sexta-feira, 29 de maio de 2020

Ervas daninhas


Às vezes eu gostaria, confesso, de ter a ingenuidade daqueles que acreditam piamente que competições como a Copa do Mundo e as Olimpíadas são capazes de melhorar os países que as sediaram. Infelizmente, a realidade (sempre triste, no final das contas) é bem outra. O que vemos é um país normalmente inventado para atender as necessidades de um grupo de capitalistas que não dão a mínima para nação nenhuma. Só querem mesmo saber é de show business e acumular contas bancárias fantasmas em paraísos fiscais. 

Termino hoje de assistir o interessante Os miseráveis, do diretor Ladj Ly - indicado ao Oscar de filme internacional esse ano - e, ao final dos créditos, penso sozinho sentado no sofá da sala: "É... o mundo sempre consegue piorar, por mais que tentemos consertá-lo ou curá-lo das adversidades". 

O filme - que não tem uma relação direta com o romance seminal homônimo do escritor Victor Hugo - é uma grande crônica sobre a estereotipia racial que habita a França nesse século XXI. E achei inteligente da parte do diretor abrir sua película com o dia da final da copa do mundo da Rússia, em 2018, quando a seleção dos azuis (os Le Bleu) venceram a Croácia na final. Digo isso, porque se trata da França que o governo e os tabloides querem que você conheça: a França vencedora, irretocável, sem defeitos, o melhor país do mundo para se viver. 

Mas como disse lá no meio do primeiro parágrafo: a realidade (triste) é bem outra. E logo nos deparamos com um caldeirão cultural e ideológico dos mais fortes. Tenho a sensação, a cada fotograma mostrado, de estar diante de indivíduos sentados em cima de galões de gasolina, aptos a explodir a qualquer momento. E acreditem: eles explodirão à menor fissura. 

A matéria prima humana vista aqui em nada difere daquela que os cinéfilos já conhecem de cor e salteado quando o assunto em pauta são os imigrantes (e muitas vezes eles se apresentam afrontosamente como mais cidadãos e éticos do que aqueles nascidos no país). Já vi muito dessa postura ofensiva em longas como Kids, de Larry Clark e Paranoid Park, de Gus Van Sant (e eu sei o que vocês vão dizer: "mas nesses filmes eles não eram imigrantes? Mas o contexto, no final das contas, é o mesmo!). Porém, há um adendo aqui: o sentimento legítimo de que essas pessoas não aguentam mais ser escravas de um regime capitalista e uma sistema de ideias que não as enxerga como parte da solução, mas do problema. 

Os jovens Issa (Issa Perica), que rouba um filhote de leão do circo, causando uma quizila entre ciganos e senegaleses, e Buzz (Al-Hassan Ly), que com seu drone intrusivo invade privacidades alheias; o truculento Le Maire (Steve Tientcheu), espécie de manda-chuva da região, aquele que decide quem faz o que, quando, onde e como; o trio de policiais que faz a ronda na área, mas está mais interessado mesmo é em explorar a boa fé alheia, pois se escondem atrás do distintivo da corporação e suas leis distorcidas; o religioso, mas misterioso Salah (Almamy Kanouté), que se esconde em seu restaurante e em sua fé contraditória, mas sabe bem tudo o que se passa na área e é sempre procurado para opinar sobre certas questões espinhosas, entre outras figuras, têm algo em comum: são ervas daninhas. 

Não. É isso mesmo que vocês leram: tratam-se de ervas daninhas, pois estão ali - na visão dos verdadeiros e conservadores franceses - para estragar toda a pureza e a dignidade que o país conquistou a duras penas da Revolução Francesa para cá. Eles são, para os nascidos na terra, os ingratos, os que deveriam voltar para sua terra natal e "deixar os cidadãos de bem em paz". (Sim, pois não é somente nos EUA que essa xenofobia acontece, não!). 

Quando o final se aproxima, as rivalidades não conseguem ser arrefecidas e o nível de tensão aumenta, num crescendo assustador (pois, cá entre nós, é meramente impossível que um barril de pólvora desses não acabe em revolução ou guerra civil, para dizer o mínimo) o que nossos olhos vislumbram é algo que nossa sociedade já conhece e não aguenta mais rever: o desespero, a fúria, o direito a não permanecer mais calado diante de tanta injustiça. O que eles, os jovens, a nova geração, querem é respeito. E lutar pelo que acreditam. Quando isso não é possível, pois o Estado quer vê-los sempre como subservientes, bum! o caos se instaura.  

Vi em alguns sites comentários que diziam que o diretor havia se inspirado em Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, para realizar tal desfecho. E a referência se faz presente, não pela exatidão, mas pela intenção de promover uma reflexão forte. 

Moral da história (se é possível uma moral nesse caso obscuro): o século XXI vê a promessa do capitalismo como solução para todos os problemas se dissolver de forma amarga e o que sobrou é um sentimento dúbio de impotência e hipocrisia. As nações do G8 - grupo do qual a França faz parte - querem se vender para o mundo através de suas conquistas e realizações, mas na prática o que vemos é preconceito e um abismo econômico e cultural atroz. Procurem saber sobre os refugiados que vagam pelo mundo e me corrijam se eu estiver errado. 

E só me resta gritar: pobres de nós, habitantes desse mundo controverso! 

P.S (eu vou me arrepender de ter escrito essa crítica se não falar isso): alguns jornais e tabloides disseram que o filme A vida invisível, de Karim Ainouz, perdeu a vaga no Oscar de melhor filme internacional na reta final para este filme por conta de uma distribuição melhor do longa francês. Caso isso seja verdade, espero que nossa sétima arte - quando todo esse clima ruim atual passar - aprenda a se vender melhor no exterior, pois a película de Karim é infinitamente superior a esta aqui em narrativa. Ou seja: continuamos sendo os vira-latas para a indústria cinematográfica americana, o que é uma pena. 

