sábado, 29 de julho de 2023

A primeira vez da rainha do pop a gente nunca esquece


Eu sei que vão ter leitores que irão reclamar e dizer que fui repetitivo ou que "já leram isso em milhões de outros blogs", mas não tem outra forma de eu começar essa resenha.

Sabe aquela expressão mais do que clichê "a primeira vez a gente nunca esquece"? Então... Esqueçam quaisquer conotações sexuais e românticas antes de ler este post-homenagem que é pra lá de nostálgico e ainda permanece no imaginário popular com força.

Li ontem em alguns sites de música na internet que o álbum de estreia da cantora Madonna completou 40 anos de existência e corri para confirmar a veracidade da notícia em fontes cabíveis. Confirmado o fato atestei duas verdades absolutas: a atemporalidade do projeto, hoje em muitos aspectos ainda mais atual do que na época do seu lançamento, e a certeza de que a velhice está batendo na porta. 

Madonna (o disco) é a cara, o comportamento e a alma viva da popstar que virou rainha do gênero e ainda não perdeu sua majestade (e olha que tem muita gente tentando destroná-la atualmente). Caso você tenha um equalizador entre seus aparelhos de som, retire a voz da cantora das faixas e ouça a sonoridade do disco. Aposto que - se pertencerem a mesma geração que eu - ficarão encantados com tamanho deslumbre.

O álbum é o puro suco do que foram aqueles anos 1980 vertiginosos, com muita purpurina, clipes musicais na tv, trilhas sonoras inesquecíveis de filmes teens hollywoodianos, walkmans e vinis na vitrola. E poucos desenharam isso tão bem em suas canções (e na carreira como um todo) quanto Madonna.

Há, pelo menos, quatro hits óbvios, desses de ficar reouvindo de tempos em tempos com a ajuda do youtube e do Spotify: "Lucky star", "Borderline", "Holiday" e "Everyday" (e fica aqui, no caso dessa última faixa, que encerra o álbum, uma lembrança: a cantora abre a música com um sussurro que é cara da sua personalidade, remetendo imediatamente ao seu lado sexual à flor da pele, e me fazendo relembrar do famigerado documentário Na cama com Madonna, que marcou época nos cinemas). 

Contudo, recomendo aos não iniciados na rainha do pop que deem uma chance também a "Burning up", que provavelmente os executivos de gravadora e pesquisadores irão chamar de side B. O próprio conceito em si de "pegar fogo" ou "em chamas" já diz muito sobre essa moça que quase entrou para a vida religiosa e, graças a Deus, foi resgatada pela música pop. 

Se muito se fala atualmente sobre a turnê de 40 anos de carreira (adiada por conta de problemas de saúde envolvendo a artista) e as mil facetas que ela encarnou ao longo da sua jornada (de kama sutra à discoteca; da crucificação de Cristo à Eva Perón no cinema, etc), vale lembrar aos incautos que tudo começou aqui, nesse singelo álbum que não só emplacou como criou uma legião de fãs que a perseguem ao redor do mundo.

Logo, se você já conhece as canções, já as ouviu um milhão de vezes, ouça um milhão e uma, um milhão e duas... Agora: se você nunca ouviu falar disso aqui, honestamente só me resta perguntar se você tem menos de 20 anos e acha que o mundo se resume a Taylor Swift e fenômenos que sobrevivem de playbacks ou em que planeta você estava morando quando tudo isso aconteceu. 

Sim, porque você definitivamente não é normal. Pelo menos, não para o show business.  


domingo, 23 de julho de 2023

O destruidor de mundos


Esperei por três longa-metragens sem alma e lutei contra a sensação de que o diretor Christopher Nolan poderia não passar de um fogo de palha, de uma invenção dessa hollywood cada vez mais vazia e carente de boas histórias. Minha última experiência exuberante com um filme dele havia sido O cavaleiro das trevas, com um Heath Ledger avassalador interpretando o Coringa. E nos 45 do segundo tempo, pronto para gritar aos plenos pulmões "desisto! ele é um engodo mesmo!", ele ressurge das cinzas como fênix explosiva e me põe no chão, nocauteado. 

