sexta-feira, 1 de maio de 2020

Os incomunicáveis


Eu ando pelas ruas e vejo dia a dia o distanciamento social ganhando contornos mais ferozes. E não se trata apenas da consequência de uma epidemia, da mudança de um regime governamental ou do sucesso atingido por um artefato tecnológico (no caso, o iphone, maior responsável nos últimos anos pelo fim do diálogo). Não, não, não. As pessoas não conversam mais. Preferem o grito, o esporro, a ameaça, a troca de acusações gratuitas ou, no mínimo, o conforto oferecido pela incomunicabilidade. 

Sim, meus caros leitores! Já dizia décadas atrás o grande cineasta italiano Michelangelo Antonioni, de obras-primas como Zabriske point e Blow up - depois daquele beijo, que vivíamos a era da incomunicabilidade. A falta de palavras para que consigamos conviver em sociedade é uma das parcelas mais duras de um ato outrora simples como viver. Ou em outras palavras: viver virou uma guerra que não termina. 

Logo, é com imenso prazer que sou agraciado com a presença do espetáculo Ato a quatro, da dramaturga australiana Jane Bodie, disponibilizado gratuitamente no you tube. E numa montagem interessantíssima, cheia de nuances e a presença estilosa dos vídeos - cada vez mais corriqueiros no mundo teatral -, dirigida por Bruno Perillo, que também adaptou o texto para nossa língua. 

Ato a quatro conta a história do casal em crise Alice (Nicole Cordery, vencedora do prêmio Aplauso Brasil por esta interpretação) e Tom (Luciano Gatti). Ela, uma ex-atriz que agora trabalha como cuidadora de deficientes e mantém um relacionamento complicado com o enfermeiro Jack (Edu Guimarães), seu colega de trabalho, que nutre por ela uma paixão quase stalker. Ele, às vésperas de estrelar um espetáculo teatral ao lado de Natasha (Joana Dória), com quem vem estreitando relações durante os ensaios da peça. O que era para ser apenas uma parceria de trabalho vira um caso extraconjugal, o que deixa o casamento entre Tom e Alice em xeque. 

Natasha representa a intensidade efêmera que costuma aparecer naquele momento do matrimônio em que o desfecho é apenas uma questão de tempo. Já Jack se encaixa perfeitamente no papel do confessor, aquilo que Alice mais precisa nesse exato momento, e não de um companheiro sexual. 

Porém, mais do que isso, o que se vê nas entrelinhas dos diálogos entre os personagens (as duas histórias, a de Tom e Natasha e a de Alice e Jack, acontecem paralelamente no palco) é uma necessidade absurda de encontrar palavras que representem o que eles realmente estão sentindo. E essas palavras se recusam a dar as caras. 

O resultado disso: fugas providenciais e a sensação, da parte do público, de estar diante de um quarteto de incomunicáveis, capazes de se render com a maior facilidade a qualquer aventura carnal ou conversa que pareça minimamente amigável. 

Ato a quatro é, no final das contas, um grande ensaio sobre a melancolia que se abateu sobre a humanidade neste último século. Viramos - e é visível isso, não somente na peça, como também na vida cotidiana - animais que mendigam mínimos afetos, pois preferimos isso a encarar a dura realidade. E pior: tudo isso revestido de uma vaidade inescrupulosa e um desejo constante de permanecermos protagonistas dentro de um contexto social cada vez mais falho e movido por aparências inúteis. 

Uma dica: prestem atenção na trilha sonora de Dan Nakagawa, uma música tão perturbadora em alguns momentos quanto a vida desses quatro personagens. Ela parece, a todo instante, gritar verdades incômodas na cara do quarteto, meio que avisando: "será que vocês não perceberam ainda que isso que estão fazendo não tem a menor possibilidade de acabar bem?". E mesmo assim eles a esnobam por estarem convictos de serem os donos da situação. 

O problema, como já bem disse certa vez o poeta modernista Fernando Pessoa: ninguém engana todo mundo o tempo todo. Por mais que tente. 

E a consequência de tudo isso é um sentimento de comiseração eteno. Pois as pessoas preferem, na maioria das vezes, escolher o mundo torpe dos reality shows, dos chats e whatsapps, das raves e baladas a encarar a vida como ela é e enfrentar seus próprios delitos morais. 

E depois reclamam que o mundo anda uma zona!

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