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Nem sempre a melhor leva


Não é de hoje que o meu interesse pelo desfile das escolas de samba na Marquês de Sapucaí diminui. É um processo que vem se desconstruindo ao longo da última década e por duas razões: primeira, a minha total convicção de que aquele desfile não representa, há anos, o real significado do carnaval carioca. E segunda, pois há anos venho reclamando dos resultados dos campeonatos. 

Já existe até um personagem típico nas apurações da quarta-feira de cinzas: o chamado anti-beija-flor. E isso por conta da quantidade de campeonatos que a agremiação de Nilópolis faturou seguidamente nos últimos anos, levando o caráter de descrédito a um patamar poucas vezes visto (acho que só quem se compara a isso é a Portela, e digo isso por causa dos torcedores mais antigos do que eu, que volta e meia cutucam os títulos da azul e branca de Madureira, taxando-os de "comprados pelo Natal"). 

Polêmicas à parte, passei anos me perguntando se algum dia um pesquisador sério faria um livro sobre carnavais que não faturaram o campeonato, mas mereciam mais do que a escola que ganhou. E eis que me aparece o jornalista Marcelo de Mello com o inebriante Por que perdeu? - dez desfiles derrotados que fizeram história

O exemplar abriga de forma detalhada dez enredos inesquecíveis - na visão do autor, é bom que se diga! -, abrangendo um período que vai de 1977 a 2004 (portanto, a obra começa anterior à construção do Sambódromo no Rio de Janeiro). E desde já adianto aos que gostam de polemizar e alfinetar: ele também incita uma dúvida sobre um título da beija-flor, fazendo com que o senso comum dos últimos anos continue ganhando força.

Mas a grande riqueza do trabalho está na pesquisa de Marcelo e, principalmente, na maneira apaixonada com que ele fala dos carnavais passados e do gênero em geral. 

Impossível não marejar os olhos ao me lembrar de Ratos e urubus... larguem minha fantasia!, enredo da beija-flor de 1989 (e o título que dá nome ao capítulo, "Quer que eu desenhe?", fala por si só, antes mesmo do autor entrar na questão polêmica do Cristo mendigo). Detalhe: nessa época eu morava em Ramos a três ruas da quadra da Imperatriz e mesmo assim não estou aqui comprando a briga dela. Digo isso porque o enredo proposto por Joãosinho Trinta me fez repensar completamente a estrutura e a maneira de se pensar aquele espetáculo. 

Para os que gostam de apontar seus dedos acusadores para os jurados, eternos culpados por estragar a festa de tempos em tempos, Marcelo esmiúça situações controversas e que deram pano para manga em suas respectivas épocas. E eu vi em sua escolha narrativa uma maneira de também mexer com o lado "lenda urbana" da festa. Afinal de contas, se não houver ti-ti-ti ao final da apuração e da entrega do troféu, não houve carnaval no RJ. Ou como diria Jorge Perlingeiro, locutor da apuração: "só uma ganha, mas as outras 11 não admitem perder!". (Eu sei, eu sei... Nem sempre só uma ganha).

Antes mesmo de chegar ao último capítulo com O sonho da criação e a criação do sonho: a arte da ciência no tempo do impossível, enredo vice-campeão de Paulo Barros para a Unidos da Tijuca em 2004, já estava apaixonado pelo livro. E não se esqueçam: trata-se de um livro sobre perdedores. E isso se deve também, em grande parte, ao fato de eu ter acompanhado capítulo a capítulo com o notebook aberto acompanhando os desfiles - até mesmo os antigos - no you tube. Façam também essa experiência. É praticamente uma viagem no tempo. 

De chato mesmo só o tamanho: pouco mais de 200 páginas. Sim, meus amigos! Na minha modestíssima opinião, poderia ser maior. Bem maior. Mas quem sabe ele não toma gosto depois desse e escreve outros (caso ele leia esta humilde resenha, sugiro um sobre blocos carnavalescos clássicos, como Cacique de Ramos, Bafo da onça, Escravos da Mauá, etc). Tenho certeza que os foliões agradecerão. 

E seguindo a premissa "nem sempre a melhor leva", mas sem se deixar levar por ressentimentos ou mágoas, o autor - que também é jurado do Estandarte de Ouro - nos apresenta um lado B do carnaval carioca na avenida, de forma elegante, bem humorada, e sem deixar de lado sua opinião crítica. Quer mais? Então procura o livro porque eu não vou dar spoiler, não! 

Eu quase não fiz dessa vez, mas... P.S: foi o primeiro livro que eu li nessa quarentena do Covid-19. É... Para alguma coisa boa esse isolamento serviu!

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Traidores da pátria podem ser fabricados


Quando conversávamos, meu pai volta e meia me dizia uma frase que nos últimos anos tem me acompanhado de forma insistente: "tome cuidado com os calhordas, pois eles sempre andam acompanhados, sempre andam em maior número; eles precisam de companhia para tramar seus planos sórdidos". Eu não entendia direito o que ele queria dizer com isso, já que era muito novo, mas hoje eu reconheço: ele estava coberto de razão. 

Vivemos, infelizmente, num mundo de acusadores. E haja espaço para tanta acusação infundada! A sensação que eu tenho é que perdemos a noção do que é legítimo, do que é verdadeiro, e passamos a comprar qualquer teoria ou lenda urbana que nos satisfaça. Eu sei... A sociedade não se cansa de apodrecer dia a dia. 

