quarta-feira, 26 de junho de 2019

Sinônimo de cinema


De todos os artigos póstumos que eu fiz até agora este aqui foi o mais difícil. E me refiro a todo o processo, desde a decisão de falar sobre o falecido até a redação final. Entretanto, aprendi lendo sobre jornalismo cultural e outras áreas da mídia, que nem sempre é possível homenagear somente àqueles em quem acreditamos em gênero, número e grau. Às vezes, aqueles de quem discordamos em muitos aspectos também fazem parte de nossa formação cultural e, por isso, é preciso falar sobre eles. 

Refiro-me à crítico de cinema Rubens Ewald Filho que nos deixou nos últimos dias. 

É difícil para mim elogiar totalmente ou reclamar totalmente de uma pessoa como Rubens Ewald Filho. No final das contas, a conclusão a que chego é a de que ele dividiu opiniões a maior parte do tempo enquanto exercia o seu ofício. 

Para muitos hoje em dia, principalmente no momento em que vivemos num país polarizado e apegado ao passado como se ele fosse algo glorioso, o parágrafo anterior seria o suficiente para que eu não perdesse tempo falando de Rubens. Contudo, como o tema em questão aqui é a crítica cinematográfica e ela nunca se prestou a ser uma ciência exata. repleta unicamente de virtudes e achismos óbvios, é preciso que eu o defenda. E quando digo defender é por acreditar que faz parte do papel social do crítico transitar por sentimentos os mais diversos. Não conheço um crítico sequer - seja no cinema, na tv, no teatro, na literatura, etc - que não tenha incomodado um pouco que seja conservadores extremistas e as patrulhas ideológicas de sempre. Em outras palavras: ser crítico de cinema não é sinônimo de elogiar ou vender um bom filme e detonar um ruim.

Meu primeiro contato com Rubens Ewald Filho se deu através de seus guias de cinema (para muitos, uma boia salva-vidas valiosíssima para para os mais ferrenhos cinéfilos e amantes de sétima arte). Ali, conheci diretores de prestígio, atores e atrizes lendários e pérolas que nossa televisão não era capaz de exibir por razões óbvias e comerciais. 

Dali para seus comentários em transmissões do Oscar ainda na Rede Globo foi um pulo. Com ele, entendi que cinema não era sinônimo daquilo que o circuito exibidor abraça. "É preciso conhecer aquilo que nossos cinemas não querem exibir, pois estão interessados em se manter de pé", é o que parecia dizer o velho crítico toda vez que o ouvia. E ele sempre esteve certo nesse sentido. 

É bem verdade que ele também participou de algumas bolas fora, como por exemplo sua presença no longametragem Amor, estranho amor (sim, aquele que a Xuxa vive tentando proibir sua comercialização!), mas nada que não possa ser perdoado pelos verdadeiros fãs do bom cinema. "Mesmo os famosos erram", bem dizia meu pai, fã de westerns com John Wayne, Gary Cooper e Clint Eastwood. 

O tempo passou, Rubens ganhou prestígio, chegando a apresentar (não somente comentar) os principais prêmios da indústria cinematográfica norte-americana pelo canal a cabo TNT e eu, claro, o acompanhei durante anos. 

Porém, como todo sucesso excessivo faz pessoas públicas de todos os tipos passarem do ponto, ele acabou se tornou um moralista chato, inconveniente, desses que acaba falando muitas vezes o que não deve. E o mundo mudou em termos de sociedade (se para melhor ou pior, fique a critério de vocês, leitores, responderem). O pior exemplo dessa faceta a meu ver aconteceu numa cerimônia do Oscar em que a atriz transexual Daniela Vega, do filme Uma mulher fantástica, apareceu para entregar um dos prêmios e Rubens se referiu a ela como um rapaz (isso em plena era de luta pelos direitos do grupo LGBT). Pronto. Estava criado o climão e não demorou muito ele começou a ser boicotado das transmissões. Um final infeliz para quem foi referência no setor durante tantos anos. 

