terça-feira, 27 de junho de 2023

O visionário


A literatura é capaz de transformar seres comuns, cotidianos, em lendas. E, às vezes, certas lendas extrapolam sua própria dimensão e flertam com uma espécie de imortalidade que só é possível em esferas como o mercado editorial. Fiquei pensando nisso ontem após ler uma matéria na Folha de São sobre o escritor, jornalista e ensaísta político inglês George Orwell.  

Acho difícil que um outro escritor ao redor do mundo tenha sido tão mencionado quanto Orwell na última década. E a maneira como a própria geopolítica do mundo vem se construindo nos últimos anos contribuiu - e muito! - para isso. Orwell é amado e odiado por gerações distintas com a mesma intensidade. E ainda assim tenho a nítida impressão de que ainda não conseguimos tocar sequer a superfície do seu conhecimento. 

Polêmicas (e devoções) à parte, o fato é que Orwell, se vivo, estaria completando 120 anos. E certamente continuaria visionário e indispensável em seus escritos, provocando a tudo e todos. 

O autor que parou o mercado editorial em 1949 com o seu mais do que cult 1984 viu o mundo com suas cicatrizes amorais e sua eterna predileção pela hipocrisia muito antes de chegarmos ao caos em que nos encontramos atualmente. E enxergou - e escreveu - sobre tudo isso com uma facilidade assustadora. Não à toa incomodou os eternos demagogos e devotos da vida pelo status e o dinheiro e nada mais. 

Foi uma voz pungente contra o totalitarismo e o capitalismo como modelo de governo excessivo e deturpador. Rodou o mundo e reproduziu em ensaios espetaculares (e tremendamente angustiantes, difíceis de ler, tamanha a crueza e verdade de suas palavras) o que viu de horror, de manipulativo, de castrador. E também o quanto o povo foi massacrado por decisões políticas e empresariais execráveis. 

Deveria, na minha modesta opinião, ser leitura obrigatória em todas as escolas do mundo, nem que seja para o desenvolvimento de um senso crítico mordaz. No entanto, é taxado a todo momento dos mais terríveis apelidos, preconceitos, estereótipos, e de certa forma virou meio que "o inimigo público número 1" da sociedade contemporânea. 

Fica aqui meu sincero apelo: procure suas obras. Entre meus preferidos, recomendo (além, claro, da já citada ficção-científica no terceiro parágrafo) volumes como A revolução dos bichos, A flor da Inglaterra, Dias na Birmânia e Por que eu escrevo e outros textos, onde divide com seus leitores seu processo criativo e literário.

Paro por aqui, pois não quero entregar de bandeja aos leitores o mistério por trás de sua obra forte e contundente (na verdade, nem tenho competência para isso). Descubram-no, caros leitores deste blog! 

Aposto como agradecerão a si mesmos depois que viverem essa experiência.      


sexta-feira, 23 de junho de 2023

A mistura perfeita


Ontem li em vários perfis do twitter que o longa Uma Cilada para Roger Rabbit, de Robert Zemeckis, completou 35 anos de existência e tive duas reações distintas. A primeira, de espanto. Jura? Já tem isso tudo? Eu era mero adolescente quando esse promissor projeto (hoje cult) estreou nos cinemas de subúrbio aqui perto de casa. A segunda, de estranhamento. Eu lembro de ir assistir o filme no final do ano. Depois lembrei-me que os sucessos hollywoodianos entravam em cartaz por aqui bem depois, não tinha muito esse lance de lançamento simultâneo. 

Reações à parte, sentei-me de frente pra tv e reassistir o filme, misto de live action e animação, um pioneiro nessa mistura a entrar em cartaz (pelo menos para mim). E acreditem: continua impecável! 

Acompanhamos o detetive Eddie Valiant (Bob Hoskins) - que detesta desenhos sumariamente, pois seu irmão foi morto por um - investigando o assassinato de Marvin Acme (Stubby Kaye), executivo-mor do ramo de animações. E o principal suspeito, que jura de pé junto não ter nada a ver com o crime, é o coelho tresloucado (voz de Charles Fleischer, extraordinário!) que dá título ao longa. O motivo: sua mulher, Jessica (voz de Kathleen Turner), seria amante de vítima. 