Entre os muitos acusados da atual indústria cinematográfica, principalmente em tempos de #Metoo, há um caso à parte e o nome dele é Roman Polanski. Não bastasse tudo o que ele passou na época do assassinato da sua então esposa, a atriz Sharon Tate, pela execrável família Manson, há anos ele precisa lidar com uma acusação de estupro - tem quem chame de condenação - crime cometido em 1979, à uma jovem menor de idade. Essa sina o acompanha desde que eu me entendo por cinéfilo e já li vários artigos e matérias sobre o caso. Na verdade, a figura pública de Polanski sempre me interessou, bem como sua obra cinematográfica.  

E eis que Polanski decide levar toda a discussão movida contra ele nessas últimas quatro décadas para uma abordagem artística, realizando o extraordinário O oficial e o espião, baseado no livro do escritor Robert Harris (autor que o próprio Polanski já havia adaptado em 2001, quando realizou o também ótimo O escritor fantasma). 

O oficial e o espião se utiliza do notório julgamento do Capitão francês Alfred Dreyfus (Louis Garrel), acusado de trair a pátria ao vender informações estratégicas para uma nação estrangeira, para refletir sobre o hoje, sobre o que hollywood se transformou depois das recentes e inúmeras acusações de assédio envolvendo a meca do cinema, e principalmente sobre aquele que eu considero o maior delito do ser humano: a inveja. 

Dreyfus, embora membro do exército, era justamente aquilo que a grande maioria dos cidadãos da época não gostava de ver na figura do homem bem sucedido: era judeu e um homem que não levava desaforo para casa, que lutava por seus ideais com unhas e dentes. E quando pensamos - quando eu, com certeza, penso - num homem desses dentro da hierarquia militar, logo dispara em minha mente um pisca-alerta: "em algum momento, vai dar merda". E ela aconteceu, levando o então capitão à detestável Ilha do Diabo, lugar para onde são mandados aqueles que o governo, o país e a sociedade querem definitivamente esquecer. 

O problema: a descoberta, por parte do Coronel Georges Picquart (jean Dujardin, vencedor do oscar de melhor ator por O artista), de que na verdade o traidor da pátria não foi Dreyfus. Ele nunca passou de um reles bode expiatório nas intenções de uma instituição corrupta até a medula. E Picquart decide investigar o caso, contra tudo e contra todos, levando sua própria carreira ao caos. Querem fazer dele um novo Dreyfus, para que todos entendam que ninguém pode desafiar o exército. 

Vejo na figura de Picquart muito do Polanski que hoje mal pode sair de casa. Ele virou uma versão moderada de escritores como Salman Rushdie e Roberto Saviano, perseguidos por terem opiniões que contradizem o que conhecemos como sistema. E aqui, nessa exuberante adaptação, ele dá um excelente tapa com luva de pelica na cara de seus detratores. 

Em outras palavras: aqui ele expõe as fragilidades do mundo, seja em que formato ou plataforma ele se apresente. 

Pausa para uma memória recente: vi um vídeo no youtube que mostra a reação furiosa do público à vitória do diretor no prêmio César deste ano. Acredito piamente que se um chimpanzé tivesse ganhado o prêmio naquela ocasião, sairia de lá ovacionado. Qualquer um poderia vencer a estatueta, menos Polanski. Contudo, vejo também muito de violência gratuita no ato. Mais: um desejo de colocá-lo no seu devido lugar. 

Polanski é diretor de longas fortes, em alguns casos incômodos, mas que marcaram época. O melhor exemplo disso em sua carreira é O bebê de Rosemary (quem nunca o viu, assista-o o quanto antes!). E depois do assassinato da esposa, como mencionei acima, ele virou uma espécie de persona non grata em hollywood, acusado de "atentar contra a moral americana". 

A acusação/condenação por estupro que o acompanha é apenas uma tampa no caixão oferecida por um segmento moralista do mundo, que adora eleger heróis e fabricar vilões ao seu bel prazer. 

Dreyfus, assim como Polanski (guardadas as devidas proporções), é também um traidor fabricado para atender as demandas conservadoras de um fragmento da sociedade. E nem mesmo o sublime discurso de Emile Zola em J'acuse foi capaz de o inocentá-lo perante certas pessoas. Infelizmente, ele teve de carregar consigo essa ambiguidade, essa dúvida. Acredito que Polanski terá que lidar com o mesmo dilema até o fim de sua carreira e, consequentemente, de sua vida. 

Vilão ou injustiçado, pois nunca saberemos o que ele (diretor) realmente é, no final das contas, pois a sociedade prefere o revanchismo, a vaidade e a inveja (tudo brilhantemente disfarçado de acusação) do que os fatos concretos, a verdade pura e simples. E como já disse antes em outras críticas que fiz: a verdade, na prática, nunca passa de uma versão dos fatos. E nós, seres humanos, nunca quisemos realmente que ela fosse mais do que isso.   

"Então o que nos sobra?", certamente perguntarão os cinéfilos mais interessados em saber se a película vale a pena ou não (e acreditem: vale e muito!). Sobra a nós a certeza de que Polanski continua vivo e com uma mente afiada, não disposto a se render ao discurso de seus algozes. Eu, que já o considerava carta fora do baralho dentro do mercado audiovisual, fiquei não só em êxtase como ansioso por seu próximo projeto. Longa vida ao mestre! 

P.S (dessa vez quase não teve, mas eu tenho que dizer uma coisinha): você, leitor desta crítica, que não gosta do indivíduo Roman Polanski, saiba diferenciar o homem do artista. São duas pessoas completamente diferentes. Isso vale também para Woody Allen, Alfred Hitchcock, e tantos outros...

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Não é só música, não senhor!


Eu e as minhas viagens interiores que só a música é capaz de proporcionar...

Podem me chamar de louco quem quiser, mas eu sempre imaginei a banda Pink Floyd como uma grande experiência sensorial. Dizer que eles são só rock é não entender (a meu ver, pelo menos) o que é realmente a banda. 