Durante a minha graduação na faculdade escrevi meu TCC sobre a passagem da crítica cinematográfica dos tablóides e jornais impressos para a internet e não quis o nome de Rubens Ewald Filho em meu trabalho, por considerá-lo muitas vezes ultrapassado. Hoje, confesso, teria dado ao mestre uma segunda chance. Enfim... Quis citar o episódio aqui para mostrar o quanto sua figura profissional era complexa e por vezes mal interpretada. 

Dito tudo isto, a imagem que me fica do velho crítico bonachão, de voz inconfundível, com cinco graduações e uma memória fotográfica, é a de um defensor incontestável do cinema nacional (inclusive de expoentes mais perseguidos da nossa cinematografia, como o cinema da boca do lixo em SP e a pornochanchada, onde tinha muitos amigos), dos cineastas clássicos (leia-se: Fellini, Bergman, John Ford, Antonioni, etc) e o de uma referência ímpar, um sinônimo de cinema. Não fosse ele certamente a crítica cinematográfica não teria se tornado o que se tornou no Brasil nos últimos anos (que o diga o sem número de podcasts, sites e youtubes sobre o tema atualmente!).

Assiste a última sessão, mestre! Você merece... 

sábado, 22 de junho de 2019

A rainha do pop declara guerra à tudo e todos


Eu confesso: nos últimos anos abandonei a rainha do pop, Madonna, por não concordar com a linha autoral que ela vinha seguindo. E dentre seus últimos álbuns lançados o que mais me perturbou foi Hard Candy (de 2008). Terminei a audição dele, na época, pensando: "definitivamente essa não é Madonna; nem de longe!". O tempo passou, Madonna procurou parcerias com artistas mais jovens (afinal de contas, há muitos anos ela não é mais a garotinha que emplacou na billboard com "material girl" e "holiday") e enveredou por outros territórios musicais, alguns acertadamente, outros não. 

E após tanto tempo, e esperando alucinadamente um disco que chacoalhasse com a minha cabeça (pois é: a música ao redor do mundo nos últimos anos anda pouco cativante - palavras minhas, que fique claro aqui!), eis que Madonna lança seu Madame X, um projeto desde o lançamento marcado por mistérios e uma silhueta misteriosa da cantora, envolvendo até mesmo um tapa-olho. A princípio temeroso, pensei: "deve ser pura jogada de marketing e ao fim, mais do mesmo". E não é que desta vez eu estava redondamente enganado? 

Madonna entregou ao público um dos melhores álbuns do ano (até agora). 

A canção que abre o álbum, "Medellín (em que divide os vocais com o cantor Maluma) já havia sido disponibilizada online para fãs mais ansiosos, deixando-os ainda mais curiosos sobre o futuro projeto, e desde as primeiras palavras que ouvimos da musa (one, two, one, two, one, two, cha cha cha) já fica claro o interesse da cantora numa relação mais estreita neste trabalho com a América Latina. 

Contudo, antes que essa proximidade se concretize, ela precisa deixar claro aos fãs de longa data que se trata de um álbum de Madonna. Logo, repleto de polêmicas e desabafos. E isso fica claro com "Dark ballet" onde escancara o verbo dizendo que "o mundo é uma vergonha", emenda com a religiosa "God control" narrando um mundo desesperançado e niilista, onde "todo mundo sabe a verdade, mas ninguém faz nada para mudar", tudo acompanhado de um coro clerical que mais parece um lamento desesperador e não satisfeita ainda arrisca no terreno do rock com "Love, pain, hope" em que critica a postura do atual governo norte-americano, mais interessado em projetos que nada acrescentam à realidade do povo e só alimentam a vaidade dos poderosos fúteis. Ao fim, manda um recado para os seus compatriotas: "não se machuque, você é melhor do que o mundo". 

