas e candidatos numa quantidade quase insuportável. 

E é nesse momento que o diretor faz com que o espectador se distancie por um breve momento da jovem e talentosa cantora para lhe apresentar a um mundo sórdido, de cartas muitas vezes marcadas, e onde o talento e a capacidade de cada um, na prática, é o que menos importa para que o estrelato seja atingido. E mais: no momento em que você, espectador lúcido, se depara com esse mercado não vai mais querer tirar os olhos de lá até entender todo o processo em questão. 

Os mais jovens certamente não darão bola para esse filme dentro do filme, mas é justamente esse aspecto que faz com que o filme fuja do clichê eterno em hollywood do artista bem sucedido e sua trajetória de glórias. 

De um lado Violet tem o apoio de Vlad (Zlatko Buric), um antigo cantor de ópera, que também viveu seus dias de glória no passado, mas acabou engolido pelo mesmo sistema sórdido que agora almeja devorar a jovem e talentosa "estrela". E o próprio conceito de estrela precisa, sim, ser colocado entre aspas para que os cinéfilos entendam o quanto essa fama é fabricada por agentes que vivem de inventar pessoas célebres. Do outro, ela precisa enfrentar as garras da ambiciosa empresária Jules (Rebecca Hall), que fará de tudo para enredá-la, colocando-a como mais um produto nas prateleiras das lojas de discos e nas turnês mundo afora. Para qual lado penderá, então, a balança da jovem Violet? O da ambição ou o da lucidez? 

Ao final da sessão, a sensação que me ficou foi a de um meio-termo incômodo. E isso, ao contrário do que possa parecer, é o que o filme de Minghella tem de mais interessante. Pois em qualquer produção sobre esse tema prefiro a inconclusão amarga do que uma reles love story bonitinha, repleta de clichês inverossímeis e casais apaixonados (coisa, por sinal, que o cinema americano adora vender).

Violet é como Rihanna, como Kate Perry, como Ellie Goulding, como Anitta e Ludmilla aqui no Brasil. Ou seja: um produto a ser vendido e mudado de tempos em tempos, segundo os gostos e parâmetros de um público vazio e pouco exigente. Com o avançar da carreira, recorrerá cada vez mais a seu corpo e menos à sua voz, como tantas divas em ascensão no showbiz desde que essa expressão existe no mundo.  

E Teen Spirit - assim como o The Voice, o X-Factor, o American Idol, e tantos outros "fabricantes de talentos" - é o retrato opaco de uma indústria fonográfica que deixou de produzir verdadeiras lendas da história da música (leia-se: Jimi Hendrix, The Who, Barry White, Stevie Wonder, Whitney Houston, etc etc etc) para perder tempo com rostinhos bonitos, corpos esculturais e conteúdo zero.

Logo, o resultado dessa equação disforme é: que grande filme. E, infelizmente, que indústria cultural escrota! 

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Muito mais do que apenas lugares


Comecei a ler muito cedo (acho que já disse isso em outros artigos de minha autoria) e por conta disso aprendi a esmiuçar aquilo que a literatura tem de melhor. E não falo exclusivamente de personagens excêntricos, vilões extraordinários - Iago, de Othelo, me ganhou logo de cara! - ou narrativas que fogem do habitual, permanecendo geniais mesmo assim. Se há um conceito no universo literário que sempre chamou a minha atenção foram as cidades imaginárias. 

A capacidade de certos autores criarem seus próprios mundos (e, com isso, vidas totalmente originais) fez com que eu me debruçasse sobre o tema de forma quase doentia, principalmente na minha época de 18. 19 anos. 

E essa relação começa no momento em que tenho em minhas mãos o livro Itinerário de Pasárgada, do poeta Manuel Bandeira, uma obra extremamente confessional e comovente. O lugar onde eu poderia "ser amigo do rei" moveu meus sonhos de adolescente e fez com que eu prestasse atenção com mais carinho na possibilidade de novas cidades míticas surgirem. 

E os quadrinhos, nesse sentido, foram de vital importância para que eu desse segmento nessa busca. Tanto que hoje me pergunto se eu teria me tornado o leitor que me tornei se minha vida não tivesse esbarrado com Patópolis (a cidade dos patos da Disney), Metrópolis (a cidade protegida pelo Superman, embora a versão apocalíptica apresentada pelo diretor de cinema Fritz Lang, também seja muita boa) e a Gotham City de Batman e seus arquiinimigos. Provavelmente não. 