Juntos precisam enfrentar a polícia, o Juiz Doom (Christopher Lloyd) e seus asseclas, as doninhas, e principalmente a loucura que é o mundo das animações. Detalhe importante: há a presença de desenhos dos mais diversos estúdios, de Mickey Mouse à Pernalonga, de Betty Boop à Pica-pau e muito mais. E a mescla entre seres humanos e desenhos é extremamente bem feita. Imagino o filme sendo realizado hoje, com todos os avanços tecnológicos. 

Que me perdoem os fãs de Space Jam com Michael Jordan ou LeBron James dividindo tela com os looney toons ou tudo mais que veio em seguida nesse segmento, mas nada supera a façanha de Zemeckis (para mim, bem mais diretor do que a indústria do cinema americano gosta de reconhecer). Uma Cilada para Roger Rabbit é a mistura perfeita de estilos e formatos, daquelas produções cinematográficas (digo mais: experiências) que somente de tempos em tempos dão as caras na meca do cinema. E isso, claro, é uma pena! 

Volta e meia o revejo em algum canal de tv a cabo ou pirateando na internet mesmo e sempre me deparo com algo que deixei escapar anteriormente. 

E isso me faz pensar numa questão de difícil debate: tendo em vista a crise na Pixar, que vem sofrendo acusações de não ser mais a mesma dos bons tempos de Toy Story e Wall-E, e ter se entregado de vez ao mercado de continuações e spinoffs, pergunto-me a todo momento qual será o futuro dos desenhos animados. 

Muitos dirão: "mas há o sucesso da franquia Aranhaverso e recentemente Love, death and robots, da Netflix, recebeu inúmeros elogios, mas é preciso ficar de olho. Leia-se: reinventar-se. Pois foi exatamente esse o segredo do sucesso do longa de Zemeckis (responsável por outras grandes produções como a trilogia De volta para o futuro e o vencedor de 6 Oscars, Forrest Gump): ele levou as animações - e os live actions - para um outro lugar. E muita gente não entendeu isso até hoje. 

E, no geral, que o que fica de legado é que esse aqui foi um divisor de águas, ah não tenham dúvidas! E resta saber: será que veremos uma continuação dele algum dia ou é melhor deixar quieto, porque os estúdios só estão deixando a desejar nesse sentido? Fica a dúvida no ar.


Trailer:





segunda-feira, 19 de junho de 2023

125 anos


A primeira pergunta que me veio a mente sobre o dia de hoje é se o italiano radicado no Brasil Afonso Segreto tinha, no dia 19 de junho de 1898, a mais remonta dimensão do que o seu ato propiciaria para a história do cinema brasileiro. O ato em questão, no caso, era a primeira filmagem realizada no país da entrada da Baía de Guanabara (detalhe: a filmagem sequer foi exibida). Provavelmente não. Contudo, se fizesse essa mínima reflexão, provavelmente ele teria ficado orgulhoso. 

Ele abriu um precedente que se tornou uma paixão atemporal em nossas terras (pelo menos, para parte do Brasil acredito que sim). 

Hoje completamos 125 anos do cinema brasileiro e, acreditem, a arte audiovisual brazuca ainda divide opiniões, o que é uma pena. Entretanto, em meio a detratores que só conseguem enxergar nossa obra sob o ponto de vista vulgar ou erótico e aqueles que procuram assiduamente vertentes as mais diversas da nossa produção, o nosso cinema ainda tem muito a dizer. 

Sou suspeito para falar da nossa produção porque virei admirador ainda adolescente nos tempos de cine nacional, na extinta Rede Manchete (canal 6 aqui no RJ), com suas sessões que mesclavam pornochanchada, cinema da boca do lixo e filmes de cangaço. E ainda assim, quando posso, me apaixono - ou detono - nossas escolhas equivocadas de repertório. 

Da mesma maneira que defendo com unhas dentes os rebeldes do cinema novo, Zé do caixão, o terrir de Ivan Cardoso, As chanchadas de Oscarito e Grande Otelo, nossos longas indicados ao Oscar de melhor filme internacional (outrora estrangeiro) e a geração oriunda da retomada - Walter Salles, Fernando Meirelles, Sérgio Machado, Cláudio Assis, Lírio Ferreira, Karim Ainouz, etc - também deprimo volta e meia com certas tendências do nosso audiovisual em se esconder atrás de pautas. 

