O dia que os fãs de teatro no Brasil mais temiam infelizmente chegou: Zé Celso Martinez Corrêa se foi, aos 86 anos. E eu posso dizer com folga que fui fã dele de graça mesmo sem ter visto o que de melhor ele produziu.
Explico-me: faço parte de uma geração - aquela a qual o cantor Renato Russo, líder do Legião Urbana, se referiu como "os filhos da revolução" - que não pôde ver as montagens originais de Rei da Vela (de Oswald de Andrade) e Roda Viva (de Chico Buarque) no palco, porque não era nascido ainda (só dei as caras aqui na terra em 1976). E me ressinto muito disso. Mais: sou cada dia mais curioso pelos depoimentos de quem lá esteve e testemunhou aquele espetáculo.
Assistir e entender Zé Celso era - e ainda é - entender um pouco as contradições deste país que enverga, mas não quebra. Dramaturgo, diretor, ator, músico, agitador cultural, figura política notável, mais do que tudo um polemizador nato. Explicar esse homem era tarefa quase impossível. Nem Marcel Proust conseguiria!
Se você, caro leitor que continua lendo este desajustado social que vos fala, já assistiu - nem que seja apenas uma vez na vida - a uma peça de teatro, seja qual for, fique sabendo: se você não viu até hoje uma montagem de Zé Celso corra agora mesmo ao canal no you tube do Teatro Oficina, companhia que ele criou lá pelos idos de 1958. Porque, honestamente, você ainda NÃO conhece teatro.
Zé Celso subverteu todas as regras, tornou a nudez em cena um ato de resistência, brincou com as vanguardas. É o melhor exemplo vivo do que foi e sempre será o tropicalismo (que Caetano e Gil tão bem cantaram). Seu sobrenome: experimentalismo. Mas não digo isso de forma chata, arcaica, tendenciosa. Não, meus amigos. Digo no sentido de quem estava sempre insatisfeito com o hoje, com o agora, pensando bem lá na frente, num amanhã que ainda nem sonhava em existir. Zé Celso era o futuro antes mesmo de ele dar as caras.
E por isso vai fazer tanta falta. Porque nunca precisamos tanto como agora de alguém que nos leve a um lugar melhor, sem tanta covardia ou rancor.
Vejam Cacilda!, vejam Bacantes, vejam Mistérios gozosos, vejam Os sertões (um escândalo em forma de teatro), vejam pelo amor de Deus o trabalho desse monstro sagrado das nossas artes cênicas. Acreditem: a vida de vocês e suas concepções de arte nunca mais serão as mesmas depois disso. Depois de conhecer, como bem disse a atriz Fernanda Torres ao lançar seu romance A glória e seu cortejo de horrores na sede do Oficina, ao pajé do teatro brasileiro.
Quer maior ato de contestação à vida medíocre, ao sistema falido em que vivemos, a caretice trazida de volta pelos boçais medrosos, do que assistir ao trabalho desse homem que enfrentou a tudo e todos - sistemas políticos ultrapassados, presidentes enfadonhos, a estupidez da elite - e ainda assim construiu um legado ímpar, praticamente inimitável na nossa área cultural? Ou quer viver afundado na mesmice, na trogloditice de quem não gosta de viver e ainda impede os outros de ser feliz, de pensar com a própria cabeça?
A escolha, claro, é de vocês. Ela sempre foi de vocês.
Zé, você não deve nada a essa gente maldosa nem ao país, seu trabalho e sua postura falam por si próprios. E se teve alguém que fez por onde ser lembrado nessas terras verdejantes, esse alguém foi você. Então descanse em paz e curta o nirvana, mestre! Porque você foi foda. Em todos os sentidos.
P.S: espero ter a honra de esbarrar com você aí em cima algum dia.
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