sábado, 23 de abril de 2022

O revolucionário das HQs


Antes mesmo da palavra - e por conseguinte, da cultura - nerd surgirem da maneira como surgiram, eu já era um exemplar raro dentro da fauna adolescente que eu frequentava lá pelos meados dos anos 1980. Quando todos só queriam saber de farra, pegar a chave do carro do pai emprestado, beber e fumar para ver qual o barato que rolava, eu vivia mesmo era nas filas de cinema e teatro (o Tablado foi praticamente uma segunda residência) e aproveitando cada segundo que eu podia lendo. 

E quando digo lendo, falo de absolutamente tudo. Até bula de remédio ganhava espaço nessas horas! 

E dentro dessa minha vertente leitor as histórias em quadrinhos, tirinhas de jornais e os comics de forma geral tiveram uma participação gigantesca. Nunca entendi - vou logo confessando de cara - essa mania que o mercado tinha de chamar os quadrinhos de arte marginal. Só pensa isso que nunca leu. 

E entre Turma da Mônica - que, obviamente, nunca faltou na estante da minha geração -, Recruta zero, os heróis da Marvel e DC e o genial Will Eisner com seu Spirit, eu descobri os "visionários" que criaram a extraordinária Chiclete com Banana, para mim a mais brazuca das publicações nacionais. Luiz Gê, Glauco, Roberto Paiva, Glauco Mattoso. Laerte Coutinho e, claro, o magistral Angeli, inseriram naquele universo tudo o que, até então, não cabia sequer na imaginação dos moralistas. 

Eles realizaram, sim, a grande revolução dos quadrinhos no país, associando humor e escracho à sexo e drogas, mas de uma maneira nada convencional. E a minha geração queria aquilo muito mais do que qualquer sala de aula. 

E eis que para a tristeza e lamento dos fãs Angeli, aos 65, decreta a aposentadoria de sua carreira, por conta de um diagnóstico de Afasia (doença degenerativa que nos últimos meses vêm ganhando destaque após a decisão do ator hollywoodiano Bruce Willis, da franquia Duro de Matar, em também encerrar a carreira pelo mesmo motivo).

Angeli começou a rabiscar cedo, aos 14 anos, para a revista Senhor e para alguns fanzines, e logo a seguir foi contratado pela Folha de São Paulo. Teve seu trabalho publicado na Alemanha, França, Itália, Espanha e Argentina, mas nenhum outro país fora do Brasil recebeu tão bem a sua obra quanto Portugal, que compilou seu trabalho e chegou a produzir uma série animada com seus personagens icônicos. 

E por falar neles, difícil escolher um preferido num painel tão versátil e fora de qualquer padrão. A grande maioria dos leitores certamente tem uma identificação maior com Rê Bordosa, a junkie porralouca (que chegou a ser dublada num longa de animação pela cantora Rita Lee) e os machões de plantão rendem loas à Bob Cuspe, o punk anarquista, mas sua obra não se rendeu exclusivamente a ambos.

Com os adolescentes Luke e Tantra e sua obsessão por perder a virgindade, os velhos hippies Wood & Stock, Os Skrotinhos (e, claro, sua versão feminina), a ninfomaníaca Mara Tara, o guru espiritual Rhalah Rikota, o voyeur e fetichista Ed Campana, o roqueiro - e morador do Leblão - Ritchi Pareide, o paranormal Rampal, o egocêntrico Walter Ego, Los três amigos, Rigapov - o imbecil do apocalipse e Hippo-Glós, o hipocondríaco (que foi inspirado no teatrólogo Cacá Rosset), dentre tantos outros, externou uma plêiade de tipos sociais e humanos os mais diversos. E o mais importante para os leitores: sem o menor pingo de juízo (como era bem a cara dele). 

Além dos quadrinhos e cartuns, ele também foi redator do programa infantil TV Colosso (1993 - 1996) na Rede Globo e desenvolveu quadrinhos animados para a internet e o canal a cabo Cartoon Network. E Nos últimos anos ele acabou ficando mais conhecido pela série Angeli - The Killer, produzida pelo Canal Brasil, do que por seus próprios trabalhos. Mas não se iludam! Isso em nada diminui seu talento gráfico. 

Para conhecer um pouco mais sobre a obra do Angeli, procurem (o quanto antes) nas lojas e sebos:


Cinema

Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock'n'Roll, de Otto Guerra (2006)

Dossiê Rê Bordosa, de César Cabral (2008)

Angeli 24 Horas, de Beth Formaggini (2010)

Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente, de César Cabral (2021)


Quadrinhos (todos da Quadrinhos na Cia.):

Todo Bob Cuspe

Toda Rê Bordosa

O Lixo da História


Só faltou dizer duas coisas: 1) uma pena, mesmo! ele parecia ter ainda tanto a propor e 2) chega ao fim uma era nas HQs nacionais. Quem não concorda comigo, que me prove o contrário!


domingo, 17 de abril de 2022

O exército de um homem só


Quem, como eu, foi testemunha ocular do cinema americano que era feito nos anos 1980 sabe a quantidade de arquétipos e estereótipos que hollywood criou para manter viva a cultura brucutu daqueles tempos. Arqueólogos destemidos, rebeldes sem causa, pugilistas imbatíveis, lutadores das mais variadas artes marciais, etc etc (e haja etc). 