Detalhe: toda vez que eu reassisto filmes de ficção-científica antigos, como Laranja mecânica, THX 1138, Fahrenheit 451, Blade Runner: o caçador de androides, dentre outros, eu fico pensando que eles seriam o grupo ideal para realizar a trilha sonora da película. Ouvir Pink Floyd, para mim, é como ouvir um grande cântico, com viés reflexivo.

Pois bem: em tempos de quarentena (e esse vem virando um mantra que acompanha meus últimos tempos), me deparo com a presença do show Pulse - de 1995 - dando sopa 0800 no youtube e decido, é claro!, me sentar para apreciar a apresentação.

E que apresentação!

Pulse é a despedida do Pink Floyd dos palcos e está chegando à sua bodas de prata, sem envelhecer um ano sequer. Trata-se de uma das experiências sonoras mais inebriantes que eu (re)assisti nos últimos anos. 

E isso graças a uma conjunção de fatores: para começar, a guitarra mágica e sempre bem-vinda de David Gilmour, afiadíssimo em todos os sentidos. O trio de backing vocals, Sam Brown, Claudia Fontaine e Durga McBroom, me deixou imaginando o que eu poderia esperar de um álbum solo das três, caso este álbum um dia existisse. Que vozes! Como complemento de luxo aos solos de Gilmour os teclados não menos magistrais de Jon Carin. O resultado dessa tríade, mais baixista, saxofonista, etc? Uma viagem pelo mundo mágico de uma das bandas mais originais que já passaram pelo mercado fonográfico até hoje. 

E olha que quase me esqueço de falar da puxada de orelha que os caras deram na classe política com "brain damage" - sim, os caras alfinetam o errado também quando querem e do final apoteótico, deixando o público enlouquecido, com a dobradinha "wish you were here" e "confortably numb"!

Eu lembro de, décadas atrás, me deparar com esse álbum moscando num saldão das Lojas Americanas no centro da cidade e esnobá-lo, acreditando: "se ninguém quer isso, não deve ser grande coisa!". Queimei a língua. Também eu tinha meus 19 anos... E como todo adolescente que se preze, minha formação (ainda deficitária) incluía péssimos julgamentos e escolhas. 

Valeu a pena dar uma segunda chance ao show cinco anos depois e agora, de novo. 

Vivendo num mundo tão carente de boas ideias como esse contemporâneo, qualquer experiência válida merece ser vista, revista e comentada. Pois bem: vi, revi e agora comentei. Agora é com vocês. Dêem uma chance! E se você já conhece, está esperando o quê para ver de novo? 

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Jason, o maior slasher de hollywood


Os anos 1980 eram foda! E quem não os viveu, nunca irá entender isso completamente. Apenas imaginará e nada mais. 

Minha televisão foi refém de meu delírio paranoico adolescente nessa década por conta das sessões de madrugada nos fins de semana (mais especificamente de sexta para sábado e de sábado para domingo, pois este que vos escreve não precisava acordar cedo no dia seguinte para ir à escola). Duas emissoras de tv dividiam minha atenção: o SBT - muito por conta da famigerada Sessão das Dez, que nunca começava às dez da noite e sim depois de meia-noite - e a Globo (leia-se: Corujão, Sessão de Gala, etc). E parte do atrativo gerado por essa faixa de horário relacionava-se diretamente com os filmes de terror. 

E sendo ainda mais específico: os chamados slashers (em outras palavras: Freddy Krueger, Michael Meyers e, claro, Jason Voorhees). 

Pois bem: eis que o filme que tornou Jason famoso, o hoje cult Sexta-feira 13, completou no último dia 9 de maio 40 anos de existência. O tempo passou, a franquia Jason ganhou nove continuações, um derivado (no qual enfrenta Freddy), uma série de tv, um remake, e ele continua vivo na mente fértil de adolescentes os mais diversos ao redor do mundo. E com toda justiça, é bom que se diga...

Detalhe: no longa de estreia não é nem ele o responsável pelos assassinatos que movem a trama, e sim sua mãe (interpretada pela atriz Betsy Palmer). A matança irrefreável de Jason - que é trabalhado por seu diretor, Sean S. Cunningham, sob a ótica do "whodunnit", em que os assassinatos são cometidos em primeira pessoa e nunca vemos o rosto do vilão - só viria a acontecer de fato nos longas posteriores. Ou seja: sua fama é anterior aos próprios crimes cometidos. 

A produção, que custou míseros 550 mil doláres e arrecadou mais de 40 milhões, se pensou como negócio lucrativo desde o início. E mais: a Paramount, que faturou o título do longa - antes mesmo de existir um roteiro - num leilão, queria que o diretor bebesse na fonte de Halloween: a noite do terror, de John Carpenter, lançado dois anos antes. Ou seja: não se pensavam em inovações, mas em investir no certo, no que gerava receita. 

E não é que Sexta-feira 13 superou sua referência e seu design de produção primário e se tornou um fenômeno global do gênero horror até hoje? A crítica especializada, logicamente, detonou o longa, acusando-o inclusive de misoginia, por conta da violência praticada contra as mulheres na história. Desavenças à parte, o filme de Sean não era mesmo feito para eles, mas sim para adolescentes à procura de aventuras (como as praticadas no acampamento em Cristal Lake) e, claro, sustos e mais sustos. 

Aliás, Cristal Lake (assim como Amity, em Tubarão) virou referência de cinéfilos e pesquisadores da sétima arte, ponto turístico a ser repassado de geração em geração. 

Uma pena que com o passar dos anos - só na década de 1980 foram realizados oito filmes da franquia - o personagem tenha perdido o fôlego e virado meio que "veneno de bilheteria". 

