terça-feira, 31 de março de 2020

O trovador solitário


Ah se esse cara ainda estivesse vivo no Brasil de hoje!!!

Leio numa matéria do UOL entretenimento que o cantor Renato Russo, outrora vocalista da banda de rock Legião Urbana, se estivesse vivo em 2020 completaria 60 anos. E penso rapidamente quando termino de ler a notícia: "e ele não teria envelhecido um segundo sequer". 

Digo isso porque considero Renato o melhor exemplo de ativista e revolucionário que eu já tive o prazer de prestigiar em toda a minha vida. Não era panfletário ou mesmo defensor (pelo menos, que eu sabia) de qualquer vertente partidarista, muito menos se viu no personagem de guru de toda uma geração - embora, muitas vezes, a mídia tenha vendido essa ideia para os fãs. Mas com certeza sempre teve opinião forte sobre qualquer tema que discorreu ao longo da carreira.  

Autor de mais de 150 músicas, a sensação que eu tenho a priori é que o número parece até menor diante do que eu imaginava até então. Sua figura sempre se mostrou para mim tão gigantesca que eu imaginava sinceramente que ele estivesse próximo das mil canções. Mas não importa. Ele conseguiu fazer mais do menos, do simples, e principalmente de suas convicções e um discurso sempre afiado. 

Já li tanta coisa sobre Renato que fica até difícil indicar leitura para os outros (principalmente os fãs). Contudo, para os leigos da geração posterior a minha que ainda não o conhecem devidamente, recomendo de olhos fechados Renato Russo: o filho da revolução, de Carlos Marcelo (para mim, a biografia definitiva sobre ele) e Renato Russo - o trovador solitário, do colunista Arthur Dapieve (cujo título faz referência ao álbum homônimo gravado pelo cantor e compositor em 1982). Se você, por toda a sua vida, só conseguir ler esses dois exemplares, dificilmente deixará de entender quem foi ele na íntegra, suas paixões, interesses e a dedicação ao trabalho. Procurem.

O artigo do UOL traz a informação de que ele foi regravado por mais de 750 artistas até hoje. E eu acredito (de olhos fechados). Também traz uma lista das dez músicas mais tocadas por ele - solo ou em parceira - entre 2015 e 2019. E nesse momento, confesso que me causou um enorme estranhamento não ver no Top 10 a presença das músicas "Faroeste caboclo", "Geração coca-cola" e Índios" (para mim, três clássicos eternos de Renato). Mas tudo bem. É uma questão de gosto. Liderando a lista, "Tempo perdido". E contra essa informação eu não tenho argumentos. Mesmo. 

Ao lado de Cazuza, Renato Russo fez parte de uma geração que não se limitou a cruzar os braços, dizer amém para tudo (principalmente determinações estatais). Foi um homem avant garde no melhor sentido do termo. Pôs a boca no trombone quando quis e do jeito que quis. No documentário Rock Brasília - era de ouro, de Vladimir Carvalho, é possível vê-lo enfrentando um policial que ameaçava bater num espectador de um show seu. Vejo aquela cena como síntese para entendermos a personalidade desse artista ímpar. 

Independente de suas escolhas sexuais, afetivas, políticas e musicais, o grande barato de continuar ouvindo Renato Russo até hoje é entender que se trata de um homem que não ficou datado, que não parou no tempo, que continua relevante. E muito de sua poesia permanece mais atual hoje do que na época em que se encontrava no apogeu da carreira. E isso, meus amigos, são poucos os que conseguem na indústria fonográfica! 

Precisa de mais? Honestamente, acho que não. O que não precisava (mesmo!) era ter ido embora tão cedo... Grande Renato!

P.S (ou Kit básico): se você, meu querido leitor, não tiver vergonha na cara de ir até o Spotify ou ao youtube agora para ouvir As quatro estações (o de estúdio e o ao vivo) e os álbuns solo The stonewall celebration concert (em inglês) e Equilíbrio distante (em italiano), você não merecia ter lido este humilde artigo. E tenho dito.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Territorialismos


Todas as vezes que me perguntaram o que é mais extraordinário na história da sétima arte eu sempre respondi: "a capacidade de certos cineastas fazerem o seu trabalho repercutir além da geração para quem o seu cinema foi realizado". E há sempre uma lista imensa de filmes que cabem como uma luva nessa categoria. E dentre os filmes que vêm à minha cabeça toda vez que eu penso na lista desses filmes que foram além de sua própria época, é impossível não me lembrar de Faça a coisa certa, do diretor Spike Lee.

Lá se foram mais de três décadas e o longa de Spike não envelheceu um segundo sequer. Pelo contrário. Parece até que foi realizado no mês passado, na semana passada, tamanha a atualidade de seu discurso. E antes que os espectadores mais tradicionais e viciados num resuminho básico me aporrinhem, é preciso adiantar: Faça a coisa certa é um filme sobre territorialismos, sobre disputar espaço, qualquer espaço, o mínimo que seja, como quem luta pela própria vida. E isso, meus caros leitores e fãs de cinema, é muito maior do que qualquer sinopse que eu vá narrar aqui. 

