Quem me conhece ou me lê por aqui de tempos em tempos sabe que tudo o que verse sobre memória afetiva e imaginário popular mexe comigo profundamente. Às vezes tenho a impressão de que vivo numa fenda no tempo, numa espécie de mundo paralelo à essa realidade caótica e enfadonha. E eis que uma matéria publicada na Folha de São Paulo ontem fustigou (de novo) esse meu lado.
Essa onda musical nostálgica que veio com força no país nos últimos tempos (reencontro da formação original dos Titãs, show do Ritchie e do Caetano Veloso em torno de seus álbuns mais aclamados, etc) é uma excelente oportunidade para nos reencontramos com momentos síntese da nossa discografia. E caso você não pertença à geração que testemunhou o nascimento dessas pérolas, procure também! Talvez você até entenda o porquê da MPB ter regredido tanto nos últimos anos.
Dito isto, como é bom ouvir - e reouvir - Cinema mudo, disco de estreia da banda Paralamas do sucesso, que completa 40 anos em 2023 e será relançado em vinil. Saber o que pensava o trio naqueles loucos e esfuziantes anos 1980 vale cada segundo do meu, do seu, do nosso tempo.
Há, logicamente, o segmento "parada ganha" da gravação, composta pelos hits "Vital e sua moto" - e acreditem: eu conheci muito Vital na minha época de adolescente -, "Química" (de Renato Russo, hoje praticamente uma peça cult) e, claro, a faixa-título. E vocês, com certeza, como eu, vão querer ouví-las mais de uma vez.
Entretanto, é preciso ficar de olho nas gratas surpresas do disco, aquelas faixas que na época do lançamento não chamaram tanta atenção assim, mas depois você ficou sabendo da história e virou fã de vez: caso da divertidíssima "Vovó Ondina é gente fina", inspirada pela avó do baixista Bi Ribeiro, que aturava em sua casa o trio parada dura quebrando tudo em ensaios exaustivos; da instrumental "Shopstake", que pelo que pude ver nos comentários no youtube (onde ouvi novamente o álbum) foi redescoberta com louvor e, finalmente, "Foi o mordomo", que brinca abertamente com a temática dos romances policiais para fazer um paralelo com o momento que o Brasil vivia.
E por falar em Brasil, aproveito para enaltecer "Patrulha noturna", agora eleita após deliciosa revisão, como minha favorita do disco. Um retrato cômico, mas sem perder o seu lado cruel, desse país que adora esperar pelo futuro, mas não tem competência para lidar com o presente. Terrível, mas necessária.
No mais: guitarra, baixo e bateria afinadíssimos a serviço de uma década que, cá entre nós, nunca deveria ter acabado e que deixa saudades eternas em quem a viveu de perto. Cinema Mudo é, no final das contas, um disco-ensaio sobre aquele período em que os filhos da revolução botavam pra quebrar, sem medo nem essa caretice e atraso todo de hoje em dia.
Peraí... Eu falei que o cinema está mudo? Falando tudo isso, desse jeito, com essa fúria e esse sarcasmo nas letras? É ruim, hein! Ouve lá e vê se eu não estou com a razão, meu amigo...
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