Digo isso porque há em curso um novo reboot do personagem, envolvendo entre os produtores até o jogador de basquete da NBA LeBron James, que não anda nem desanda faz tempo, bem como uma novo seriado televisivo, que está completamente parado. Dizer que se encontra "em pré-produção" seria até um elogio. Não, está engavetado mesmo. 

Talvez os EUA venham enfrentando nas últimas décadas vilões tão aterradores, como os do terrorismo internacional, o Oriente Médio, etc, que Jason tenha virado peixe pequeno em suas intenções culturais ou de entretenimento. Vai saber. O que importa mesmo agora para hollywood são heróis e personagens estereotipados ao extremo.

Já para os fãs originais sempre haverá um lugarzinho especial guardado para esse grande assassino da sétima arte, responsável por muitas mutilações, facadas, flechadas, decapitações, machadadas e o que mais os fãs pudessem imaginar de tenebroso. 

P.S: no atual momento puritano em que vivemos no mundo vai ter muito conservador babaca dizendo, após ler este texto, "ainda bem que não fizeram mais nada dele; as famílias de bem agradecem". Honestamente... Acompanhei a franquia durante anos, ainda revejo os filmes quando posso, e nunca me tornei um assassino, uma pessoa do mal. Não acredito que filmes transformem pessoas em seres piores. 

P.S 2: eu sempre quis conhecer pessoalmente o ator que interpretou Jason Voorhees no cinema. Mais: queria ver o rosto dele. Sem maquiagem. Eu sei o que vocês vão dizer, mas eu avisei lá no segundo parágrafo que eu era paranoico, não avisei?

terça-feira, 12 de maio de 2020

A ignorância venceu o conhecimento


Eu ia abrir esse texto dizendo que o Brasil está uma zona e não é de hoje", mas a frase que melhor explica o país atualmente é "O Brasil continua uma zona e sem o menor sinal de mudança num futuro, num século próximo". E em tempos de Coronavírus, crise na saúde - o que, em se tratando deste país, não passa de um grande clichê - e crise política, o que nos sobrou como legado foi uma única certeza: a ignorância venceu. E de lavada. 

Já faz mais de um ano e meio que escrevi o artigo O analfabetismo nosso de cada dia, que trazia como subtítulo a frase "ignorância: uma paixão nacional" e, honestamente, não somente nada mudou, como pioramos. Ou pior dizendo: involuímos. Não bastasse o deboche declarado ao lema do governo anterior, "a esperança venceu o medo", hoje vivemos uma realidade ainda mais mórbida: a ignorância venceu o conhecimento. 

E com essa frase chego ao patamar de ódio para aqueles que adoram me rechaçar nas redes sociais. E quando digo "aqueles", me refiro única e exclusivamente àqueles que teimam em acreditar que suas visões de mundo deturpadas, ingênuas e falsamente patrióticas são as únicas realmente válidas para o atual momento que estamos vivendo. Sinto muito, mas não são. Nunca foram. 

Ser inteligente no Brasil tornou-se sinônimo de enfrentar tubarões das mais diferentes espécies. Sempre foi difícil ter conhecimento no Brasil. Do que o povo, em sua grande maioria, gosta mesmo é de portar diplomas, exibir um documento que diga que eles estão aptos a exercer uma carreira a qual eles não têm o menor talento e/ou vocação. Digo mais: de tudo o que tenho observado por aqui nos últimos, pelo menos, dez anos, tenho a absoluta certeza de que os diplomas universitários viraram os títulos de nobreza versão século XXI. Eles existem para ser ostentados e nada mais. São diferenciadores sociais e não responsáveis pelo aumento da intelectualidade no país. 

Quer saber mais sobre o assunto? Procure pelo livro Fábrica de diplomas, do escritor Felipe Pena. 

Nunca demos tanta importância a tantos discursos falaciosos (de cunho político, religioso, empresarial, etc) como atualmente. A expressão fake news, mais do que condenar o errado, virou um instrumento da dúvida, pois grande parcela da sociedade - leia-se: os mais ignorantes - passaram a classificar qualquer mínima informação como mentirosa ou, no mínimo, tendenciosa. E com isso lhes pergunto: então, por onde andará a verdade se estamos propensos a demonizá-la 24 horas por dia?

O Ensaio sobre a cegueira saiu das brilhantes páginas do nobel de literatura Jose Saramago e ganhou as ruas tupiniquins, sempre repletas de idiotas. Só que desta vez, idiotas extremamente organizados. E esse sempre foi um problema para o restante da humanidade: os idiotas e imbecis sempre estiveram em maior número nesse país que adora se esconder sob a pecha de "país em desenvolvimento". 

Frases como "onde iremos parar?" e "até quando tudo isso?" perderam completamente a sua razão de ser e existir. Envelheceram. Caducaram. Viraram reles bibelôs na boca dos poucos sobreviventes de uma "nação" (as aspas são propositais) que só pensa em oportunismos, festejos e celebrações. Como se tivéssemos algo realmente válido para ser comemorado. 

Me foge à mente agora o nome do autor que disse certa ocasião, em um de seus romances: "nos bestializamos e estamos orgulhosos disso" (quem souber o nome do escritor, por favor me repasse!). Ele estava coberto de razão. 

Em algum momento da história este país saiu dos trilhos e para lá nunca mais retornou. E não satisfeito com sua própria estupidez, ainda por cima se vangloria de seus próprios atos mórbidos e descerebrados, os canta, declama e aplaude em alto e bom som. Engasgado em minha garganta, aprisiono um grito, um sentimento de "vontade de mandar tudo à merda e pedir a Deus que me leve logo embora, pois aqui não tem mais nada para mim". 