Seus personagens buscam razões para lutar por sua própria identidade, mesmo quando tudo parece conspirar contra eles. E o pano de fundo para essas discussões e disputas de território, além da música forte e precisa do Public Enemy, é a câmera subjetiva do diretor que nos proporciona um grande passeio pela vizinhança numa América à anos-luz daquela que vemos todo dia nos tabloides e na programação da CNN ou da Fox News. 

E a estereotipia do lugar, é claro, chama a atenção com gigantesca facilidade. Se é possível falar em protagonistas, fiquemos então - na superfície - com o duelo entre Sal (Danny Aiello, fantástico!), o dono da pizzaria, point de grande parte dos moradores do bairro, e Mookie (o próprio Spike Lee), seu entregador, que vive reclamando do pagamento atrasado. Mas como disse no início do parágrafo é um protagonismo superficial, pois eles dividem a atenção com uma série de figuras que flertam com tipos sociais, embora tenham revolta e atitude própria para dar e vender.   

Radio Raheem (Bill Nunn), como diz o próprio nome, anda para cima e para baixo carregando seu rádio no mais alto volume e incomodando os outros moradores da região. E ai de quem mandá-lo abaixar o som! Da Mayor (Ossie Davis) é praticamente um Zorba, o grego da rua, sempre sugerindo soluções para os outros e tentando manter a paz a qualquer custo. Mother Sister (Ruby Dee) vê a vida passar da janela de sua casa, mas não perde a chance - quando a oportunidade lhe aparece - de palpitar sobre o que quer que seja. Buggin (Giacarlo Esposito) é aquele revoltado que existe em qualquer subúrbio do mundo. Deseja boicotar a pizzaria do Sal simplesmente porque ele não possui em seu hall da fama - a parede onde constam fotografias de clientes famosos - um homem negro sequer. Smiley (Roger Guenveur Smith) é o gago que perambula pelas ruas vendendo seus folhetos e lutando contra o preconceito daqueles que acreditam que ele deveria parar de encher o saco ou simplesmente desaparecer de uma vez por todas. E Love Daddy (Samuel L. Jackson), com suas tiradas no programa de rádio que apresenta, faz as vezes de cronista do cotidiano daquelas ruas sofridas. 

E isso porque eu fiquei somente nos moradores mais influentes. Mas uma dica aqui: prestem atenção no contexto geral. 

Digo isso porque, lógico, há sempre espaço para discussões entre vizinhos, crianças quase sendo atropeladas porque decidiram atravessar a rua na hora errada, brigas entre irmãos, a eterna guerra entre os policiais brancos que rondam a área e os moradores (detalhe: há uma sequência em que são exibidos os mais diferentes tipos de insultos que, por si só, vale pelo filme todo!) e a convivência difícil entre a comunidade negra e os donos de estabelecimentos comerciais de outras etnias. 

Embora Spike Lee tenha se consagrado por uma carreira cheia de sucessos, acredito piamente que seu estrelato esteja até hoje muito atrelado ao sucesso desse longa. Digo mais: acredito que foi aqui que começou a sua fama de ativista. E os fãs de sua gloriosa carreira têm muito a agradecer...

Até hoje me pergunto onde a Academia de artes e ciências cinematográficas estava com a cabeça quando premiou Conduzindo Miss Daisy com o Oscar e não esta pequena obra-prima, que gera reflexões valiosíssimas até hoje. A América contraditória que virou as costas para New Orleans após o furacão Katrina e que trouxe de volta à cena a Ku Klux Klan em plena era Trump tem aqui o seu embrião (embora muitos demagogos prefiram não enxergar dessa forma). 

Em outras palavras: os moradores do Brooklyn de Faça a coisa certa estão, embora prefiram não lembrar e se preocupar com questões mais pertinentes e agradáveis, sentados num enorme barril de pólvora, pronto para explodir a qualquer momento. E o fósforo que promoverá essa tragédia está na intolerância e na incompreensão de certos discursos. Porque o ser humano, infelizmente, nunca perde a mania de se achar mais do que os outros ou contar vantagem de si. Logo, esperar pelo pior não é uma promessa e sim uma realidade a longo prazo. 

Tenho (sempre tive) a curiosidade de ver a continuação desse filme com seus personagens mais velhos, digamos, 20 anos depois do incêndio que encerra o longa. Infelizmente o tempo passou e Danny Aiello não está mais entre nós (o que é uma perda irreparável). E não bastasse tudo isso Spike decidiu seguir um novo caminho, não menos denunciatório. Uma pena! Precisávamos - e muito - rediscutir o que foi iniciado aqui, principalmente depois do advento das novas tecnologias e a chegada das redes sociais. Como isso não aconteceu, que bom saber que pelo menos podemos revê-lo e repensarmos a sociedade quantas vezes quisermos! 


segunda-feira, 23 de março de 2020

Dicionário de pequenas gentilezas


Eu não gosto de me repetir, mas desta vez é preciso. 

Já disse isso em outros artigos e repito: eu morrerei e nunca compreenderei o desleixo de nosso povo com a própria língua. E não bastasse tal postura (quase geral da população) avessa ao idioma, ainda temos de aturar a classe intelectual vendendo a eterna ideia de que "temos uma das línguas mais difíceis do planeta terra", o que só contribui ainda mais para o desinteresse do público por ela. 