Como  prosseguir depois disso? Profetizando, ora essa! E esse é o papel das canções "Future" e "Batuka". Na primeira, ela tristemente constata que "as pessoas não se prepararam para o futuro, vivem apegadas ao passado" e avisa aos habitantes de sua nação que um país imerso na violência não aprende nada com a sua própria história de terror. Já na segunda, ela endurece ainda mais o discurso e diz que "uma tempestade está vindo, de tempos ainda mais negros do que o atual" e que será um longo caminho até lá. Macabro? Eu sei. Mas como eu disse num parágrafo mais acima: Madonna já não é mais a material girl dos anos 80. 

Próximo passo: falar de si e dos mais necessitados, daqueles sempre desamparados pelo sistema. Com "Crave" (ao lado da cantora Swae Lee) ela volta-se para si mesma, se diz perdida, longe de casa, das pessoas a quem pode ajudar, do que é seguro. Porém, Madonna não está sozinha nesse sentimento derrotista, de desamparo. Isso é um reflexo desses tempos atuais, dessa globalização sórdida que prometeu milagres e só entregou discórdia. Já com "Killers who are partying" a cantora dá voz aos flagelados, esquecidos, refugiados. Detalhe: neste momento do álbum ela começa a exibir seus dotes na língua portuguesa. Confesso que achei uma ousadia e tanto da diva a esta altura da carreira.

Passado o sofrimento e a sensação de impotência, Madonna parte para a segunda fase do disco e exibe seu lado cachorrona, de mulher fatal, que não leva desaforo para casa por nada nem por homem nenhum. É nesse momento que os fãs mais enlouquecidos da artista vão se sentir em casa. Com "Crazy" esmiuça os relacionamentos tóxicos. Esbraveja contra quem ela se dedicou e não lhe deu o devido crédito ("agora chega!", ela grita). Já com "Come alive", parte para os casais discordantes, que forçam a barra tentando encontrar pontos em comum para salvar o relacionamento. Logo a seguir, ajudada pela nossa musa, Anitta, entra de sola na língua portuguesa com "Faz gostoso" (eu fiquei imaginando a dificuldade da moça para aprender o nosso idioma, um dos mais difíceis do mundo). Mas é com "Bitch, I'm a loca" que ela mostra que a transgressora que arrebatou milhões de fãs ao redor do mundo não está morta. Veste a carapuça da mulher moderna, empoderada, vestida para matar, safada, aquela que faz a diferença em qualquer lugar, esteja acompanhada ou não. 

O que sobra depois deste tsunami erótico todo? Madonna à procura de um amor (mas dentro das regras dela) com "I don't search I find" e um convite - mais do que isso: um levante - contra o sistema. Na faixa derradeira, "I rise", a musa dá o recado aos eternos opressores de sempre: "não há nada que você comigo que já não tenham feito antes". Menos arrasador impossível. 

Ao final da audição (ouvi o disco todo pelo Spotify) a sensação que me ficou não foi a do gosto amargo de saber que continuamos perdendo a batalha para os poderosos corporativistas. Mas sim um alento positivo e inspirador, criado por uma rainha do pop hoje sessentona - mais sem perder a elegância e a ousadia - que decidiu declarar guerra ao sistema, à sociedade e ao mundo em que vivemos da maneira que melhor conhece. 

E como é bom ter a diva de volta! 

Após escutar o novo trabalho dela, vi muita gente resenhando o álbum na internet e chamando-o de bizarro, de "a coisa mais esquisita que você vai ouvir esse ano". Uma pena. Certamente não entenderam a proposta. Ou então estão tentando diminuí-la, como costumam fazer esses influenciadores digitais de meia tigela e youtubers mais interessados em popularidade. Pior para eles. 

O mundo contemporâneo merece mais álbuns como Madame X. Pena que eles não acontecem com a frequência que eu gostaria que acontecessem. 

terça-feira, 18 de junho de 2019

Obsessivo


Comecei a ler com mais frequência sobre a história da arte e seus grandes expoentes de uns dois anos para cá muito motivado pela anarquia e a loucura presente no tema. Não, é isso mesmo que você leu! A história da arte me fascina pelo que ela tem de louco, de visionário, de anárquico, principalmente no desejo de certos artistas de romperem barreiras. A cada nova informação que consigo a respeito de Goya, Picasso, Miró, Salvador Dalí, Monet, Toulouse Lautrec e tantos outros, me dou conta de que a loucura e o inconformismo regem a arte com unhas e dentes (e isso não é um aspecto negativo nessa discussão, pelo contrário...). O mundo certamente seria bem pior não fosse a intolerância e o desespero desses mestres. 