E eu enfim pude dizer - depois de praticamente uma década de decepções - "valeu, Nolan!". 

Oppenheimer é uma exuberância e de um apuro estético que há anos não via no cinema com intenções históricas. E ao acender as luzes da sala, ao fim da sessão, tive uma certeza: a humanidade não merece ser vista em alta conta, não importa o quanto ela se venda como a melhor criação de Deus. 

Acompanhamos a jornada de J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy, brilhante!) com parcimônia, mas sempre no aguardo da tragédia, que o acompanhou. Mas, mais do que isso, acompanhamos aquela parcela torpe da humanidade que simplesmente não consegue viver além da esfera do poder e seus jogos de interesse (tem quem chame de teatro).

Mais do que o homem responsável pela criação da bomba atômica que dizimou Hiroshima e Nagasaki e deu fim a segunda guerra mundial, ele foi um homem amargurado, perseguido por uma série de traumas e feito de marionete por um sistema ainda mais cruel do que suas próprias intenções. Sim, pois não se iludam: Oppenheimer não é o único culpado nessa que é uma das maiores tragédias da história da humanidade. Muito menos alguém que mereça a alcunha de mártir. 

Como pano de fundo às suas teorias e a vida acadêmica, ainda vemos seus dilemas morais (o relacionamento extraconjugal com a jovem comunista) e profissionais (a convocação para depor no Comitê de atividades antiamericanas, por seu flerte com o comunismo). E como se isso não fosse o suficiente, seu maior algoz tramando na surdina para destruí-lo: o almirante Lewis Strauss (Robert Downey Jr., num enfim interessante trabalho após anos encarnando Tony Stark na Marvel).

Oppenheimer é o prometeu americano (alusão àquele que ousou roubar o fogo dos deuses e foi punido categoricamente por Eles), o destruidor de mundos. O homem que praticamente sofisticou as ideias de guerra e de violência. Depois da bomba H, o mundo definitivamente nunca mais foi o mesmo, principalmente no quesito bélico. 

E eu que até então achara leviano Nolan dizer que esse homem era uma das figuras mais importantes da história mundial, hoje preciso reconhecer: ele está absolutamente certo. O defeito era não só meu, mas da sociedade como um todo, que costuma chamar de grandes apenas os homens e mulheres que realizaram atos nobres. Não, meus caros leitores! Nem sempre a grandeza é sinônimo de algo positivo. 

Ao fim o que fica como legado dessa experiência magnífica (não vi em IMAX, mas quem tiver a chance de assistir no formato, faça! principalmente do ponto de vista sonoro) é o gosto amargo de vermos no que a sociedade se transformou. Viramos carrascos de nós mesmos, seres abjetos capazes de tudo - incluindo aí a extinção da própria espécie - em nome do status, do poder, da zona de conforto, de títulos de nobreza. 

O filme dá a luz em boa hora, num momento em que se discute ao redor do mundo as implicações das armas nucleares. Espero que sejamos mais sensatos dessa vez, menos covardes e gananciosos. Mas, se tratando de seres humanos e da sempre presente mesquinhez, é melhor não perder a razão, muito menos a lucidez. 

O futuro está mais incógnito do que nunca... 


quinta-feira, 20 de julho de 2023

Refletindo sobre a lenda


Para muitos ele será eternamente a lenda das artes marciais. Está para o cinema de ação como Elvis Presley está para a história da música. Falo, logicamente, de Lee Jun-fan (mais conhecido internacionalmente como Bruce Lee), que 50 anos atrás nos deixava em meio a uma névoa de mistério. 

Segundo a certidão de óbito a causa mortis foi "edema cerebral provocado por reação alérgica", mas para muitos entusiastas e fãs longevos do artista isso não passa de uma teoria ou reles "versão oficial", que em nada acrescenta para a sua história ou legado.