Amo o nosso idioma, amo mesmo e nunca perco a chance de me deparar com ele redescoberto, seja na forma de roteiro de cinema, peça teatral, catálogo de exposição, bula de remédio (isso mesmo! leio de tudo) e, claro, os livros, matéria-prima máxima de observação da nossa língua. 

Fico sempre à procura de autores que levem a nossa versão do idioma português para outro patamar. E eis que me deparo com mais uma. E que suscinta e genial! Falo logicamente de O livro dos ressignificados, do poeta brasiliense João Doederlein - mais conhecido na internet e nas redes sociais como @aka poeta

Em O livro dos ressignificados, João nos oferece uma especie de glossário reinventado, propondo novas abordagens e definições para conceitos que nós, reles mortais, já deveríamos conhecer de cor e salteado. Mas não conhecemos por reles desleixo ou preguiça. 

Dividido em seis tomos - o jardim, o zodíaco, o coração, a mente, a cidade e a história de nós dois - e sempre tendo como abertura um poema de duas páginas, o livro é uma delícia para pessoas como eu, sempre aptas a desbravar novos caminhos para o nosso idioma (que de sisudo e repetitivo não tem nada!). E digo mais, mesmo correndo o risco de ser detonado pelos eternos moralistas de plantão: é praticamente um novo dicionário, para mentes mais lúcidas e abertas aos novos tempos. 

Entre substantivos, adjetivos e verbos os mais diversos (há até espaço para palavras em inglês), nos deparamos com "pequenas gentilezas" em forma de léxico. Em outras palavras: trata-se de uma obra agradável aos ouvidos e aos olhos.

existem, é claro, palavras praticamente obrigatórias, que não podem faltar num volume como esse (falo de "Deus", "pai", "mãe", "amor", "fé", "morte", etc), mas também há espaço para outras que fogem completamente da zona de conforto habitual (como "serendipidade", "nefelibata", "oblívio", "resiliência", "eudaimonia", entre outras), tornando o exemplar ainda mais curioso. 

E só para deixar um gostinho de quero mais na cabeça daqueles que não conhecem o livro, coloco abaixo alguns trechos de pura genialidade: 

Janela ("é uma contadora de histórias");
Silêncio ("é a faca de dois gumes da meditação");
Gêmeas ("é o plural do próprio singular");
Lágrima ("é amostra grátis do mar");
Palavra ("é um punhado de letras se abraçando");
Enigma ("é meu coração jogando xadrez");
Abraço ("é sorrir com os braços"); etc...

Desafio qualquer leitor mediano, após ler esta resenha e depois de ler O livro dos ressignificados, a não se interessar por conhecer um pouco mais o nosso idioma natal. Caso isso aconteça mesmo assim, sinto muito! Você é de fato um caso perdido neste país onde a ignorância nos últimos anos vem sendo chamada de sabedoria. 

E o melhor de tudo: eu ainda por cima ganhei o livro num concurso. Precisa dizer mais alguma coisa? Agora vai atrás desta pequena obra-prima, vai! 

quinta-feira, 19 de março de 2020

O Cristo da vez


Os Estados Unidos, que certos brasileiros frustrados adoram chamar de "a maior nação do planeta", é um país no mínimo irônico. Vive de fabricar maniqueísmos os mais diversos com o intuito de se promover e, com isso, conseguir mais adeptos alienados, antenados com a sua "causa" aham patriótica. E o maior exemplo disso é a maneira como constrói para a opinião pública seus conceitos de herói e vilão. 

Dito isso, confesso que foi uma grata surpresa assistir o último longa de Clint Eastwood, O caso de Richard Jewell. E digo surpresa porque antes mesmo do filme ser lançado em nossas salas de projeção, já aportou por aqui carregado de polêmica por conta da maneira como o diretor expôs o ponto de vista de uma das personagens principais da trama. 

Contudo, o protagonista desta história, Richard (vivido de forma exuberante pelo ótimo Paul Walter Hauser) tem seu próprio calvário para enfrentar. Ele é um reles segurança, ex-agente policial, que busca melhorar de vida para poder pagar suas contas e ajudar a mãe, Bobi (Kathy Bates, também excelente!). Mas sua vida muda completamente quando decide trabalhar nas olimpíadas de Atlanta, em 1996. 

Uma bomba é colocada no Centennial Park e Richard é o primeiro a localizá-la e informar as autoridades. A explosão causa graves sequelas no público presente, mas a maior delas certamente na vida do próprio segurança. E tudo por causa da personagem que rendeu polêmica (como citado no segundo parágrafo). Kathy Scruggs - vivida por Olivia Wilde - é uma jornalista ambiciosa à procura de um furo de reportagem que tire a sua carreira do tédio. E que vê numa informação tendenciosa obtida através de um agente do FBI razões suficientes para colocar sobre Jewell a culpa pelo atentado. 

