sábado, 26 de outubro de 2019

Ritual de iniciação


A todo momento me deparo com uma sociedade fetichizada, deslumbrada com uma versão de mundo onde o extraordinário e o espetacular tem mais valor do que a verdade e a ética. E isso em todos os lugares para onde se olhe: rádios, tv, internet, campanhas eleitorais, discussões entre namorados, mercado de trabalho, etc etc etc. Diante desse cenário claustrofóbico e desorientador, pergunto-me onde foi parar o verdadeiro significado da vida. 

Pois bem: nos últimos anos tenho adorado artistas, seja em que áreas de atuação trabalhem, que saibam valorizar temas como o cotidiano, o dia-a-dia, e não essa eterna mania de transformarmos nossa existência em algo mágico, grandioso, digno de status e inveja por parte dos demais. E o cartunista malasiano Lat, nesse sentido, me ganhou na hora com sua belíssima HQ O menino do Kampung

A graphic novel, que se passa no vilarejo que dá nome ao trabalho e é conhecido como a maior região mineradora do país, conta a história de formação do próprio autor (que ele transformou no pseudônimo Mat) desde o nascimento no seio de uma família bucólica até a idade em que precisará sair da cidade para realizar seus estudos. 

Em outras palavras: o autor realiza um grande ritual de iniciação para narrar o período que antecede sua vida profissional como cartunista e embora muitos que a leiam considerem sua vida cotidiana um tanto vã e vazia, diferentemente dessa indústria cultural que anda em voga no mundo nas últimas décadas, fabricando ídolos de plástico e formadores de opinião de péssimo caráter e conduta, ela diz mais sobre o mundo contemporâneo no qual estamos vivendo do que inúmeras publicações best-sellers que lemos hoje em dia e rotulamos de "a mais pura verdade". 

Desde o ritual que envolve o seu nascimento até a partida para outra cidade, onde estudará num internato, longe da família, vemos as desventuras e estripulias de um menino que conseguiu ser feliz com pouco (algo certamente inaceitável para os padrões da sociedade atual). Quando não está estudando o alcorão, Mat faz suas escapadas sem os pais saberem, vai pescar, conhece seus primeiros - e maiores - amigos, visita lugares proibidos para pessoas da sua idade, garimpa nos campos de estanho para descolar uns trocados, fica de olho nos dois irmãos menores, passa pela cerimônia do Bersunat (a chamada circuncisão, que acontece por volta dos dez anos de idade) e, claro, foge das surras promovidas pelos pais toda vez que se mete numa encrenca. 

Numa época onde o que importa no mundo quadrinesco são as façanhas de homens e mulheres repletos de superpoderes e criaturas sobrenaturais tentando a dominação do mundo e da espécie humana, talvez pareça um tanto entediante a leitura de O menino do Kampung para o público dito teen e muito provavelmente a revista encontrará seu público entre pessoas de mais idade. Pelo menos, eu tive essa impressão logo no começo da narrativa. Entretanto, recomendo aos mais jovens que conheçam a obra de Lat, pois ele mostra um lado do ser humano que anda em declínio neste final do século XX e início do XXI: o das relações sociais. 

O menino do Kampung fala, em linhas gerais, de vidas humanas sofridas, do enfrentamento do homem diante de uma realidade dura em países periféricos, de baixa concentração de renda e submissão à valores religiosos, onde a condição de vida é sempre tratada como um fio de navalha. E num território tão hostil quanto esse fica muitas vezes difícil acreditar em esperança e na velha máxima do "dias melhores virão". 

Quando vejo a última página do álbum, com o protagonista dentro do ônibus, partindo para sua nova jornada, e se despedindo dos colegas de infância, uma lágrima furtiva me foge aos olhos, pois também me lembro de minha infância e do quanto custou chegar à idade adulta. E é nessa hora que vejo o quanto o mundo piorou nos últimos anos. Ninguém se importa mais com o passado. Viramos uma sociedade de exibidos, de imediatistas, onde a história do outro é sempre perseguida, pois a nossa deve ser evidenciada a qualquer custo sob pena de nos tornarmos anônimos caso percamos a discussão (e isso seria, nos dias de hoje, um crime inafiançável). 

E qual é a moral dessa triste realidade? Ainda bem que podemos encontrar autores como Lat para nos colocar a par dos fatos e da vida como ela é, sem estrelismos ou exibicionismos. E a experiência do cotidiano nunca foi tão bem contada, nos mínimos detalhes, como nesta exuberante obra. 

Meus mais sinceros aplausos a quem consegue dizer tanto com tão pouco!

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