Conheci Bruce Lee através de meu pai, que era um fã notório dele. Perdi as contas de quantas vezes sentamos juntos em frente à tv para assistir O voo do dragão (e a luta épica com o ator Chuck Norris) e Operação dragão, seu filme mais famoso e que também comemora cinco décadas de existência em 2023.

Mais inteirado do que eu sobre as façanhas de Bruce, meu pai ainda relatava as cenas antológicas do antigo seriado O besouro verde (que, até hoje, ainda não consegui ver na íntegra), no qual interpretava o motorista Kato. E também desabafava sobre a grande sacanagem que fizeram com ele no caso de outra série, Kung Fu, quando foi substituído de forma covarde pelo ator David Carradine.  

E não dá para pensar em Bruce Lee e não se lembrar do famoso soco de uma polegada, que ainda deixa muitos lutadores e fãs intrigados. Bruce criou seu próprio estilo de luta - o Jeet Kune Do - e era metódico em todos os sentidos (tem até quem o via como uma grande antipático, uma figura pedante, por causa disso!). 

Recentemente houve uma grande polêmica envolvendo o nome dele, por conta de um personagem no longa Era uma vez em Hollywood, de Quentin Tarantino. No filme, Cliff Booth (vivido por Brad Pitt), um dublê, encara Bruce no braço e o coloca no chão, sem fazer grande esforço. Foi o suficiente para que os fãs mais ardorosos do lendário lutador ficassem furiosos com Quentin, que ainda debochou do caso. 

Polêmicas à parte, é inegável que dificilmente alguém chegará ao patamar que Bruce Lee alcançou. Procurem seus filmes, vejam as sensacionais coreografias criadas para as cenas de luta (entre seus parceiros de cena, figura inclusive um Jackie Chan em início de carreira), seu carisma e talento únicos. Querer reduzí-lo à escândalos e polêmicas envolvendo sua morte ou carreira é, no mínimo, diminuí-lo - e muito! 

E acreditem (embora eu saiba que pareça clichê até alma): os filmes de ação nunca mais foram os mesmos depois que ele partiu. Sério!

Que ele esteja em paz no outro plano. 


quarta-feira, 19 de julho de 2023

Cinema mudo? Que nada! Fala - e muito.


Quem me conhece ou me lê por aqui de tempos em tempos sabe que tudo o que verse sobre memória afetiva e imaginário popular mexe comigo profundamente. Às vezes tenho a impressão de que vivo numa fenda no tempo, numa espécie de mundo paralelo à essa realidade caótica e enfadonha. E eis que uma matéria publicada na Folha de São Paulo ontem fustigou (de novo) esse meu lado. 

Essa onda musical nostálgica que veio com força no país nos últimos tempos (reencontro da formação original dos Titãs, show do Ritchie e do Caetano Veloso em torno de seus álbuns mais aclamados, etc) é uma excelente oportunidade para nos reencontramos com momentos síntese da nossa discografia. E caso você não pertença à geração que testemunhou o nascimento dessas pérolas, procure também! Talvez você até entenda o porquê da MPB ter regredido tanto nos últimos anos. 

Dito isto, como é bom ouvir - e reouvir - Cinema mudo, disco de estreia da banda Paralamas do sucesso, que completa 40 anos em 2023 e será relançado em vinil. Saber o que pensava o trio naqueles loucos e esfuziantes anos 1980 vale cada segundo do meu, do seu, do nosso tempo. 

Há, logicamente, o segmento "parada ganha" da gravação, composta pelos hits "Vital e sua moto" - e acreditem: eu conheci muito Vital na minha época de adolescente -, "Química" (de Renato Russo, hoje praticamente uma peça cult) e, claro, a faixa-título. E vocês, com certeza, como eu, vão querer ouví-las mais de uma vez. 