Entretanto, outras cidades, mais catárticas, também aportaram em minhas leituras, pelos motivos mais diversos. Shangri-lá, do escritor James Hilton, a cidade onde ninguém envelhecia, pelas razões óbvias (quem é que deseja de fato a chegada da idade adulta, meu Deus?), Dogville - criação do cineasta mais polêmico da atualidade, Lars Von Trier, feita única e exclusivamente com riscos a giz - pelo mistério aprisionante que envolvia aqueles personagens e a Macondo, magia em forma de literatura, produzida pela pena do genial Gabriel García Marquez, por suas excentricidades muito bem definidas. E se existe um leitor que adora excentricidades, esse cara sou eu. 

Na contramão desses logradouros, existem aquelas cidades que te apaixonam sem se esforçar muito. Despertam a curiosidade de maneira rápida e simples, e nos transportam no tempo. É o caso da Bedrock dos Flintstones, mistura de idade da pedra com as inovações tecnológicas do mundo atual; de arraial dos tucanos, endereço lúdico que marcou época na literatura e na tv brasileira por abrigar o sítio do pica-pau amarelo, de Monteiro Lobato; da tumultuada Springfield, cidade dos Simpsons, com seus moradores loucos e atualíssimos do ponto de vista social; da cidade das esmeraldas, de O mágico de Oz, com seus tijolos amarelos apontando o caminho certo e a nostálgica e mesmo assim moderna Hill Valley de De volta para o futuro, onde Marty Mcfly aprontou mil e umas para consertar a linha do tempo que ele próprio desordenou.  

Atualmente, as cidades andam mais soturnas e melancólicas (fruto dessa nossa sociedade fria e umbiguista). E o melhor exemplo para entendermos isso, pelo menos para mim, talvez seja a Sim City dos games (que, aliás, conheci através de minha irmã, que jogava muito isso, às vezes passando horas na frente do computador para construir uma reles casa). Uma vida corrida, de compromissos efêmeros e imediatos, onde os estratos mais baixos da sociedade muitas vezes são escondidos para não chamar a atenção do que realmente interessa. Por sinal, esse ponto me fez pensar em Zion, a cidade subterrânea da trilogia Matrix, dos irmãos Wachowski, onde vivem em regra os menos favorecidos. Ou seja: uma cidade muito parecida com essa em que vivemos diariamente, onde você é aquilo que compra, consome, possui. Do contrário, não é nada. 

E talvez por isso tenha parado de procurar autores novos, pois eles andam replicando em demasia o mundo real e deixando de lado a possibilidade de criar um mundo próprio, sem tantos parâmetros ou regras. Quem já leu Philip K. Dick sabe que ele narrou o futuro segundo convicções próprias, e não simplesmente emulando o mundo real. Tenho sentido falta disso no mercado literário!

No final das contas a impressão que me fica é a de que cidades imaginárias são muito mais do que apenas lugares onde pessoas moram, trabalham, curtem. São frutos de mentes inspiradas, visões pessoais de mundo, fetiches apaixonados. muitas vezes reflexões de autores que viram no tédio da vida cotidiana uma oportunidade para criar um mundo ideal, sem tantos vícios de linguagem ou comportamentais. 

E para os que pensam que isso possa parecer pouco ou quase nada, ainda mais num momento em que sociedade está ruindo, motivada pela ganância e o interesse material, fica aqui o meu mais sincero elogio a esses gênios da palavra, capazes de encontrar sua própria forma de sobrevivência em meio a uma realidade fragmentada, quase em ruínas.   

sábado, 5 de outubro de 2019

A loucura como instinto de sobrevivência


Eu tenho andado pelas ruas do Rio de Janeiro nos últimos tempos e acompanhado notícias a respeito do mundo pela internet e pela tv e confesso: ando descrente do que vem por aí. Tenho a legítima sensação de que a sociedade perdeu sua lucidez (e isso é muito grave!). Não é de hoje que percebo a falta de relevância da humanidade no que concerne a valorizar o que realmente merece valor. Todo dia me deparo com deformadores de opinião online, programações televisivas alienantes, feitas para lobotomizar uma sociedade que não tem parâmetro para quase nada. E pior: essas mesmas pessoas ainda buscam popularidade por seus atos, digamos, sórdidos. E acreditava piamente que estava vendo tudo isso sozinho. 

Até assistir Coringa, do diretor Todd Phillips.  