Nunca engoli a forçada de barra dos chamados favela movies (embora adore Cidade de Deus) e acho um exagero a insistência de certos diretores com a temática trans ou LGBTQIA+ (como se eles existissem apenas para falar disso, não soubessem contar outras histórias!). E a mania de inventar galãs e mocinhas a toda hora, sem a menor contextualização ou razão de ser, também me irrita de tempos em tempos.

Desabafo à parte, é importante desmentir os algozes do nosso audiovisual, que defendem insistentemente uma ideia de que nosso cinema é só miséria, nudez e intelectualismo barato. Não, meus caros! Deem uma chance! Abram seus horizontes! Há mais, bem mais para se ver, basta que vocês consigam abrir os próprios olhos. 

Fomos do minimalismo de Limite (obra seminal de Mário Peixoto, considerado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema o melhor filme brasileiro da história) ao reacionarismo de Cabra marcado para morrer, Terra em Transe e Os fuzis. Choramos e rimos na mesma proporção ao fim de Central do Brasil, Marte um, O auto da compadecida e Cine holliúdy. Pusemos o dedo na ferida com Cidade baixa, Tropa de elite, Amarelo manga, Medida provisória e Vidas secas. Acompanhamos de João Grilo à cachorra Baleia, de Dona flor ao Capitão nascimento, da caravana rolidei à lampião e seu bando. 

E o mais importante: sequer tocamos ainda a ponta do iceberg. Há muito mais, sim, a se mostrar. Superamos até um governo avesso à cultura, gente!. Basta querermos. Que venham os 200, os 300, os 500 anos (eu não vou mais estar por aqui, mas certamente alguém estará, tenho certeza). E com eles, que o nosso cinema permaneça plural. E com a nossa cara. 

Nós merecemos!!!    


sábado, 17 de junho de 2023

É esse o futuro da arte?


Eu fiquei uma semana pensando a respeito depois que vi a escultura a primeira, a segunda e a terceira vez. E, claro, também a quarta, a quinta, enfim... Inúmeras vezes. E em todas elas a minha impressão foi a mesma: é esse o futuro da arte? Meu Deus! Estamos realmente em rota de colisão com algo assustador. 

Coisa de uns dois, sei lá, três meses atrás, estava postando em minhas redes sociais sobre o futuro do mercado de artes com a chegada das NFTs e a nova modalidade de "pintura". E já ficara assombrado ali. Agora, com a ascensão da Inteligência artificial - e seu uso, por vezes, leviano, gratuito, sem pensar, etc - a situação deteriora de vez. 

A estátua impossível, primeira obra criada por IA, exposta no Museu de Tecnologia de Estocolmo, é o começo de um legado (a meu ver) fúnebre. Leia-se: os artistas perdendo cada vez mais espaço em nome de uma novidade, no mínimo, estranha. 

Feita de aço inoxidável, medindo 150 centrímetros de altura e pesando 500 quilos, representa uma mulher com metade do corpo coberto por uma espécie de túnica, segurando um globo de bronze na mão esquerda. No entanto, eu não soube dizer ao certo o que meus olhos viram. A princípio lembrou-me uma jogadora de basquete (por causa do globo). Cheia de músculos definidos, bem a cara dessa sociedade fitness do século XXI, veste uma... O quê? Uma túnica? Parece mais uma saia. Não quero ser injusto com a vestimenta, mas... Não consigo precisar do que se trata. Algo mais? Não. À primeira vista, é apenas isso. Tirem suas próprias conclusões. Talvez encontrem ali algo que eu não encontrei.

Julia Olderius, encarregada de inovação do museu, diz em entrevista que a obra se trata de uma fusão do trabalho de cinco mestres - dentre eles, Rodin e Michelangelo - que, por serem de épocas distintas, jamais colaborariam num projeto não fosse dessa forma. Pareceu-me uma boa desculpa. Diz mais: que devemos nos adaptar ao futuro. Até aí eu entendo, porém... Como enxergar o futuro numa peça que mais parece um mosaico, uma colagem confusa, feita às pressas?

Será isso o futuro? Essa coisa linha de montagem, como o filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin? Essa coisa corrida, imprecisa, mal feita, mas apta a obter resultados astronômicos? No Twitter muitos anúncios prometem uma revolução no mundo dos negócios com a chegada da IA. De minha parte só tenho a dizer de concreto o seguinte: temo pela humanidade dentro desse jogo sórdido e vazio. 