Entretanto, é preciso ficar de olho nas gratas surpresas do disco, aquelas faixas que na época do lançamento não chamaram tanta atenção assim, mas depois você ficou sabendo da história e virou fã de vez: caso da divertidíssima "Vovó Ondina é gente fina", inspirada pela avó do baixista Bi Ribeiro, que aturava em sua casa o trio parada dura quebrando tudo em ensaios exaustivos; da instrumental "Shopstake", que pelo que pude ver nos comentários no youtube (onde ouvi novamente o álbum) foi redescoberta com louvor e, finalmente, "Foi o mordomo", que brinca abertamente com a temática dos romances policiais para fazer um paralelo com o momento que o Brasil vivia. 

E por falar em Brasil, aproveito para enaltecer "Patrulha noturna", agora eleita após deliciosa revisão, como minha favorita do disco. Um retrato cômico, mas sem perder o seu lado cruel, desse país que adora esperar pelo futuro, mas não tem competência para lidar com o presente. Terrível, mas necessária.

No mais: guitarra, baixo e bateria afinadíssimos a serviço de uma década que, cá entre nós, nunca deveria ter acabado e que deixa saudades eternas em quem a viveu de perto. Cinema Mudo é, no final das contas, um disco-ensaio sobre aquele período em que os filhos da revolução botavam pra quebrar, sem medo nem essa caretice e atraso todo de hoje em dia. 

Peraí... Eu falei que o cinema está mudo? Falando tudo isso, desse jeito, com essa fúria e esse sarcasmo nas letras? É ruim, hein! Ouve lá e vê se eu não estou com a razão, meu amigo...


sexta-feira, 14 de julho de 2023

Nem a vida derrubou essa mulher


Num mundo cheio de rótulos como esse em que vivemos atualmente, sabe quando você ouve uma expressão que realmente te deixa curioso, querendo saber mais a respeito, se realmente vale o seu tempo, a sua paciência, o seu envolvimento? Então... No meu caso é tal "exposição imersiva". Não fazia a menor ideia se era isso tudo mesmo ou apenas mais uma jogada de marketing, produto do empresariado que vê a realidade somente sob a ótica das cifras e inventou mais uma para arrecadar ainda mais. E só indo conferir in loco para tirar a prova dos nove.

E eis que o dia chega e vou ao Forte de Copacabana (lugar onde não pisava há quase 15 anos) para ver a exposição Frida Kahlo: uma biografia imersiva.

Sou louco por Frida desde que ouvi falar dela pela primeira vez. Lembro de quando o longa da diretora Julie Taymor (2002), com a atriz Salma Hayek interpretando a pintora, estreou nos cinemas. Foi um dos poucos longas até hoje que eu comprei ingresso antecipado na internet, tamanha a minha pressa e angústia para conhecer - ainda mais - sua história de vida.

Frida Kahlo é, para mim, como um trem desgovernado. Um mulher que mesmo após um acidente de bonde, presa a uma cama, e um diagnóstico de poliomielite aos 6 anos não desistiu de sua arte e continuou lutando, sobrevivendo, fazendo seus autorretratos.

E não pensem os incautos que seus quadros eram um acúmulo de tristezas, de cinzas, modorras e melancolia. Nada disso! É presença viva em sua obra cores fortes e traços marcantes. E nem mesmo suas cicatrizes físicas ela deixou de fora. Dizia para os amigos e admiradores que precisava pintar o que via (e para isso se utilizava de um espelho de frente para a cama onde estava deitada, enferma).

Na biografia imersiva proposta pela exposição que tem, entre seus realizadores, a Frida Kahlo Foundation, é possível acompanhar, deslumbrado (eu fiquei assim que adentrei o espaço!), 13 ambientes distintos, projeções em 360 graus, realidade virtual, além  de coleções de fotografias históricas, filmes originais, instalações artísticas, itens de colecionador e ainda música original criada especialmente para o evento.