O longa - que ganhou a pecha de polêmico antes mesmo de ficar pronto, por conta de uma parte moralista da sociedade que adora colocar panos quentes ou cercear a liberdade dos outros quando bem lhe convém - conta a história de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix, devastador!), um sobrevivente deste mundo falido em que vivemos, que vive de pequenos bicos que faz como palhaço enquanto cuida de sua mãe enferma. Seu maior sonho é tornar-se um humorista do stand-up comedy tão famoso quanto o seu ídolo, Murray Franklin (Robert de Niro). Contudo, ele não se adequa ao padrão do que a sociedade conservadora considera "apto" para uma carreira como essa, e passa sua existência lutando para permanecer vivo um dia de cada vez, enquanto paga as contas. 

Ele volta e meia é agredido, sofre deboche de seus próprios colegas de trabalho, é visto como "o esquisito" do local. E sua risada sarcástica, fruto de uma condição psicológica que possui, retrata melhor do que palavras a maneira como ele se posiciona diante do sarcasmo e da ironia dos demais. 

A partir do momento em que comete seus primeiros assassinatos e logo a seguir conhece a verdade sobre sua própria história de vida um gatilho é disparado em sua mente e tudo aquilo que ele manteve aprisionado dentro de si, tentando compreender ou fazer parte do contexto social, perde completamente o sentido. E é nesse exato momento que sua loucura - que nada mais é do que uma forma de instinto de sobrevivência em relação ao mundo - toma controle da situação, fazendo nascer um dos seres humanos mais brutais e maquiavélicos que já existiram.

Pior do que isso: seus atos bárbaros e levianos viram motivo de orgulho para a parte menos favorecida da sociedade (os chamados palhaços, na visão de quem detém o poder e nada faz pelos mais pobres). Ele passa a ser visto como um símbolo desse reacionarismo muito vigente no mundo contemporâneo em que habitamos, e talvez por isso muitos espectadores comecem a dizer que o filme não passa de uma glamourização do mundo do crime e da bandidagem, algo que já havia acontecido anos atrás com o longa O lobo de Wall Street, de Martin Scorsese, sobre a vida dos inescrupulosos agentes da bolsa de valores norte-americana.

Pergunto-me então nesse momento: como impedir o inevitável, quando nos deparamos com um mundo extremamente dividido, desigual e baseado numa concentração de renda brutal? Que me desculpem os defensores da moral e dos bons costumes, mas me parece quase impossível que num contexto desses não apareça um louco como Arthur Fleck. O contrário é que seria uma grande ironia. 

Como pano de fundo à paranoia do Coringa, o diretor - que ficou consagrado aqui no Brasil pela trilogia Se beber, não case - recorre a filmes icônicos dos anos 70, como Táxi Driver e Rede de intrigas e traz um pouco do espírito anárquico do extraordinário O rei da comédia

Aliás, falando em anarquia, a construção do personagem feita por Phoenix, que mostrou uma fisicalidade que eu não via no cinema desde os tempos de Buster Keaton, dá margem - pelo menos para mim - para pensá-lo como um grande agente da anarquia deste século XXI, que anda prometendo em seus discursos de ódio uma "nova ordem mundial" baseado certamente em atos catastróficos. 

O monólogo final do protagonista e todo desastre recorrente por conta disso, confesso, me deixou apavorado sobre o mundo em que estamos vivendo, bem como temeroso sobre o tipo de espectador que assistirá este filme. Não o recomendo para pessoas de estômago e cabeça fraca. Seu roteiro, embora simples, é duro, incisivo, parece uma faca na jugular dos moralistas de plantão. Não é à toa que tem tanta gente temerosa dele sendo exibido numa época como atual. Porém, ao contrário dos conservadores, acredito sim que ele deva ser assistido e entendido nas suas entrelinhas, e não simplesmente aplaudindo ou repudiando sua violência. Já passou da hora de nós, como sociedade, encararmos a violência como um assunto a ser debatido seriamente e não varrido para debaixo do tapete. E nesse sentido Coringa dá um show à parte ao mostrar as distorções frequentes de uma sociedade ilógica e doente. 

Ao final da sessão, diferentemente dos filmes dos Vingadores, nada de aplausos. Não é um filme de super-heróis, onde homens de bem salvarão a nação de algum mal. Pelo contrário. é um filme que fala da sociedade como a própria vilã da história e isso deixa um gosto amargo na boca. Contudo, tem que ser desse jeito. Isso tem que ser engolido como um xarope ruim.

Pois ou acordamos ou o desfecho desse sintoma será ainda pior...