Porém, repito: engasgado.

Pois já dizia o grande Oscar Wilde: "o ser humano só desiste realmente de alguma coisa quando morre". Descobri a duras penas o meu lugar nessa ópera negra em que vivemos. Eu sou aquele que escolheu escrever, questionar, reclamar do que está errado. E que assim seja!

Em Brasília, 19 horas, um congresso cada vez mais faminto por dinheiro (embora o país conviva com uma epidemia) e um genocida disfarçado de presidente. E no resto do país, uma sensação de niilismo, de que tudo acabou. Mas (ainda) não acabou. Ainda bem.

Que venham as cenas dos próximos capítulos...

sábado, 9 de maio de 2020

Ah whop bop a loom ah whop a lop bam boom


Se você não lembra da voz - e isso por si só já é um crime, pois era a voz! -, certamente se lembra de seu visual extravagante, dos cabelos esvoaçantes (ou dos topetes), dos terninhos multicoloridos, dos gritinhos e uivos que marcaram uma época. E cá entre nós: marca até hoje. Ele foi um pioneiro do rock n' roll. Poderia chamá-lo de pai do gênero, se quisesse, mas esse cargo ele não assumiu sozinho. O dividiu, com toda grandeza, junto a Chuck Berry.  Ambos mitos!

E como todo mito, um dia ele parte. E deixa gigantescas saudades!

É com muito pesar que fico sabendo da notícia de que o grande Little Richard morreu hoje, aos 87 anos. E o rock nunca mais será o mesmo depois dele. Podem perguntar a qualquer fã do gênero para tirar a prova dos nove, se quiserem...

Richard Wayne Penniman nasceu em 5 de dezembro de 1932, em Macon, na Geórgia, num lar extremamente religioso. Mas diferentemente da homilia familiar ele queria mesmo era a rebeldia do rock. E muito por conta disso foi mal-interpretado, tendo que sair de casa ainda cedo, aos 13 anos. Talvez os moralistas acreditem que ele fez um mau negócio. Eu, não. Nascia ali uma lenda. 

O apelido ele ganhou aos 15 anos e agradeceu, pois estava cansado de ouvir as pessoas pronunciarem seu nome original de forma errada. Mas isso, no final das contas, foi apenas um mero detalhe, já que as pessoas ainda não o tinham ouvido cantar. E de pequeno ele não tinha nada. 

A apresentação no Tick Tock Club, onde ganhou um show de talentos foi o pontapé que ele precisava para plantar a semente de um legado que está vivo até hoje. Assinou o primeiro contrato com a gravadora RCA em 1951, mas o sucesso só deu as caras mesmo em 1955 (junto com os primeiros de muitos hits). 

"Tutti-frutti" (1955), "Long tall Sally" (1956), "The girl can't help it" (1956), "Keep A-Knocking" (1957), "Lucille" (1957),"Good Golly, Miss Molly" (1958), "Whole lotta shakin' going on" (1959), etc. A lista é imensa e no caso específico de "Tutti-frutti", foi uma febre que enlouqueceu milhões de fãs ao redor do mundo. É aqui, nesta composição, que ele apresenta para o mundo a expressão que dá título a este texto.

Lembro-me de quando assisti a cinebiografia Little Richard, de Robert Townsend, numa antiga sessão do Intercine na Rede Globo. O cantor era interpretado pelo ator Leon (mais conhecido aqui no Brasil por seu personagem no filme Jamaica abaixo de zero, de Jon Turteltaub, sobre a primeira equipe jamaicana de bobsled a disputar uma edição das olimpíadas de inverno) e eu fiquei extasiado, pensando: "o que eu não daria para ter vivido aquela época!". 

E Richard era desse jeito mesmo: intenso, à flor da pele, tem quem diga até diabólico. Mesmo quando, em 1958, se tornou pastor e construiu seu próprio ministério, ele não conseguiu abandonar os palcos e o fervor promovido pelo showbiz. Resultado: retomou a carreira quatro anos depois, com o mesmo sucesso de antes. 

Tem quem afirme que seu maior legado até hoje foram os mais de 30 milhões de discos vendidos ao redor do mundo (e a repercussão que isso tudo tomou com o passar dos anos). Outros preferem acreditar que foi a capacidade inacreditável que ele teve de influenciar a carreira de tantos outros gênios da música. Não fosse Little Richard certamente o mercado fonográfico não teria visto Beatles, Otis Redding, Creedence Clearwater Revival, Elton John, David Bowie e tantas outras feras. Não teria MESMO.

Discussões à parte, ficam as boas lembranças, a música voraz, avassaladora, e a certeza de que 2020 entrará para a história como o ano em que perdemos muita gente fora de série. E no caso de Richard "bota fora de série nisso!". Certamente, quando o fizeram jogaram a forma fora. Uma pena. 

Vai tocar sua guitarra (ou seu piano) no céu, mestre. Que eu vou continuar te ouvindo aqui embaixo. 

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Manipuladora


Nunca imaginei que fosse me deparar com tanta coisa boa em termos de entretenimento, sem nem ao menos precisar sair de casa para isso... O que não faz uma epidemia!

Antes de qualquer outra coisa que se diga ao longo dessa crítica, é preciso agradecer ao site Mubi, por também disponibilizar conteúdo audiovisual gratuito durante a quarentena da covid-19. Os cinéfilos mais apaixonados agradecem!

Agora vamos aos fatos: conheço muitas feministas e mulheres empoderadas que vão se identificar - e muito! - com Ema, filme mais recente de Pablo Larraín (dos ótimos No e O clube). E por um motivo óbvio: a protagonista é forte, não leva desaforo pra casa e muito menos desiste do que quer (mesmo quando aquilo que ela quer contraria as regras do que conhecemos como ética ou senso comum). E em tempos tão inescrupulosos como esses em que vivemos no século XXI, isso não é pouca coisa, não.