Era bastante comum naquele período a expressão "exército de um homem só" para se referir a esses protagonistas avassaladores que nenhuma força da natureza ou forças armadas era capaz de destruir. E a geração músculos estava repleta de versões as mais variadas dentro deste perfil (Dolph Lundgren, Arnold Schwarzenneger e Bruce Willis, entre tantos outros, que o digam). 

Entretanto, nenhum deles a meu ver conseguiu construir a mesma imagem que Sylvester Stallone carregou por toda a carreira. E muito disso se deve à Rambo: programado para matar, de Ted Kotcheff, que completa quatro décadas de existência agora em 2022. O garanhão italiano - como é bastante conhecido até hoje - já era famoso pelo personagem Rocky Balboa quando deu vida nas telas ao ex-boina verde acometido pelo stress pós-traumático por conta do conflito na guerra do Vietnã, mas foi aqui que ele construiu sua lenda. 

A história de John Rambo não tinha (e ainda não tem) nada de excepcional para os padrões da época: ele regressa à cidade de Hope, em Washington, após o fim da guerra para reencontrar um amigo de farda e acaba descobrindo que todo o seu pelotão morreu após voltar do conflito. Se depara com o xerife linha-dura Teasle (Brian Dennehy), que o vê como um reles vagabundo e perigoso, tudo porque ele porta uma faca e está andando a esmo pela cidade. É espancado, torturado, humilhado, se revolta e foge. 

Porém, dessa perseguição policial é despertado um gatilho para que uma nova guerra aconteça, agora dentro da sua mente. E as consequências desse novo combate são certamente catastróficas. 

A produção do longa por si só já renderia um filme próprio, cheio de lendas urbanas as mais diversas. O projeto, segundo declaração de pessoas que participaram da pré-produção, chegou a ter 26 versões diferentes de roteiro (a obra original é de autoria do escritor David Morrell) até que o próprio Stallone escrevesse a versão final. E o corte inicial, que tinha mais de três horas de duração, foi rechaçado pelo astro, que cogitou a possibilidade de comprar os direitos para destruir a cópia, que acabou sendo reeditada até ficar com os 93 minutos de projeção finais. 

Ted Kotcheff não foi a primeira escolha para dirigir o longa, que quase teve na cadeira de diretor nomes como Mike Nichols (de A primeira noite de um homem), Sydney Pollack (de Entre dois amores) e George Miller (responsável pelo sucesso de bilheteria Mad Max, com Mel Gibson).

Já quando o assunto é elenco a empreitada ficou ainda mais trabalhosa. Vários atores foram cogitados para interpretar John Rambo, dentre eles Clint Eastwood, Robert de Niro, Al Pacino, Kris Kristofferson, Chuck Norris, James Garner, Dustin Hoffman, John Travolta, Ryan O' Neal, Paul Newman e Jeff Bridges. O ator Gene Hackman chegou a fazer teste para interpretar o Xerife Teasle, mas acabou abandonando a produção. Já os atores Kirk Douglas, Rock Hudson e Lee Marvin foram cogitados para interpretar o Coronel Trautman, personagem que acabou sendo vivido pelo ator Richard Crenna. 

E por falar no Coronel Trautman, ele é a voz da consciência de Rambo, o único homem capaz de realmente entender o que se passa em sua mente perturbada e trazê-lo de volta à razão, quando possível. E é nesse momento que ele e Teasle se desentendem, pois têm opiniões discordantes acerca do país, do que consideram patriotismo e do papel da violência na atual sociedade americana.

Considero o monólogo final do soldado, quando ele desabafa sobre o que foi a guerra do Vietnã e o que os Estados Unidos se tornaram depois do conflito, uma das melhores sequências da história do cinema americano e uma prova mais do que irrefutável do talento de Stallone, que sempre foi visto pela crítica como um reles brutamontes. E o legado que o filme deixou para as gerações posteriores está intacto até hoje, tanto que hollywood nunca encontrou um sucessor para o personagem.

O que faltou dizer depois de toda essa singela homenagem de minha parte? Que o cinema de ação feito hoje não chega no calcanhar do que realizaram aqui. Difícil é fazer os atuais cinéfilos ofuscados pelo mundo nonsense da Marvel e da DC entenderem isso!