A razão por trás da suspeita: o passado de Richard advoga contra ele e, nesse momento, surge uma cultura muito comum na sociedade globalizada em que vivemos. A eterna mania de ver o pior nos outros e não acreditarmos que as pessoas mereçam uma segunda chance. 

(Detalhe: a polêmica que engoliu as intenções do filme em conseguir indicações para as principais categorias do Oscar e da temporada de prêmios em geral tem a ver com o fato da jornalista, no filme, trocar sexo por informação privilegiada sobre o caso. E é nesse momento - em tempos de feminismo ganhando espaço nas redes sociais e na internet, Me Too, etc - que a coisa começa a feder. 

E fazendo aqui um aparte em defesa das mulheres que chegaram a rotular Clint de misógino e cruel, acredito que Eastwood queimou seu filme de graça aqui, pois vende a imagem de Kathy desde o primeiro fotograma como uma mulher promíscua, capaz de qualquer coisa para se dar bem. E só por isso já temos motivo suficiente para tomarmos cuidado ao analisar o projeto. 

No final das contas, o que salvou o filme do eterno Dirty Harry de não cair no ostracismo e virar alvo de ativistas é o grande painel que ele construiu sobre os EUA controverso de hoje. Há um pouco de tudo aqui: a eterna mídia sensacionalista, que volta e meia bagunça a vida dos outros e, quando erra, não pede desculpas; a cultura viciante da hierarquia policial, não por estar preocupada em fazer justiça e averiguar os fatos, mas porque quer assumir o caso visando a fama; e a indústria dos ressentidos que adoram pegar volta e meia alguém para Cristo. 

E Richard Jewell funciona bem como o Cristo da vez. Ele não se encaixa no padrão do que a sociedade americana gosta de vender como correto, como modelo. É gordo, nunca é levado a sério, mora com a mãe - para muitos, o suficiente para ser rotulado como um perdedor - e está sempre disponível (para o senso comum: disponível em excesso). 

O monólogo final do personagem, quando enfrenta cara a cara o agente do FBI que quase destruiu sua vida, é extraordinário e mostra uma realidade nua e crua. Não é à toa que tão poucos ajudam no mundo, e tantos prefiram fugir, se esconder, virar a cara para o outro lado. No final das contas, parece que bandido é "aquele que faz a sua parte, que se preocupa, que toma uma atitude". 

Logo, que país é esse que se esconde atrás de super-heróis e presidentes machões, mas adora varrer para debaixo do tapete a verdade sobre certas histórias contadas ao povo? Richard Jewell nada mais é do que um Lee Harvey Oswald aprimorado. Aquele que deve herdar a culpa para que não precisemos ir longe descobrir a verdade. 

Mas vai ter gente por aqui dizendo que "não é bem assim", pois não tem recursos para formar uma opinião melhor do que essa. 

P.S (e numa era cheia de politicamente correto e demagogos religiosos no Brasil, eu não posso terminar essa crítica sem dizer isso): você, cristão chato e que chama tudo de blasfêmia, que se incomodou com o título do meu texto, na boa... O problema é seu e só seu. Eu tenho mais o que fazer do que esperar a sua benção sobre tudo o que eu penso, digo ou escrevo. Anotou?

domingo, 15 de março de 2020

Cinismo em traços simples


Toda vez que eu leio quadrinhos eu vivo uma experiência única e ímpar. E essa experiência se processa de formas distintas. Às vezes o que eu quero é ser surpreendido pela genialidade de um grande mestre, quero ficar boquiaberto com o seu brilhantismo. Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, foi um caso desses. Melhor: foi um caso à parte em toda a minha relação com a nona arte. E às vezes só o que eu desejo é o simples, porém feito com extrema inteligência e elegância. 

As cobras, antologia de tirinhas de jornal escritas pelo mestre da crônica Luís Fernando Veríssimo, cai como uma luva nesse segundo grupo. E acreditem: as cobras dizem mais sobre o Brasil de ontem, de hoje e também (tenho certeza disso!) de amanhã do que muito economista e cientista político consagrado que vocês andam lendo por aí nos tabloides...

Porém, é preciso avisar aos desavisados (que estão sempre de plantão, xeretando aqui nos meus escritos): para aqueles leitores que estão acostumados com o apuro estético e o virtuosismo gráfico de quadrinistas como Frank Miller, Guido Crepax e Will Eisner, entre outros, procurem por outro trabalho mais complexo. Ficarão um tanto desapontados com este álbum. A máxima aqui é: traços simples e pena afiadíssima contra o sistema, a sociedade, o mundo controverso como um todo.

A força que rege o trabalho de Veríssimo está na ironia e no contexto denunciatório dos diálogos entre as cobras. Contudo, mesmo desempenhando de forma ácida o papel de protagonistas, elas não estão sozinhas no palco. Não, senhor! Volta e meia há a presença de outras espécies animais que interagem com o cinismo de ambas. 