Olhava ao redor para ver os demais espectadores e todos pareciam tão estupefatos quanto eu, diante de tanta beleza e grandiosidade. Temos a todo momento a sensação de estar dentro de seus quadros, meio que viramos personagens de sua obra num estalar de dedos. É magnífico. 

Ao final da visita, que dura por volta de 90 minutos, fiquei me perguntando se o tempo não correra rápido demais. Sim, meus caros, tive essa impressão! Mais até: poderia viver dentro daquele lugar o resto da minha vida, sem reclamar. 

Só então me dei conta de que é isso que a arte e a cultura costumam fazer com quem se interessa por elas: ela nos hipnotiza e encarcera a tal ponto que não queremos mais nada além daquilo. E se pudermos, iremos até elas de novo, de novo e de novo numa paixão sem fim. E acreditem: tem gente no Brasil de hoje que acha isso perda de tempo. 

Se exagerei em minhas impressões? Vai lá, então, e me responde aqui depois.


segunda-feira, 10 de julho de 2023

A melhor descrição do inferno que eu já vi


Por volta da terceira ou quarta vez que assisti (em VHS ou DVD) à obra-prima de guerra Apocalipse now, do diretor Francis Ford Copolla, cheguei à retumbante conclusão de que precisava urgentemente ler a obra original que inspirou aquele épico. O problema: não encontrava O coração das trevas, de Joseph Conrad, em lugar nenhum, nem em sebos do centro da cidade ou da zona sul, nem na sua versão online. E o resultado dessa frustração me acompanhou por muitos anos. 

Eis que, enfim, após uma dolorosa (e quase traumática) espera, me deparo com um exemplar novo em folha num stand do shopping Nova América, em Del Castilho, repleto de livros a módicos 10 e 15 reais. Corro para pegar o meu - há apenas uns quatro sobrando em cima do balcão -, pago e vou direto pra casa para esmiuçar o volume. 

E o resultado dessa experiência arrebatadora é a melhor descrição do inferno que eu já li em toda a minha vida como amante da literatura (e olha que, como já disse em outros textos, comecei a me atracar com os livros aos 10, 11 anos!).

E embora Copolla tenha preferido inserir o contexto da guerra do Vietnã em sua adaptação cinematográfica majestosa, o texto original não deve nada em termos de sofrimento e adrenalina. Mais do que isso: a narrativa de Conrad é limpa, enxuta, sem perder a mínima exuberância. Não é à toa que os críticos literários o colocam entre os maiores de sua época, com folga. 

Charles Marlow (no filme o protagonista, vivido por Martin Sheen, se chama Capitão Benjamin Willard) é um comerciante de marfim incumbido por seus superiores de encontrar o chefe de posto Walter Kurtz, um homem visto de forma dúbia pelos habitantes daquela região (mais especificamente o Estado livre do Congo durante a colonização belga). Alguns o veem como herói incompreendido; outros, como uma espécie de maldição, alguém que só trouxe a ruína para aquelas terras.

Contudo, o mais importante é a forma como Marlow divide suas desventuras com os demais. Nesse momento, o leitor se depara com a descrição precisa e assustadora de um país em frangalhos, à beira de um colapso social e ainda assim tentando sobreviver a qualquer custo.

Hoje posso dizer com folga, após terminar a última página do romance, duas coisas: 1) que valeu a pena esperar cada dia, cada hora, cada segundo e cada tentar frustrada de comprá-lo, pois ele não deixa a desejar em um parágrafo sequer e 2) incluo esta obra entre o cânone da literatura mundial, junto com Crime e Castigo, Hamlet, Seis personagens à procura de um autor, O nome da rosa, Os miseráveis e outras obras seminais. 

Recomendo à leitores e cinéfilos que conheçam as duas versões e, se puderem, façam elas dialogarem entre si. Aposto como será o maior estudo de caso da vida de vocês. 