Ema (a exótica Mariana Di Girolamo) é uma mulher que chegou aquele ponto da vida em que o mais sensato a fazer seria tirar o time de campo e aceitar a derrota de forma digna pelos delitos que cometeu. Uma tragédia fez com que ela perdesse a guarda do seu filho adotivo, bem como arruinou o seu casamento pra lá de complexo com o tempestuoso Gaston (Gael García Bernal). O único resquício de humanidade que lhe resta é a paixão pela dança. E ela a exercita de forma digna, quase aflita, como quem se agarra a um cilindro de oxigênio. 

Porém, ela decide não entregar os pontos e ir à luta, mesmo que para isso ela precise enfrentar essa jornada sozinha. Até mesmo a assistente social que cuida de seu caso já a alertou para os problemas que ela causará, caso insista em recuperar o filho. Mas ela, Ema, não vê razões realmente lúcidas para ouvir quem quer que seja. 

Resultado: trama um plano sórdido que faça com que ela se aproxime novamente da criança, enquanto vive diariamente o seu estilo "living la vida loca" de ser. E digo mais: acredito piamente que mulheres como ela, insubordinadas, indomáveis, são aquelas que vêm ganhando o rótulo de avant-garde nos últimos anos. Em outras palavras: Ema é pura ousadia em forma de mulher e se orgulha disso. Mesmo. 

Vi na sua persona quase indestrutível, confesso, um pouco da Erin Brockovich que Julia Roberts interpretou no filme homônimo do diretor Steven Soderbegh. E quando digo "vi um pouco", refiro-me à postura "eu vou vencer essa parada custe o que custar, e ninguém conseguirá me impedir por mais que tente". Só falta, em seu desejo de dar a volta por cima a qualquer preço, ela se transformar numa mulher-bomba e explodir tudo ao seu redor. De resto, ela simplesmente ultrapassou todos os limites do bom senso. 

Embora não curta o gênero escolhido na trilha sonora (o reggaeton nunca fez o meu estilo), é de fácil compreensão a escolha dele para compor essa personagem turbulenta e decidida que Ema transpassa durante toda a projeção. E vejo essa música funcionando quase como um ruído. Tudo ao redor da protagonista vende essa ideia ruidosa, como se fossem paredes tentando sufocá-la, mantê-la presa de qualquer jeito. No entanto, é praticamente impossível colocar freios numa mulher como essa. 

E como consequência de toda essa paranoia em forma de narrativa cinematográfica o que temos no final das contas é uma interessante reflexão sobre a mulher nesse século cheio de dúvidas e nenhuma resposta à vista. Mas uma mulher extremamente manipuladora, que não entende minimamente a dificuldade de lidar com a própria vida e com as escolhas infelizes que cometeu no passado. 

Perdida, ela apela para o baixo nível - algo que anda muito em voga no mundo contemporâneo - e passará por cima de qualquer um como um rolo compressor, toda vez que o sistema ou a sociedade ousarem desafiá-la. 


P.S: uma pena que o longa seja mais um exemplo, dentre tantos que já resenhei por aqui, do tipo de cinema que não vem interessando aos nossos cinemas, mais afeitos à comédias bobocas, franquias sem sentido e heróis estereotipados. Ainda bem que o streaming e sites como o Mubi existem para suprir a carência dos espectadores mais corajosos, que buscam fugir do tédio e da mesmice promovida pelos blockbusters. 

segunda-feira, 4 de maio de 2020

O malandro carioca


Vejo Elis Regina cantando num vídeo do you tube:

Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos
A lua, tal qual a dona de um bordel
Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel...

E vejo as lágrimas fugirem do rosto.

O equilibrista, meus caros amigos e leitores, tombou. E caiu de uma forma melancólica, imerecida, digo até injusta. Logo ele, dono de tantos talentos, capaz de realizar as maiores façanhas poéticas e musicais, detentor de um olhar único sobre o malandro carioca e o suburbano, terminar desse jeito! 

Só mesmo neste país abarrotado de contradições.

Perdemos hoje o grande compositor Aldir Blanc, por complicações envolvendo um quadro de pneumonia e também a famigerada covid-19, que tem tirado a vida de tantos nos últimos meses. 

Difícil começar a falar de Aldir, pois ele era um homem multimidiático em todos os sentidos. O melhor exemplo do que deve ser um artista, seja no Brasil, seja em qualquer país do mundo. 

Nascido no Estácio (bairro sambista por excelência), escolheu a princípio a medicina - onde tinha se especializado em psiquiatria - como forma de expressão. Mas para ele, isso era muito pouco. E logo a trocou pela música popular brasileira, esta sim sua verdadeira paixão. 

O resultado disso? uma coleção de hits inigualáveis como "dois pra lá, dois pra cá", "mestre-sala dos mares", "bala com bala" e, é claro, a eterna "o bêbado e o equilibrista", canção hoje vista como libelo da democracia e que voltou à baila em tempos de gente pedindo a volta do passado negro nesta pátria distorcida.

Foram ao todo mais de 500 composições. 

Aldir também foi um grande interessado na defesa dos direitos autorais por parte dos artistas. Prova disso foi seu envolvimento, ao lado de Gonzaguinha e Ivan Lins, na fundação do Movimento Artístico Universitário (MAU). O garoto, que fundou o Rio Bossa Trio ainda jovem, provava ali que era danado, que não iria baixar a cabeça assim tão fácil. E não baixou. 