E há cinismo, deboche e sátira para todos os gostos (e contextos) possíveis: sacaneiam a programação televisiva a torto e direito; debocham de relacionamentos amorosos e da geopolítica do mundo; tentam coabitar no cada vez mais corrido mundo do futebol (o que, por si só, já é uma gigantesca ironia); se colocam no lugar do criador, questionam suas decisões e escolhas; tratam das relações com o poder e o Estado, das angústias promovidas pela corrupção e pelo pessimismo crônico existente no país; ironizam a história do mundo (em alguns momentos numa linha que lembra o humor ácido do grupo Monty Python); tiram onda na praia, no melhor estilo carioquês; e arranjam tempo até para rir das passagens bíblicas, de forma inteligentíssima (mas claro que os cristãos insuportáveis não vão gostar!).

Como coadjuvantes de luxo (ou cereja no bolo, fica a critério de vocês!), os interlocutores das cobras: Queromeu, o corrupião corrupto; Mark Eting, o candidato perfeito; Dudu, o alarmista; Sulamita, a pulga lasciva; Felipe, o príncipe que virou sapo; Tia jiboia e a dupla de caracóis Flecha e Shirlei.

O volume é dividido em nove módulos e mesmo assim eu fiquei querendo mais ao final da leitura. Veríssimo não deve nada aqui ao que faz em suas costumeiras crônicas de jornal. Um humor afiadíssimo e antenado com a realidade do país. Se existe um escritor nacional que conhece o Brasil como poucos é ele! 

E o melhor de tudo: o presente que foi ter lido tudo isso online, em PDF, sem pagar um centavo. Não adianta: eu vou morrer amando a internet. Que me desculpem àqueles que a chamam de terra de ninguém. Vocês estão frequentando os lugares errados!

Agora chega de papo furado, saiam daqui e vão para o site Le Livros. Eu quero que vocês (que leram este artigo, é óbvio!) também conheçam esta pequena joia em forma de comics. Vão!

quarta-feira, 11 de março de 2020

Manual prático para entender psicopatas


O mundo está cheio de Jacks, mas a humanidade (ah! a humanidade!) prefere o conforto da hipocrisia, e esconder suas mentiras preferidas atrás do discurso de que "fala sério! isso é mais uma invenção da cultura pop!". E por isso, defendo aqui o diretor Lars Von Trier. Ele matou a pau. 

A casa que Jack construiu, último longa lançado pelo diretor (e que foi odiado de forma maciça pela crítica; teve até gente que abandonou a sessão no meio num dos festivais de cinema da Europa) é um grande ensaio sobre a hipocrisia latente que reina entre nós. 

O Jack - interpretado pelo ator Matt Dillon, que depois de anos perdendo tempo com personagens inúteis, enfim faz uma boa escolha de carreira - proposto por Von Trier é o estereótipo máximo da psicopatia. Mata única e exclusivamente pelo prazer de matar. A ele não interessa nenhum juízo de valor ou moral ilibada. Ele é desse jeito porque decidiu ser assim. E suas vítimas são aquelas que aparecem diante de si quando a oportunidade se mostra. Ele não precisa de um motivo para caçá-las ou persegui-las. Nada disso. Na prática, ele aprecia o momento e exerce "sua arte". 

E é nesse momento que o filme se torna ainda mais interessante como reflexão (e essa, por sinal, deveria ser a principal abordagem dos cinéfilos, e não buscar algum tipo de adoração ou repulsa pela barbárie ou tentar catalogá-lo dentro do universo "filme de terror"). O diretor faz uma inteligente correlação entre os crimes de Jack e as obras de artistas clássicos da pintura. 

Me peguei a todo momento pensando nessa geração de hoje que não sabe separar a obra artística de um indivíduo de seus delitos morais e perniciosos. Pior: boicotam suas carreiras, chegam a fazer campanha para que outros a boicotem também. Estão perdendo tempo, coitados! É praticamente impossível encontrar no mundo das artes alguém - e olha que eu já procurei por isso - que tenha uma vida acima de qualquer suspeita. 

Parece fazer parte desse mundo a ideia de perversão, de incômodo. E isso é muito bem trabalhado em forma de telas, películas, livros, fotografias, músicas, ou seja lá que plataforma artística eles escolham. Não se trata - sinto muito aos moralistas que estiverem lendo esta crítica - de uma ciência exata, de uma realidade feita apenas de virtudes. Quem dera fosse fácil assim!

E Jack entende isso como poucos. Chega a descer ao seu último grau de indecência para provar às suas vítimas e perseguidores o quanto sua "arte" é pura, e não atrelada aos desejos de outros. Ele é, na melhor (ou pior, dependendo de como você enxergue a situação) expressão do termo, um sobrevivente do caos diário. E por isso não deve justificativas àqueles que nunca irão compreendê-lo como um todo. Porém, um todo fadado a destruir e não a construir o que quer seja. 

E nesse sentido a casa que ele "supostamente construiu" é apenas uma dúvida, uma lamento, uma tentativa inglória de permanecer humano, quando na verdade o que ele deseja de fato é destruir o mundo que o rodeia. 

Adorei um passagem do filme no qual Von Trier me fez lembrar de O auto da barca do inferno, de Gil Vicente (se a correlação não era essa, peço desculpas! nessas horas, eu sempre enxergo demais e de acordo com meus próprios gostos e referências). 