E como esta breve postagem não encontrará uma resposta em breve (longe disso!), resta aguardarmos - como já bem disse no passado a programação televisiva - as cenas dos próximos capítulos dessa novela que mal acabou de ser escrita. 

Ou se vocês, caros leitores, preferirem: rezemos.  


quarta-feira, 14 de junho de 2023

R.I.P John Romita


Lembro de quando escrevi o obituário do Stan Lee aqui no blog em 2018. Na mesma hora veio à minha mente o seguinte pensamento: "minha relação com os quadrinhos, a nona arte de um forma geral, nunca mais será a mesma". E não foi. Fato. Contudo, estava acometido de forte emoção naquele dia, pois muitos outros artistas grandiosos povoaram a minha cabeça de igual maneira por décadas. E hoje, para minha infelicidade, mais uma vez tenho o mesmo sentimento. 

Em outras palavras: a nona arte e os fãs de quadrinhos se despedem a contragosto do (também) mestre John Romita, que nos deixou aos 93 anos.

Como explicar John Romita em poucas palavras para quem não conheceu sua arte? Impossível. Ele foi um artista que nunca se bastou por si mesmo. O Brooklyn, onde nasceu, não foi suficiente para ele. Queria mais. A School of Art & Design, em Manhattan, onde se formou, também não. Os oito anos que passou na DC Comics no início da carreira muito menos. Ele sentia, no fundo no fundo, que algo maior estava próximo. 

E estava certo. Absolutamente certo. Faltava a parceria com Stan Lee para revolucionar aquele que virou (e ainda é) o meu super-herói preferido até hoje: o homem-aranha. 

Eu já disse isso anos atrás em outro texto e repito: em meu íntimo, sempre fui um Peter Parker antes de ser picado pela aranha radioativa. Era o tímido, que ficava na minha, pouco falava no meio social e quando falava era somente sobre o que me interessava de fato, interesses românticos completamente frustrados até conhecer alguém que me olhou diferente... Só faltava escalar as paredes. 

E o principal legado de Romita para o herói, na minha visão, passa antes de qualquer coisa pela humanização de Parker, apresentar seus dilemas, suas decisões dúbias, sua dificuldade em se envolver com mulheres, sua vida dupla entre a faculdade e combater o crime nas ruas... E nisso ele foi primordial, praticamente cirúrgico. Criou um estilo, uma maneira de pensar únicas. 

E por mais que eu sabia que sem ele não haveriam também figuras icônicas das HQs como Wolverine, o Justiceiro, Rei do crime - algoz do Demolidor -, Luke Cage e, principalmente, Mary Jane Watson (Precisa explicar quem é? Sério?), eu não consigo desvinculá-lo do papel de reinventor do aracnídeo mais famoso dos quadrinhos. Sou de opinião que o homem-aranha tem três criadores: Stan Lee, Steve Ditko e, claro, John Romita. E nem pensem em discutir comigo, caros leitores! 

E agora, enquanto assimilo o golpe da perda irreparável e encontro meus gibis antigos no armário para reler - claro, vocês acham que eu vou deixar passar uma oportunidade dessas? -, pergunto-me o que sobra de lúcido nesse universo. Sim, a pancada foi grande. De novo. E os leitores de longa data, nostálgicos, vão sentir por um bom tempo. Às novas gerações? Pelo amor de Deus, conheçam o trabalho dele. Agora! 

Só faltou dizer (com eu sempre digo quando me emociono ao escrever estes textos de despedida): fica com Deus, mestre! Você merece! 


domingo, 11 de junho de 2023

Épico além da pré-história


Três décadas de Jurassic Park, de Steven Spielberg, é isso mesmo? Mas tem certeza? Refaz os cálculos aí, hein!!! Hã? Ih, não! Parece que... Não, tá certo, é isso mesmo. Quem diria... Parece até que foi ontem que eu estava naquela fila gigantesca do cinema e só consegui ingresso para a sessão das 19h30 (pior: ainda tomei esporro dos meus pais por ter chegado tarde em casa).

Lembro de cada detalhe, de cada minúcia, de cada susto, de cada aparição do Tyranossauro Rex e dos Velociraptores. O dr. Hammond (Richard Attenborough) convida o casal de paleontólogos Grant (Sam Neill) e Ellie (Laura Dern) para conhecer - na verdade, fiscalizar - o parque, enterrado no meio da Costa Rica, pois somente assim conseguirá a licença para operá-lo. Lá, o casal encontra o matemático - e excêntrico - Ian Malcolm (Jeff Goldblum). E juntos, eles viverão o pior dia de suas vidas. 