Escreveu, poetizou, rimou, ajudou a fundar o bloco carnavalesco Simpatia é quase amor, em Ipanema, teve inúmeros parceiros de garbo (Moacyr Luz, Maurício Tapajós, Carlos Lyra, Guinga, Edu Lobo, Wagner Tiso, Cristóvão Bastos, Roberto Menescal e o maior deles, o amigo do peito, João Bosco). Em suma: aprontou esse malandro. Como só ele. 

Enveredou também pela literatura e mostrou ser um excelente cronista. Mais: realizou uma grande cartografia do subúrbio carioca. Li dois de seus livros: Rua dos Artistas e Arredores (1978) e Um cara bacana na 19ª (1996). E ao terminar a última página em ambos, fiquei extasiado. Com sua capacidade de criar boas histórias. Principalmente: histórias humanas, verdadeiras, do cotidiano.  

Ops! Quase me esqueço de falar de sua contribuição - também como cronista - para os jornais O Dia, O Globo e O Estado de São Paulo. A imprensa jamais me perdoaria se eu deixasse essa informação passar em branco!

Nos últimos dias, temos perdido o melhor de nossa arte: Moraes Moreira, Rubem Fonseca, Luiz Alfredo García Roza, até o Flávio Migliaccio, da série infantil Shazam e Xerife, partiu. E agora o Aldir completa o time também. Que 2020 é esse! Tenho medo do que ainda vem por aí.

Mas como dizia o próprio Aldir, não dá pra baixar a cabeça porque "a esperança equilibrista/ sabe que o show de todo artista tem que continuar". E tenho certeza, continuará.

Valeu, mestre! Fica em paz.  

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Os incomunicáveis


Eu ando pelas ruas e vejo dia a dia o distanciamento social ganhando contornos mais ferozes. E não se trata apenas da consequência de uma epidemia, da mudança de um regime governamental ou do sucesso atingido por um artefato tecnológico (no caso, o iphone, maior responsável nos últimos anos pelo fim do diálogo). Não, não, não. As pessoas não conversam mais. Preferem o grito, o esporro, a ameaça, a troca de acusações gratuitas ou, no mínimo, o conforto oferecido pela incomunicabilidade. 

Sim, meus caros leitores! Já dizia décadas atrás o grande cineasta italiano Michelangelo Antonioni, de obras-primas como Zabriske point e Blow up - depois daquele beijo, que vivíamos a era da incomunicabilidade. A falta de palavras para que consigamos conviver em sociedade é uma das parcelas mais duras de um ato outrora simples como viver. Ou em outras palavras: viver virou uma guerra que não termina. 

Logo, é com imenso prazer que sou agraciado com a presença do espetáculo Ato a quatro, da dramaturga australiana Jane Bodie, disponibilizado gratuitamente no you tube. E numa montagem interessantíssima, cheia de nuances e a presença estilosa dos vídeos - cada vez mais corriqueiros no mundo teatral -, dirigida por Bruno Perillo, que também adaptou o texto para nossa língua. 

Ato a quatro conta a história do casal em crise Alice (Nicole Cordery, vencedora do prêmio Aplauso Brasil por esta interpretação) e Tom (Luciano Gatti). Ela, uma ex-atriz que agora trabalha como cuidadora de deficientes e mantém um relacionamento complicado com o enfermeiro Jack (Edu Guimarães), seu colega de trabalho, que nutre por ela uma paixão quase stalker. Ele, às vésperas de estrelar um espetáculo teatral ao lado de Natasha (Joana Dória), com quem vem estreitando relações durante os ensaios da peça. O que era para ser apenas uma parceria de trabalho vira um caso extraconjugal, o que deixa o casamento entre Tom e Alice em xeque. 

Natasha representa a intensidade efêmera que costuma aparecer naquele momento do matrimônio em que o desfecho é apenas uma questão de tempo. Já Jack se encaixa perfeitamente no papel do confessor, aquilo que Alice mais precisa nesse exato momento, e não de um companheiro sexual. 

Porém, mais do que isso, o que se vê nas entrelinhas dos diálogos entre os personagens (as duas histórias, a de Tom e Natasha e a de Alice e Jack, acontecem paralelamente no palco) é uma necessidade absurda de encontrar palavras que representem o que eles realmente estão sentindo. E essas palavras se recusam a dar as caras. 

O resultado disso: fugas providenciais e a sensação, da parte do público, de estar diante de um quarteto de incomunicáveis, capazes de se render com a maior facilidade a qualquer aventura carnal ou conversa que pareça minimamente amigável. 

Ato a quatro é, no final das contas, um grande ensaio sobre a melancolia que se abateu sobre a humanidade neste último século. Viramos - e é visível isso, não somente na peça, como também na vida cotidiana - animais que mendigam mínimos afetos, pois preferimos isso a encarar a dura realidade. E pior: tudo isso revestido de uma vaidade inescrupulosa e um desejo constante de permanecermos protagonistas dentro de um contexto social cada vez mais falho e movido por aparências inúteis. 

Uma dica: prestem atenção na trilha sonora de Dan Nakagawa, uma música tão perturbadora em alguns momentos quanto a vida desses quatro personagens. Ela parece, a todo instante, gritar verdades incômodas na cara do quarteto, meio que avisando: "será que vocês não perceberam ainda que isso que estão fazendo não tem a menor possibilidade de acabar bem?". E mesmo assim eles a esnobam por estarem convictos de serem os donos da situação. 

O problema, como já bem disse certa vez o poeta modernista Fernando Pessoa: ninguém engana todo mundo o tempo todo. Por mais que tente. 

E a consequência de tudo isso é um sentimento de comiseração eteno. Pois as pessoas preferem, na maioria das vezes, escolher o mundo torpe dos reality shows, dos chats e whatsapps, das raves e baladas a encarar a vida como ela é e enfrentar seus próprios delitos morais. 

E depois reclamam que o mundo anda uma zona!