Volta e meia chamam Lars de devasso, de polêmico, de mau caráter e aqui ele deu todos os motivos para que seus detratores bufassem de ódio. Realiza uma espécie de manual prático para entender psicopatas, mas sem cair nas armadilhas dos jargões psicanalíticos. Ele recorre às artes plásticas para nos mostrar o quanto o mundo anda impregnado de morte e violência até o talo, e acha tudo isso um tanto natural, às vezes até necessário. 

Digo isso porque nunca falamos tanto em andarmos armados 24 horas por dia. Nunca se pediu tanto como nessa sociedade contemporânea por uma terceira guerra mundial (e tem quem se faça de desentendido, dizendo que "não é bem assim"). E não bastasse todo esse ódio, essa apologia à violência, tem quem exija a volta de muros, regimes totalitários e cultue ditadores e genocidas. Mas, no final, quem não prestam são os artistas. Esses sim precisam sumir do mapa. De vez. 

Ó, Deus, perdoai-os! Eles não sabem de nada! Que dirá o que fazem...

domingo, 8 de março de 2020

Il maestro


O cinema mundial é capaz de nos presentear com homens e mulheres extraordinários a tal nível que até mesmo uma simples categorização ou definição torna-se impossível. É simplesmente inimaginável dizer o que certas pessoas significam em termos de sétima arte. E cá entre nós: que bom que isso de vez em quando acontece com nós, cinéfilos! 

Este ano comemoramos o centenário de Federico Fellini. Para muitos, o gênio-mor, praticamente o "inventor" do cinema italiano. Para este que vos fala, il maestro do cinema mundial. 

É difícil explicar Fellini, pois ele mesmo não gostava que o definissem ou classificassem. Seu cinema era muito mais que meras narrativas. Não ficou conhecido como o "rei dos sonhos" à toa. E em várias entrevistas que concedeu ao longo da vida, deixou claro que um gesto, um grito, um pôr-do-sol, um sorriso, a escuridão, valiam tanto quanto qualquer personagem que criou. E criou vários. 

Entre os colaboradores que teve ao longo da carreira, difícil esquecer de dois: sua musa - e posteriormente esposa - Giuletta Massina, que ele chamou de "o Carlitos de saias" (e para os que acham um exagero a comparação com Chaplin, recomendo que parem tudo o que estão fazendo nesse momento e assistam Noites de Cabíria) e o galã malandro, como meu pai gostava de chamar, Marcello Mastroianni. E é praticamente impossível, quando se fala em Marcello, não lembrar de seu Guido Anselmi em Oito e meio, o diretor de cinema em crise existencial. E embora ele tenha se consagrado na parceria que realizou com a musa Sophia Loren ao longo da carreira, foi pelas mãos de Fellini que atingiu seu patamar mais alto. E acreditem: isso não é pouca coisa, não! 

Porém, nem só de parcerias bem sucedidas sobrevive um grande diretor de cinema. Há um marca inconfundível na sétima arte de Fellini: a capacidade de transformar os menores temas em assuntos grandiosos, extremamente bem contados. Foi assim com um simples ensaio de orquestra (por sinal, um longa que até hoje mexe com a minha cabeça), o dia-a-dia de um transatlântico no magnífico E la nave va e o ritual por trás dos palhaços de circo (realizando um dos melhores documentários que eu já vi até hoje). 

Numa passagem do programa Arquivo N da Globo News sobre seu centenário o diretor diz que fora do set "se sente amargurado, vazio" e me pego pensando no quanto deve ter ficado eufórico durante as filmagens de A estrada da vida (que lhe valeu um Oscar de filme estrangeiro), A doce vida e Amarcord, para mim seus melhores trabalhos. 

Fellini não gostava de simplesmente retratar a burguesia em seus vícios e virtudes, mas soube escandalizar com A doce vida. Não era um Pasolini, provocador em excesso, morto por um fã ainda mais fanático do que ele, mas soube pesar a mão quando precisou com o polêmico Satyricon. E quando precisou homenagear (tem quem diga satirizar) a dupla de dançarinos mais famosa de hollywood, o fez com grande brilhantismo em Ginger e Fred.   

Esse ano completaremos em outubro 27 anos sem a presença desse grande mestre e ele nunca fez tanta falta para a sétima arte quanto agora. A cine città, fábrica onde realizou seus sonhos mais loucos, também nos deixou. O cinema italiano também não é mais o mesmo dos tempos em que ele, Ettore Scola, Vittorio de Sica, Michelangelo Antonioni, Sergio Leone e Roberto Rossellini ditavam os rumos da arte no país. 

Tem quem me pergunte volta e meia se ele sobreviveria hoje em dia, em plena era de blockbusters, remakes, Disney dominando o mercado e uma crise de originalidade assustadora. Resposta: não tenho a menor dúvida. Não consigo imaginar a presença de diretores como Guillermo del Toro, Alfonso Cuarón e Terry Gilliam no mercado audiovisual se no passado não houvesse um Federico Fellini. Ele foi um visionário da indústria, dessa nobre arte de contar histórias. Transformou o delírio em forma de pensamento. Fez do mundano um assunto para o debate. Não vingaria hoje? Sério? Vocês não podem realmente acreditar nisso!