E um importante P.S cabe aqui: A escolha de Marlon Brando como Kurt - embora ele tenha contribuído e muito para tornar o set de filmagem na época em um verdadeiro teatro dos horrores - provou-se acertada, pois o personagem, como descrito no livro, também mostra toda a sua excentricidade e personalidade peculiar. É... Às vezes o que parece contraditório acaba se tornando a única (e melhor) opção.  


quinta-feira, 6 de julho de 2023

O pajé atingiu o nirvana


O dia que os fãs de teatro no Brasil mais temiam infelizmente chegou: Zé Celso Martinez Corrêa se foi, aos 86 anos. E eu posso dizer com folga que fui fã dele de graça mesmo sem ter visto o que de melhor ele produziu.

Explico-me: faço parte de uma geração - aquela a qual o cantor Renato Russo, líder do Legião Urbana, se referiu como "os filhos da revolução" - que não pôde ver as montagens originais de Rei da Vela (de Oswald de Andrade) e Roda Viva (de Chico Buarque) no palco, porque não era nascido ainda (só dei as caras aqui na terra em 1976). E me ressinto muito disso. Mais: sou cada dia mais curioso pelos depoimentos de quem lá esteve e testemunhou aquele espetáculo. 

Assistir e entender Zé Celso era - e ainda é - entender um pouco as contradições deste país que enverga, mas não quebra. Dramaturgo, diretor, ator, músico, agitador cultural, figura política notável, mais do que tudo um polemizador nato. Explicar esse homem era tarefa quase impossível. Nem Marcel Proust conseguiria! 

Se você, caro leitor que continua lendo este desajustado social que vos fala, já assistiu - nem que seja apenas uma vez na vida - a uma peça de teatro, seja qual for, fique sabendo: se você não viu até hoje uma montagem de Zé Celso corra agora mesmo ao canal no you tube do Teatro Oficina, companhia que ele criou lá pelos idos de 1958. Porque, honestamente, você ainda NÃO conhece teatro. 

Zé Celso subverteu todas as regras, tornou a nudez em cena um ato de resistência, brincou com as vanguardas. É o melhor exemplo vivo do que foi e sempre será o tropicalismo (que Caetano e Gil tão bem cantaram). Seu sobrenome: experimentalismo. Mas não digo isso de forma chata, arcaica, tendenciosa. Não, meus amigos. Digo no sentido de quem estava sempre insatisfeito com o hoje, com o agora, pensando bem lá na frente, num amanhã que ainda nem sonhava em existir. Zé Celso era o futuro antes mesmo de ele dar as caras. 

E por isso vai fazer tanta falta. Porque nunca precisamos tanto como agora de alguém que nos leve a um lugar melhor, sem tanta covardia ou rancor. 

Vejam Cacilda!, vejam Bacantes, vejam Mistérios gozosos, vejam Os sertões (um escândalo em forma de teatro), vejam pelo amor de Deus o trabalho desse monstro sagrado das nossas artes cênicas. Acreditem: a vida de vocês e suas concepções de arte nunca mais serão as mesmas depois disso. Depois de conhecer, como bem disse a atriz Fernanda Torres ao lançar seu romance A glória e seu cortejo de horrores na sede do Oficina, ao pajé do teatro brasileiro. 

Quer maior ato de contestação à vida medíocre, ao sistema falido em que vivemos, a caretice trazida de volta pelos boçais medrosos, do que assistir ao trabalho desse homem que enfrentou a tudo e todos - sistemas políticos ultrapassados, presidentes enfadonhos, a estupidez da elite - e ainda assim construiu um legado ímpar, praticamente inimitável na nossa área cultural? Ou quer viver afundado na mesmice, na trogloditice de quem não gosta de viver e ainda impede os outros de ser feliz, de pensar com a própria cabeça?

A escolha, claro, é de vocês. Ela sempre foi de vocês. 

Zé, você não deve nada a essa gente maldosa nem ao país, seu trabalho e sua postura falam por si próprios. E se teve alguém que fez por onde ser lembrado nessas terras verdejantes, esse alguém foi você. Então descanse em paz e curta o nirvana, mestre! Porque você foi foda. Em todos os sentidos. 