Dentre os que mais chamaram a minha atenção até hoje há um capítulo especial todo dedicado a Vincent Van Gogh. Seja pela traumática história pessoal ou pela trajetória subversiva com que conduziu sua obra, ele sempre foi um homem à frente do seu tempo. Homem? Que bom seria se fosse fácil assim traduzir o pintor. Van Gogh foi um sobrevivente de uma época turbulenta, mas ao mesmo tempo febril em termos de nuances e debates políticos. E quando assisti ao filme Sonhos, do diretor Akira Kurosawa, que possui um módulo todo dedicado ao pintor (interpretado no longa pelo cineasta Martin Scorsese), fiquei com um sentimento preso na garganta de que sua história ainda seria contada com todo o garbo que merecia. 

Pois bem: esse filme é No portal da eternidade, do diretor Julian Schnabel (que é mestre em retratar figuras polêmicas do mundo artístico; são dele os longametragens Basquiat - traços de uma vida, Antes do anoitecer - cinebiografia sobre o escritor Reinaldo Arenas - e O escafandro e a borboleta). 

No portal da eternidade não é uma cinebiografia no sentido clássico do gênero. Ela pega, na verdade, um fragmento da vida deste magnífico artista e se debruça sobre ele, para fazer com que nós, espectadores, entendamos o que se passava em sua cabeça e como construía seu processo criativo.  

Van Gogh é vivido aqui nesta versão pelo ator Willem Dafoe (de quem sou fã desde os tempos de Mississippi em chamas), que mostra um domínio total de seu personagem, conseguindo fazer o o público entender de forma simples e direta os conflitos internos que assombravam esse artista fabuloso. À parte as telas que o consagraram mundo afora e a relação tumultuada com o irmão Theo (que o bancou durante muitos anos), o que está em jogo realmente aqui é a mentalidade tempestuosa de Van Gogh. O pintor não era um homem de gênio fácil. Pelo contrário... Era capaz de perder a paciência com a maior facilidade e não gostava de ser minimamente interrompido, sob pena de agredir àqueles que destruíram sua concentração. Foi malvisto por muitos políticos e habitantes de cidades por onde passou à procura de ideias para suas telas mais memoráveis. 

Entretanto, quando paro para analisar sua gênese com mais calma, acredito que isto também faça parte de seu legado artístico. Homens de moral simples e pacata não criam, sob hipótese alguma, uma obra tão vasta e apta a tantos debates. Se existe uma coisa que eu aprendi lendo sobre arte e entretenimento nesses anos todos, é que o criador de fato - seja musical, cinematográfico, literário, etc - nunca será um ser ordinário, desses que você encontra passeando pelas ruas a todo instante. Faz parte da alma artística um pouco de incredulidade e, porque não dizer, irracionalidade perante o mundo (principalmente esse mundo louco em que vivemos atualmente). 

E Van Gogh tinha isso, essa insatisfação plena, transpirando pelos poros. 

Willem Dafoe certamente merecia o Oscar de melhor ator deste ano bem mais do que Rami Malek interpretando o astro do rock Freddie Mercury. Que me perdoem os fãs do Queen e das cinebiografias musicais - que andam em voga atualmente em hollywood -, mas isso é um fato facilmente identificável. Infelizmente a academia parou de reconhecer grandes nomes da história há alguns anos e preferiu cometer mais essa bola fora. 

Contudo, se por um lado não há mais tanto espaço para artes visuais do passado e grandes nomes da pintura clássica, por outro é ótimo poder assistir um filme sobre Van Gogh com o nível de tecnologia proposto pela sétima arte de hoje. Se eu já era curioso acerca da vida desse gênio, agora vou sair correndo pelos sebos e livrarias atrás de mais informações sobre sua vida e intelecto. "O cara era foda. Ponto", foi a primeira frase que veio à minha mente ao sair do cinema ao final da sessão. 