Consta no IMDb um projeto chamado The thousand miles, inspirado num roteiro seu, a ser dirigido por Sylvain Chomet (realizador da extraordinária animação As bicicletas de Belleville), uma espécie de ficção-científica. E já fiquei de cabelo em pé só de saber da existência dele. Espero ansioso que saia do papel. Caso não saia, só nos resta, fãs inconsoláveis de seu talento ímpar, continuar acompanhando suas aventuras e delírios através dos dvds e do blu-ray. O que, logicamente, não é a mesma coisa. Mas que quebra um galho, ah quebra! 

sexta-feira, 6 de março de 2020

É pandemia ou não é?


É todo dia, toda hora, o tempo todo, na tv, na rua, no jornal impresso pendurado na banca, na conversa de botequim, já encheu o saco, mesmo!

"Dólar reduz alta após bater R$ 4,50 com temor global sobre coronavírus; Bolsa tem forte oscilação", "Com primeiro caso no Brasil, não é preciso comprar máscara  nem entrar em pânico", "Droga antimalária poderia ser a solução para o coronavírus", "Coronavírus já é detectado em 45 países do mundo, em todos os continentes", "Coronavírus pode impactar crescimento global", "Temor por surto de coronavírus e impactos da doença sobre a economia global", "Fora de controle: não o coronavírus, mas as reações a ele", "FMI deve reduzir projeção para crescimento global por causa de coronavírus", "Facebook cancela seu maior evento do ano por causa do coronavírus", "Existe a possibilidade das Olimpíadas de Tóquio serem canceladas por conta do coronavírus", etc etc etc e milhões de outros etc. 

Pois é: o coronavírus dita a pauta dos diálogos e do dia-a-dia carioca, brasileiro e mundial. O problema? O meu ceticismo em acreditar em tudo que verse sobre o problema, sobre o vírus em si. Isso porque somos - sempre fomos - um país que adora fabricar cortinas de fumaça toda vez que uma crise financeira mundial se instaura. Gostamos, gostamos mesmo, da mentira (quer dizer: hoje em dia chamam ou de pós-verdade ou de fake news, mas em tese significam a mesma coisa) e ela volta e meia ressurge das cinzas, como uma fênix alucinada. 

O senhor paulista de 61 anos que veio das férias na Itália para cá e se tornou a ponta do nosso iceberg (o primeiro caso nacional do vírus) não demora muito ganhará a fama de antipatriota ou calhorda - o que for mais fácil de pronunciar na hora! - por parte dos eternos ignorantes de plantão travestidos de nacionalistas ao extremo. Já prevejo gente por aqui dizendo: "Por que esse desgraçado não ficou por lá mesmo, não morreu por lá? Não. Tinha que trazer essa desgraça aqui para o Brasil". 

Nesse momento nos transformamos numa faceta animalesca e egoísta de nós mesmos. Algo, aliás, que nossa sociedade adora: sentar em cima de seus próprios direitos e privilégios e que se danem os demais. 

Atrelado ao coronavírus uma indústria da falácia, das invencionices, do exagero, da eterna mania humana que temos de fabricar tragédias em larga escala. E ainda por cima tem quem se orgulhe de ser essa porção vil (e contraditória) da humanidade. 

E olha que para aumentar ainda mais o circo midiático ainda está rolando a vacinação contra o sarampo e a possibilidade de um regresso da dengue e da zika, que volta e meia também dão as caras por aqui, fazendo aquele velho estrago de sempre. Não se esqueçam: o verão só acaba no final de março. 

Como sou um ser cinematográfico - e vocês, meus caros leitores, sabem bem disso - minha mente me faz voltar ao longa-metragem Contágio, do diretor Steven Soderbergh (cineasta americano famoso por espezinhar mazelas da sociedade). Lá, o vírus destruiu milhões de vidas e transformou o mundo numa sucursal de seita religiosa fanática. Com uma diferença: o cinema recorre sempre a um animal hospedeiro. Já aqui, no mundo real, os teóricos da conspiração aproveitam a deixa para falar de "testes de vacina que deram errado, ocasionando um problema ainda maior" (até com a AIDS tem quem especule acerca disso!). 

Portanto, no geral, eu vejo o caso coronavírus (e o itálico aqui é proposital) na prática como mais uma ficção criada para apavorar aqueles que, por natureza, já se apavoram com uma enorme facilidade. E em se tratando de Brasil, terra que nunca primou pelo quesito inteligência, esse terreno é extremamente fértil e cai como uma luva para os interesses daqueles que deveriam ser nossas autoridades, mas não passam de reles factoides e viciados em fama, poder e dinheiro. 