Como pano de fundo: interesses escusos, ganância e um funcionário corrupto que promete roubar amostras das espécies para os concorrentes da InGen, empresa que sintetiza os dinossauros. Resultado: o copo entorna de vez e os animais tomam o controle da instalação. Recomendo, inclusive, a leitura do romance homônimo, escrito por Michael Crichton (e um dos roteiristas da adaptação para o cinema), que traz um desfecho ainda mais interessante do que o do filme. Procurem nas livrarias! 

Jurassic Park é um exemplo vivo - e magnífico - do porquê Spielberg já foi chamado no passado de "o rei das matinês" (na época de seu outro clássico, Tubarão). E, cá entre nós, nada parece ter mudado muito depois de 30 anos, tendo em vista que sua relevância de lá pra cá até aumentou em alguns sentidos. 

O longa se tornou um complemento importantíssimo e definitivo para este que vos fala que, quando garoto, assistia na tv aberta o seriado O elo perdido, e ficava meio indignado com a aparição deficitária (vamos ser francos: malfeita mesmo!) das criaturas pré-históricas. Eu me perguntava toda vez que um episódio terminava: será que um dia veremos isso recriado em alta definição? Sim, tio Steven, meu muito obrigado. Hoje e sempre. 

Jurassic Park é um épico além da pré-história, de uma força que eu próprio não sou capaz de dimensionar. Tanto que, infelizmente, nenhuma de suas continuações teve o mesmo êxito (pelo menos, para mim). E não me refiro à bilheteria ou impacto de mercado. Falo do resultado final mesmo, da estrutura narrativa. O longa original de 1993 consegue ser um hiato, uma bola fora da curva dentro do seu próprio universo estendido. 

Lembro de quando Jurassic World: domínio estreou nos cinemas e a crítica Isabela Boscov disse em seu canal no you tube uma triste verdade: que por mais surreal que parecesse, os dinossauros da franquia haviam se transformado em meros adornos dentro de uma história confusa e cheia de exageros. Ela foi cirúrgica nesse ponto e eu tenho exatamente a mesma impressão. Só que em todas as continuações. 

Uma pena, eu sei... Mas espero que fique o aprendizado disso para o estúdio que produziu essa relíquia. Nem tudo tem a ver com cifras, grandiosidade, megaproduções, sequências, spinoffs, franquias. E no mundo de hoje, ostentatório por si só, ser simples e prático parece uma missão cada vez mais impossível.

Hollywood precisa (voltar) a entender que uma história chegar ao seu desfecho não é o fim do mundo. Às vezes ela não precisa de desdobramentos inúteis só para faturar um pouco mais às custas dos espectadores. E isso também é prova da inteligência de quem criou essa história. Entendeu?   

Puxada de orelha à parte, se puderem vejam - ou revejam - essa pequena joia. Ela merece.


Trailer:




sexta-feira, 9 de junho de 2023

O príncipe envelheceu, mas não perdeu seu encanto.


Eu via minha irmã sentada em frente à tv assistindo aquele menino que vivia sozinho em seu asteroide e de vez em quando pegava um cometa com seu puçá para poder visitar o planeta terra e não entendia o fascínio dela pela animação que era exibida no SBT. Com o tempo passei a acompanhá-la nos episódios seguintes e só então entendi estar diante de um clássico da literatura infantil. 

Estou me referindo à O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, que completa 80 anos de existência em 2023 como fenômeno pop e que mesmo se tornando um ancião não perdeu sua delicadeza nem deixou de tocar o coração de milhões de crianças ao redor do mundo. 

 A ideia, que partiu de Eugène Reynal, um dos sócios da editora de Antoine nos EUA, pegou-o de surpresa. Seria ele capaz de produzir uma obra de cunho infantil? Até então ele só publicara obras adultas e sempre sobre sua maior paixão: a aviação. Para quem tiver interesse nesse outro lado da sua carreira, procure O aviador (1926), Correio sul (1929) e Voo noturno (1931).