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Isso aqui é que deveria ser feminismo!


Há bastante tempo não resenhava um livro e por razões óbvias: a literatura, nos últimos tempos, anda escolhendo caminhos que me apavoram. E muito por conta disso, nos últimos anos tenho preferido ler não-ficção a romances de qualquer tipo. Em minha última incursão pela resenha literária, deparei-me com uma aberração de nome Múltipla escolha, do escritor Alejandro Zambra (que não passava de um mero teste vocacional realizado no Chile na época do governo Pinochet) e pensei comigo: será esse o fim da literatura e do mercado editorial?

Para a minha alegria não, meus caros leitores! Ainda há muito o que ser discutido aqui neste segmento. E o mais curioso é que o livro escolhido para este artigo é de autoria de Fernanda Young, recentemente falecida e cujo obituário também escrevi. Veja como são as coisas! 

Pós-F - para além do masculino e do feminino é, além da primeira obra de não-ficção da autora, um grande desabafo sobre esse mundo contemporâneo esquisito em que estamos vivendo. Constituído de oito colunas onde a autora esmiuça sua versão dos fatos sobre vários aspectos envolvendo o chamado "sexo frágil" (coloco a expressão entre aspas, pois nunca acreditei nessa visão de mundo em que a mulher precisa exercer um papel secundário ou coadjuvante sobre o que quer que seja), o livro certamente incomodará moralistas e misóginos de plantão. 

Pós-F incomoda desde as primeiras páginas, por conta das sarcásticas, mórbidas e por vezes imorais imagens que pontuam o livro entre um capítulo e outro. Um aviso para os leitores: estejam preparados para tudo. E quando eu digo tudo, é tudo mesmo!

A ideia geral de Fernanda é: as mulheres precisam urgentemente se rediscutir como gênero sexual e humano. É notória sua insatisfação com o modelo feminista vigente atualmente, bem como a postura de certas "mulheres" (as aspas aqui também são extremamente necessárias) diante desta suposta nova ordem mundial, que muitas vezes não faz mais do que pregar o retrocesso e um passado ilusório, mal contado propositalmente para as novas gerações. 

Entre as muitas pautas debatidas aqui, há espaço para a escritora entender os limites da liberdade (parece contraditório, mas quando levamos em consideração o fato de que vivemos numa sociedade que confunde liberdade com libertinagem, essa abordagem se faz necessária); esmiuçar sua própria relação conturbada com o feminino (Fernanda teve relacionamento amoroso com mulher e soube absorver o melhor dessa experiência, ao contrário de muitas mulheres que preferem esconder isso no seu baú de memórias); criticar essa postura do "vamos mudar de sexo" de pessoas que nunca experimentaram o seu próprio corpo; denunciar o exagero que há por trás dessa indústria do assédio sexual (o que me fez pensar na grande moral hipócrita que corre por trás de certos apoiadores de movimentos como o #Me too em hollywood); além de retificar - e citar como exemplo ela mesma - a importância da mulher que deseja mais da vida do que simplesmente ser a dona-de-casa. 

E não bastasse tudo isso, ainda há espaço entre uma coluna e outra para pequenos esquetes envolvendo sua dupla de personagens mais famosa (falo de Rui e Vani, casal do seriado de tv Os normais) e cartas as mais diversas, onde conversa com seus defeitos e demônios pessoais. Aliás, estas pequenas incursões são uma cereja do bolo, um adendo para entendermos a personalidade complexa (e divertidíssima) da escritora. 

Ao fim do livro, Fernanda conversa com sua própria culpa por erros cometidos no passado, transformando-a num personagem irônico, e provando sua maestria e talento para lidar com temas escabrosos sem perder a elegância. Achei a escolha acertadíssima e a cara dela. 

Termino a experiência literária convicto de duas coisas: 1) ao contrário do que imaginava, ainda há espaço para bons livros entre meus artigos; eu só preciso encontrá-los em outros estabelecimentos, pois estava indo nos lugares errados e 2) o país não tem a menor ideia do talento artístico e intelectual que perdeu com a morte de Fernanda Young. Uma mulher inteligente, sagaz, moderna, que não leva desaforo pra casa nem se submete a qualquer sistema de ideias imposto. Ou seja, tudo que o Brasil anda precisando atualmente. 

E ainda tem gente por aqui, nesta Ilha de Vera Cruz mal acabada, com medo de pessoas assim e rendendo homenagens a deformadores de opinião e fascistas de carteirinha!