Dá pra dizer que "estamos todos lascados, de novo?". É claro que dá. Sempre deu. Mais: lascados no sentido de sumariamente enganados E respondendo a pergunta proposta pelo título deste humilde e controverso artigo, não sei se haverá pandemia. Mas, para quem espera algo na linha Resident Evil ou o livro do escritor Max Brooks, O guia de sobrevivência a zumbis - proteção total contra os mortos-vivos, melhor diminuir drasticamente as expectativas. Nós já passamos da idade de transformar esse tipo de história em algo tão sobrenatural assim!


terça-feira, 3 de março de 2020

O marginal popstar


O Brasil é um país que não muda porque não tem interesse em mudar, quer que tudo permaneça na mesma (de preferência, de acordo com os seus próprios interesses). Não bastasse isso, adora cultuar o errado, relativizar o que é crime e o que é boa ação. Bota tudo na conta do "veja bem...". E pensar que o diretor Rogério Sganzerla falava disso mais de 50 anos atrás e ninguém deu a menor bola. Nem naquela época, muito menos hoje! 

É com uma enorme satisfação que sentei em frente ao meu aparelho de tv esta semana para assistir o dvd de O bandido da luz vermelha, de Sganzerla, clássico do chamado cinema marginal. E é também com uma enorme tristeza e um sentimento de impotência atroz que percebo que nada, absolutamente nada, mudou neste país que não consegue fugir da pecha de república de bananas. "Que país de merda!", dirão sem pestanejar aqueles que hoje migram em massa para Portugal. 

O longa, que estreou por aqui às vésperas do ato institucional nº 5, é um marco do nosso cinema (mas vive sendo taxado por quem não conhece nada da sétima arte brasileira e da nossa cultura em geral de "mais um exemplar da apologia à violência"). Coitados deles! Não fazem a menor ideia do que estão falando!

Paulo Villaça (ator que merecia estar em evidência no país até os dias de hoje) entrega um luz vermelha que é a cara do Brasil de ontem, de hoje e provavelmente de amanhã. E Sganzerla, diretor que fez parte do grupo que fundou o cinema novo, mas também quis seguir por outros caminhos mais ácidos, entrega aquele que é, para mim, o filme derradeiro sobre a nossa nação controversa, que adora idolatrar criminosos de todos os tipos. 

Luz vermelha é um marginal popstar, figura que volta e meia ganha os holofotes da mídia sensacionalista nessa terra ainda tupiniquinesca que chamamos equivocadamente de "país em desenvolvimento". É tão folgado que não só assalta casas, como dorme com as mulheres que rouba (e volta e meia elas se apaixonam por ele!) e ainda pede, de vez em quando, que elas façam um almoço para ele. Em outras palavras: é um artífice-mor dessa cara de pau que reina no Brasil há séculos. 

Talvez a única, de todas as mulheres com quem dormiu, que pudesse entendê-lo na íntegra fosse Janete Jane (Helena Ignez, musa dessa geração cinematográfica). Mas ela estava tão preocupada com o seu próprio oportunismo, sua própria beleza, que preferiu traí-lo. E pagou caro por isso, como tantos outros que atravessaram o caminho dele. 

Do outro lado da sede de status de Luz vermelha está o Delegado Cabeção (Luiz Linhares), que sofre do mesmo problema de Luz: ele busca também, a sua maneira, a notoriedade em primeiro lugar. Prender o bandido é apenas um detalhe perto do que representa ser reconhecido nas ruas como "o homem que prendeu Luz vermelha". E nesse momento Sganzerla realça um faceta típica de nossa sociedade que adoramos varrer para debaixo do tapete. Falo da eterna mania de fazermos péssimas escolhas baseadas em interesses escusos. Insira nesse contexto um pontada de fama e projeção e bum! eis aí o nosso exemplar ser humano de baixa categoria. 

Contudo, me corrijam vocês, leitores, se eu estiver errado, mas acredito que os grandes protagonistas de O bandido da luz vermelha são os dois locutores de rádio que narram essa saga inglória, fadada logicamente ao insucesso. Digo mais: ambos remetem à uma espécie de consciência, aquela voz incômoda, que nunca queremos ouvir, pois nossa egolatria não permite, mas está sempre apontando os caminhos certos ou, ao menos, aqueles que deveríamos prestar mais atenção. 

Mas vai explicar isso a uma nação que idolatra a ignorância desde a chegada de nossos patrícios em 1500?

Com seu filme-denúncia, quase manifesto de uma era que (ainda) não acabou, Sganzerla compõe uma tríade (junto com Terra em transe, de Glauber Rocha e A dama do lotação, de Neville d'Almeida) que optou por esmiuçar o Brasil ao invés de simplesmente deixá-lo para lá e vender belezas, fetiches e estereótipos. Aliás, tudo o que está acabando com o cinema da retomada. 

Certa ocasião num vídeo do you tube vi Quentin Tarantino se dizendo fã do longa e é fácil entender o porquê. Sganzerla foi, à sua maneira, na sua época, um Tarantino. Mesclou referências e brincou com formatos do jeito que quis e quando quis. E não à toa ganhou, para mim, ao lado de Glauber, o rótulo de gênio do nosso cinema. 

E é uma pena saber que a obra desse homem ande tão esquecida hoje em dia por parte de quem acha que sétima arte é sinônimo unicamente de efeitos especiais, super-heróis, CGI e mulheres masculinizadas interpretando vingadoras, assassinas de elite e caçadoras de recompensa! 

Ah, Sganzerla! É sério que você teve de morrer? Que falta você está fazendo aqui embaixo, meu amigo!