Ainda assim, fã que era de desenho - rabiscar figuras o acompanhava em todos os lugares, como um hobby - fez o esboço do personagem num guardanapo de um restaurante que frequentava. Nascia ali o menino solitário que adorava aventuras e peripécias e tinha como amigo uma raposa falante. Os editores, a princípio, torceram o nariz para a criação pelo fato do protagonista morrer no final da história. Para Antoine, ao contrário, não havia o menor problema. 

E eu também não vejo. Nas animações da Disney, por exemplo, a mãe do Bambi e o pai do Simba (em O rei leão) morreram e ainda assim as crianças adoraram o resultado. A questão para o escritor era saber como abordar a morte dentro daquele contexto. E ele parece ter feito direito, vide o sucesso do livro até hoje. 

Detalhe importante (que talvez a turma do cancelamento à tudo hoje em dia não goste de saber): entre as inspirações para o livro muitos acidentes aéreos que o próprio Antoine sofreu na vida real. Ou seja, ela flertava tanto com a magia quanto com a melancolia e o sentimento de perda. Talvez esteja exatamente aí o segredo do seu sucesso: a convivência entre extremos. 

Infelizmente ele não testemunhou o sucesso do seu personagem, pois já era falecido quando a obra foi publicada em 1943. E sua morte - também em um voo, durante a ocupação nazista na França - é rodeada de mistério até hoje. Já aqui no Brasil, O pequeno príncipe só foi lançado em 1952 e teve, entre seus tradutores, autores de renome como Mário Quintana, Ferreira Gullar e Frei Beto. O livro foi traduzido para mais de 250 idiomas e há quem defenda no meio acadêmico ser o segundo mais lido da história da humanidade, depois da bíblia. Entrou em domínio público em 2015. 

Para quem procura por boas adaptações há uma versão live action interessante de 1974 dirigida por Stanley Donen (e que tem Gene Wilder e Bob Fosse no elenco) e também a animação As aventuras do pequeno príncipe (1978), do trio Hal Smith, Robert Ridgely e Walker Edmiston (no caso o desenho mencionado no primeiro parágrafo que minha irmã assistia, décadas depois, na tv). 

E finalmente, para que não me estenda em demasia nessa singela homenagem, o príncipe que no começo desagradou os editores, hoje tornou-se figura tão popular quanto Batman, Superman, Turma da Mônica, Pinóquio, Peter Pan e tantos outros personagens da cultura pop. Mérito de quem mesmo?


quarta-feira, 7 de junho de 2023

O futuro chegou. Acorda!


Eu sou velho (sim, eu assumo logo, pois é melhor do que fingir uma realidade que não me convém). E no meu tempo de "mais novo" exposição era sinônimo de um acervo relacionado à grandes feitos, importantes figuras históricas, movimentos e vanguardas artísticas, enfim... expunha-se o grandioso, o notável, o extraordinário. Mas isso, meus caros leitores, era no meu tempo. 

No século XXI, onde o mundano e o efêmero ganham cada dia mais status e importância cultural, jogos de videogame, contos da carochinha e objetos do cotidiano ganharam uma força descomunal, fazendo com que nossa relação com eles se transforme radicalmente, às vezes ganhando uma conotação gigantesca (e, por vezes, desproporcional).

Foi exatamente assim que eu me senti após sair da multimidiática exposição Celular 50 - Da primeira ligação à próxima geração, que acontece - até agosto - no Museu do amanhã, no centro do Rio.

Primeiro: antes de tudo, amando ou odiando este aparelho que nos acompanha 24 horas por dia, nos melhores e nos piores momentos, é inegável que nossa relação com o mundo, com a vida, e principalmente com o outro, mudou completamente depois do surgimento do celular. Às vezes facilitando e às vezes para bem, bem pior.

Mas esta última frase do parágrafo anterior sou apenas eu divagando (de novo). A exposição em questão prefere se debruçar sobre os avanços tecnológicos, que são notáveis em muitos aspectos. Digo mais: a continuar evoluindo dessa maneira, no futuro os celulares irão falar sozinhos, e nos descartarão de vez como mediadores (olha a inteligência artificial batendo na porta, logo ali na esquina!).

Do DynaTAC 8000x, o primeiro celular, criado pelo engenheiro americano Martin Cooper (conhecido popularmente como "pai" do artefato que revolucionou o mundo) até os modelos mais modernos - e indecentemente caros, é óbvio! - é possível vislumbrar um mundo à parte do próprio mundo. Como se nada daquilo fosse real, apenas um deleite, um delírio passageiro. Mas não. Ele existe e tende a se expandir ainda mais, em tempos de big techs e milionários inescrupulosos com suas ideias radicais para aumentar ainda mais seus vultosos patrimônios. 