P.S: espero ter a honra de esbarrar com você aí em cima algum dia.  


domingo, 2 de julho de 2023

Que mulher é essa?


Leio quadrinhos desde que me entendo por gente, mas uma coisa é inegável: nos últimos anos tenho a legítima sensação de que se escreve sobre absolutamente tudo no universo da nona arte. Música clássica, jazz, robótica, revoluções, relações entre pais e filhos, guerra do vietnã, a lei seca, apocalipse zumbi, a questão da palestina, bulimia, homossexualidade, etc etc, haja etc. Pena que os leitores muitas vezes prefiram se acomodar ao segmento dos super-heróis (que de lá pra cá - a meu ver - sobrevive mais de fama do que de mérito).

Essa semana terminei de ler a graphic novel Miss Davis: a vida e as lutas de Angela Davis, de Sybille Titeux de la Croix & Amazing Ameziane, e tive uma certeza. A de que na época em que estudei sobre esse período histórico e emblemático nos EUA não tive um professor(a) tão engajado quanto essas duas artistas. Elas dão um show à parte!

Dividido em quatro tomos o álbum - magnificamente ilustrado - traz a história de vida e as sagas pelas quais passou aquela que é considerada por muitos estudiosos uma das mulheres mais perseguidas da história do continente americano. Seu único crime: lutar pela liberdade (sua e de seu povo) no país que praticamente inventou a segregação racial. 

Da abertura, com o ataque à sede dos Panteras Negras, até o julgamento manipulado que teve de enfrentar para ver a luz do sol novamente, acompanhamos uma trajetória de dor, humilhação e muito sofrimento. 

A infância difícil, a segregação nas escolas, o desaparecimento do pai, a pobreza extrema dentro de casa; o governo pseudomoralista de Ronald Reagan, sua filiação aos Panteras, a visita à Cuba, a demissão da UCLA, onde lecionava; a prisão, torturas psicológicas, o isolamento do mundo real, a morte de George Jackson, um parceiro de luta e grande amor; o processo, as inúmeras tentativas da promotoria de condená-la sem provas sólidas... Angela é o melhor exemplo de sobrevivente que eu já vi em toda a minha vida.

Digo com folga: Miss Davis deveria ser material de leitura em todas as escolas por aqui. Talvez servisse para abrir os olhos de alguns brasileiros que adoram ver a terra do tio Sam como um lugar mágico, sem defeitos ou pecados capitais. 

Dois pontos importantes se destacam no trabalho: 1) há também na narrativa de Sybille e Amazing o ponto de vista da jornalista June Seymour, que acompanhou toda a saga de Angela, e de quem se tornou amiga, e a jornada de ambas se complementa de forma muito interessante; e 2) A HQ mescla a todo momento tipos diferentes de desenho (dos mais simples aos mais sofisticados), dando ao trabalho final uma complexidade única. Em outras palavras: é quase como se acompanhássemos um trabalho jornalístico, investigativo, conduzido por um profissional da área. 

Cheguei a fazer um paralelo entre este álbum e a carreira do quadrinista Joe Sacco, um mestre nesse segmento que funde quadrinhos e imprensa. 

Ao fim o que temos é uma espécie de manifesto político sobre a pátria que se vende para o resto do mundo como terra das oportunidades, dos bravos, e no entanto se esconde atrás de um eterno teatro de hipocrisias sociais.  Ah! e um adendo importante que eu não posso esquecer de mencionar: a obra faz parte da chamada soul trilogy, junto com Muhammad Ali (de Sybille Titeux de La Croix e Amazing Ameziane) e Big Black: stand at Attica (de Frank "big black" Smith, Jared Reinmuth e Ameziane).

Gostou? Agora vai atrás do seu exemplar e procura as suas próprias respostas, vai! Tenho certeza de que vocês não vão conseguir parar, depois de ler a primeira página...