terça-feira, 1 de outubro de 2019

Isso aqui é que deveria ser feminismo!


Há bastante tempo não resenhava um livro e por razões óbvias: a literatura, nos últimos tempos, anda escolhendo caminhos que me apavoram. E muito por conta disso, nos últimos anos tenho preferido ler não-ficção a romances de qualquer tipo. Em minha última incursão pela resenha literária, deparei-me com uma aberração de nome Múltipla escolha, do escritor Alejandro Zambra (que não passava de um mero teste vocacional realizado no Chile na época do governo Pinochet) e pensei comigo: será esse o fim da literatura e do mercado editorial?

Para a minha alegria não, meus caros leitores! Ainda há muito o que ser discutido aqui neste segmento. E o mais curioso é que o livro escolhido para este artigo é de autoria de Fernanda Young, recentemente falecida e cujo obituário também escrevi. Veja como são as coisas! 

Pós-F - para além do masculino e do feminino é, além da primeira obra de não-ficção da autora, um grande desabafo sobre esse mundo contemporâneo esquisito em que estamos vivendo. Constituído de oito colunas onde a autora esmiuça sua versão dos fatos sobre vários aspectos envolvendo o chamado "sexo frágil" (coloco a expressão entre aspas, pois nunca acreditei nessa visão de mundo em que a mulher precisa exercer um papel secundário ou coadjuvante sobre o que quer que seja), o livro certamente incomodará moralistas e misóginos de plantão. 

Pós-F incomoda desde as primeiras páginas, por conta das sarcásticas, mórbidas e por vezes imorais imagens que pontuam o livro entre um capítulo e outro. Um aviso para os leitores: estejam preparados para tudo. E quando eu digo tudo, é tudo mesmo!

A ideia geral de Fernanda é: as mulheres precisam urgentemente se rediscutir como gênero sexual e humano. É notória sua insatisfação com o modelo feminista vigente atualmente, bem como a postura de certas "mulheres" (as aspas aqui também são extremamente necessárias) diante desta suposta nova ordem mundial, que muitas vezes não faz mais do que pregar o retrocesso e um passado ilusório, mal contado propositalmente para as novas gerações. 

Entre as muitas pautas debatidas aqui, há espaço para a escritora entender os limites da liberdade (parece contraditório, mas quando levamos em consideração o fato de que vivemos numa sociedade que confunde liberdade com libertinagem, essa abordagem se faz necessária); esmiuçar sua própria relação conturbada com o feminino (Fernanda teve relacionamento amoroso com mulher e soube absorver o melhor dessa experiência, ao contrário de muitas mulheres que preferem esconder isso no seu baú de memórias); criticar essa postura do "vamos mudar de sexo" de pessoas que nunca experimentaram o seu próprio corpo; denunciar o exagero que há por trás dessa indústria do assédio sexual (o que me fez pensar na grande moral hipócrita que corre por trás de certos apoiadores de movimentos como o #Me too em hollywood); além de retificar - e citar como exemplo ela mesma - a importância da mulher que deseja mais da vida do que simplesmente ser a dona-de-casa. 

E não bastasse tudo isso, ainda há espaço entre uma coluna e outra para pequenos esquetes envolvendo sua dupla de personagens mais famosa (falo de Rui e Vani, casal do seriado de tv Os normais) e cartas as mais diversas, onde conversa com seus defeitos e demônios pessoais. Aliás, estas pequenas incursões são uma cereja do bolo, um adendo para entendermos a personalidade complexa (e divertidíssima) da escritora. 

Ao fim do livro, Fernanda conversa com sua própria culpa por erros cometidos no passado, transformando-a num personagem irônico, e provando sua maestria e talento para lidar com temas escabrosos sem perder a elegância. Achei a escolha acertadíssima e a cara dela. 

Termino a experiência literária convicto de duas coisas: 1) ao contrário do que imaginava, ainda há espaço para bons livros entre meus artigos; eu só preciso encontrá-los em outros estabelecimentos, pois estava indo nos lugares errados e 2) o país não tem a menor ideia do talento artístico e intelectual que perdeu com a morte de Fernanda Young. Uma mulher inteligente, sagaz, moderna, que não leva desaforo pra casa nem se submete a qualquer sistema de ideias imposto. Ou seja, tudo que o Brasil anda precisando atualmente. 

E ainda tem gente por aqui, nesta Ilha de Vera Cruz mal acabada, com medo de pessoas assim e rendendo homenagens a deformadores de opinião e fascistas de carteirinha!

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