E o principal: o engajamento do público espectador. Poucas vezes vi uma turma tão interessada numa exposição como esta aqui. E é facil entender o porquê desse objeto tão cotidiano ganhar status dessa forma: o tema fala direto às pessoas, sem rodeios ou intelectualismos desnecessários. Diferentemente de uma mostra que falasse do Renascimento, da bossa nova ou da nouvelle vague, apenas para citar assuntos de grande repercussão, aqui não é preciso nenhum conhecimento prévio da parte espectadora e, além disso, quase todo mundo possui o seu próprio aparelho.

Mobilidade, liberdade, individualização, excesso, limites da tecnologia, o problema das fake news... Tudo para converge para a existência de um ser humano cada dia mais digital, praticamente robótico em alguns níveis. Pode parecer piada, mas me peguei na saída do museu pensando no quanto filmes como Tron, O passageiro do futuro e Matrix não são meras ficções. Pelo contrário. O homem-máquina é uma realidade mais do que à vista. Se isso será válido ou nocivo, cabe a nós como sociedade prestarmos atenção. 

Em suma: o futuro chegou, se instaurou, quer nos policiar (é melhor não permitirmos tanto assim), decidir nos próximos passos. Logo, chegou a hora de nos posicionarmos como seres humanos que ainda somos. Recomendo - e muito - a visita ao museu do amanhã. Precisamos tirar nossas próprias impressões sobre tudo isso. Do contrário, serem controlados em tempo integral. E isso eu não apoio. Não mesmo. 


domingo, 4 de junho de 2023

A inveja é uma merda mesmo!


Meu pai - que Deus o tenha em bom lugar no céu - vivia dizendo e se estivesse vivo no Brasil de hoje diria ainda mais: "o problema do brasileiro é a inveja. Inveja é uma merda, meu filho!". E mais uma vez (a milionésima) o país provou que é refém dela. 

Flávio José, um dos maiores expoentes da música nordestina em atividade, é ridicularizado naquele que é chamado de "o maior São João do mundo", que acontece todos os anos em Campina Grande, na Paraíba. Vê seu show ser diminuído em meia hora para atender aos caprichos do sertanejo Gusttavo Lima, um dos baluartes dessa onda infame financiada pelo agronegócio. Não é de hoje que eles tratam o forró como qualquer coisa ou algo indigno. E não somente ele. 

Lembro-me com exatidão de outro sertanejo, César Menotti, em uma entrevista na tv chamando samba de "música de bandido". Em outras palavras: o recalque ecoa há tempos no mundo dessas pessoas que nada mais são do que ganhadores de dinheiro e prepotentes por natureza. 

Para os defensores de Gustavo, César e companhia, Flávio José não passa de um reles sanfoneiro. Mal sabem eles! Sequer entendem de cultura nacional ou qualquer outro assunto. Só lhes interessa a fama, os jabás nas rádios e a tentativa de fazer da indústria fonográfica brasileira um feudo exclusivo para que possam brilhar, sem concorrência. 

Adorei a entrevista que vi com Elba Ramalho no twitter. Ela diz abertamente que todos têm direito ao seu espaço. Pena que nem todos entendam isso. Diz mais: que nunca foi - nem ela, nem Dominguinhos - à festa de Barretos. E ainda querem dominar todo o cenário musical. Vou além: se fizessem 10% do que fizeram com Flávio José em Barretos certamente o meliante seria excomungado do recinto. 

Pois é... Assim tratam (de novo) o nordeste. Assim tratam (mais uma vez) a cultura regional. Continuam vendo a região pela ótica da ignorância e da pobreza. Agora perguntem aos mesmos que acusam, rotulam, difamam, por vezes xingam, se conhecem Graciliano Ramos, Ariano Suassuna, Luiz Gonzaga, o Movimento armorial, a literatura de cordel, se já pisaram uma vez que fosse no Centro das tradições nordestinas, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro, para entender minimamente a força desse povo que não desiste nunca.

Esse povo que um dia Guimarães Rosa falou que era, antes de tudo, um bravo. 

Por um país sem tanta covardia, com mais respeito (não só a opinião, como também ao gosto alheio), onde possamos nos expressar conforme nossas crenças e não pela vontade de uma minoria - sim, eles nunca foram mais do que isso! - e que figuras como mestre Flávio José resistam. Arte é resistir. Sempre. O país nunca precisou tanto de pessoas como ele.

P.S: quanto ao rótulo de "o maior São João do mundo", talvez seja hora da população rever certos conceitos. Nem sempre a festa merece o nosso aplauso. Às vezes, o que ela quer é nos tratar como idiotas e nada mais.    


sábado, 3 de junho de 2023

O guia básico dos diferentes


É fácil entender porque o público "sou fanático por cultura pop e a sua opinião sobre esse assunto não me interessa" adorou Nerd, livro de memórias escrito por Érico Borgo, um dos criadores do site Omelete e da CCXP, maior convenção do setor realizada na América Latina. E seguindo a máxima que o próprio autor consagrou na frase "sou fã, quero service", ele entrega todas as expectativas possíveis e imagináveis para um público que nunca vive além delas. 

Desde já adianto: não demonizo o livro nem tento desqualificá-lo. Ele é entretenimento certo para quem busca exatamente por isso. Meu único questionamento (e não se trata da obra em questão) é: esse mesmo público-alvo precisa enxergar a literatura e o mercado editorial, de vez em quando, além de seus umbigos e vaidades. 

Borgo tem uma formação cultural extremamente parecida com a minha. Somos contemporâneos de geração e é fácil me identificar em muitas das suas histórias e referências. O que nos difere, em alguns momentos, é apenas uma adoração mais acentuada aqui ou ali por certo livro, filme ou personagem. E não vejo mal algum nisso. 

Ele fala de assuntos pessoais, do fim do casamento dos pais (que mexeu bastante com ele), da época em que sofria bullying no colégio, dos interesses românticos que nunca se concretizavam, mas o mais importante: dá destaque a seu lado empreendedor. No fundo, no fundo, ele sempre quis mesmo foi criar seu próprio universo. E nisso tem meu profundo respeito. 

Seu lado colecionador (e quando mencionou as HQs na mesma hora passou um filme pela minha cabeça e também minha mãe reclamando: "qualquer hora dessas você não vai mais conseguir dormir no seu próprio quarto de tanto bagulho acumulado aqui dentro!"), o fascínio pelos jedis - e, claro, por todo universo criado por George Lucas -, as memórias afetivas do cinema americano dos anos 1980, os videocassetes, videogames e computadores... 

Em suma: a sensação, a cada página, de adentrar uma fenda no tempo, capaz de me levar a lugares inimagináveis, está presente de forma nostálgica em grande parte do livro. Na verdade, na melhor parte do livro. Num segundo momento Érico passa dos sonhos à realidade e, por conseguinte, o trabalho duro. Criar o Omelete e, posteriormente, a CCXP foi algo tão gigantesco (e barra pesada) quanto os 12 trabalhos de Hércules. E certamente os fanáticos por grandes eventos devem ter adorado essa parte.

Um trabalho que não somente trouxe frutos como também abriu as portas para um mercado até então pouco vislumbrado por muitos empresários que se diziam "de visão" em nossas terras. Sim, você pode até discordar dele, não compartilhar de suas ideias, mas que seu feito aqui no Brasil é grandioso, não há dúvidas. 

No final, de chato mesmo, fiquei pensando ao fim da leitura: apenas a intolerância de muitos fãs desse segmento que precisam aprender - e urgentemente - a ouvir críticas e opiniões diferentes das suas. Até quando fui comprar o livro encontrei um babaca de grife que me conhece (e sabe que eu não sou um nerd raiz) me questionando, dizendo que eu não deveria lê-lo, pois não faço parte do clã de seguidores. Parecia até um fanático dessas seitas religiosas. 

Só faltou ele dizer que aquele não era o meu lugar de fala... Resultado: deixei-o sozinho, no meio da loja, pagando de maluco. Não faça como esse rapaz (que não merece sequer que eu diga o nome dele aqui). Leia Nerd. Ele é praticamente um guia básico dos diferentes. E vale a pena ser diferente às vezes. Leia outras coisas também. Coisas fora do mundo nerd. Sua vida agradecerá. O mundo também agradecerá, pois de pessoas insuportáveis e intransigentes ele anda cheio. Até demais.