E quem perdeu com isso? Os nerds e alienados da contemporaneidade. De novo. Mas isso, vocês que acompanham meus textos há tempos, já sabem de cor e salteado. 

sexta-feira, 14 de junho de 2019

O corredor polonês


Eu sempre prestei atenção nas entrelinhas do que a programação televisiva queria me mostrar diariamente. Quando pequeno, assistia aos programas infantis do Bozo e do Fofão e ficava tentando entender o porquê de toda aquela alegria gratuita, de toda aquela gargalhada circense sem sentido (detalhe: eu nunca fui fã da figura do palhaço e só passei a lidar melhor com o personagem quando o escritor americano Stephen King o transformou em psicopata). Fui de seriados asiáticos tokosatsu - leia-se: Ultraman, Jaspion, Changeman, etc - até programas satíricos na linha TV Pirata ou Armação Ilimitada. E como disse acima: sempre procurando nas entrelinhas uma outra abordagem sobre o que estava sendo exibido. 

Por que perdi todo esse tempo com este parágrafo grande? Porque a tv anda depressiva nos últimos anos. E quando falo em depressão quero dizer violenta. A tv anda mostrando a violência humana em excesso. 

E o principal: a que (ou a quem) serve essa postura?

Não há mais um dia do ano em que você ligue a televisão da sua casa e não se depare com uma tragédia diferente, padronizada para entreter: o incêndio no Ninho do Urubu, centro de treinamento do Flamengo; a queda das barragens em Minas Gerais; os garotos presos na caverna tailandesa; o incêndio do Museu Nacional; o fechamento da Niemeyer por causa das chuvas torrenciais; o incêndio da Catedral em Notre Dame, em Paris; A tragédia da Boate Kiss; terreiros de umbanda destruídos... A lista é imensa, então é melhor parar antes que nossos cérebros esfacelem. 

Contudo, o mais nojento é: por que nos interessamos tanto por essa indústria maléfica da autodestruição? Por que isso gera tanto ibope? Um filme como Vingadores: ultimato, repleto de matança disfarçada de heroísmo e efeitos especiais, é capaz de arrecadar mais de dois bilhões de dólares em bilheteria ao redor do mundo. E, no entanto, um longametragem bem intencionado, sobre uma figura histórica proeminente, terá dificuldade de conseguir orçamento, dependendo da situação sequer será rodado. E muitos espectadores do filme super-heroístico dirão: "fazer pra quê! perda de tempo!".

O que não versa sobre a violência no mundo contemporâneo é rotulado de "perda de tempo", de "desperdício de dinheiro". Nunca foi tão importante criar massas de manobra, fantoches utéis à causa global. E qual é a causa global? Lobotomizar cidadãos de bem, fazendo-os acreditar numa pauta que só interessa ao mercado financeiro, aos bem-nascidos, aos privilegiados do sistema. 

No final das contas, o que estamos fazendo é atravessar um corredor polonês interminável. Mas, diferentemente dos corredores que atravessávamos na época escolar, com direito a tapas na nuca e petelecos na orelha, esta nova versão globalizada envolve portadores de armas de destruição em massa, drogas injetáveis, discursos manipulativos e vírus letais de última geração. Portanto, cabe a nós, reles seres humanos, reconhecermos nossa derrota o quanto antes. Eu sei, eu sei... Um ou outro enfrentará o sistema torpe de tempos em tempos, até que a chegada da velhice ou a ordem natural dos fatos o coloque no seu devido lugar. Em outras palavras: a vida como ela é (e ainda tem gente que chamava o Nelson Rodrigues de pornográfico. Como é que pode!). 

Chego ao ponto deste artigo em que os leitores me chamam de derrotista, de imbecil. Dirão que estou fazendo propaganda paga para aqueles que vencem o jogo desde que o mundo é mundo. Só que essas mesmas pessoas não entendem o quanto há de derrotista em ser realista. E estou aqui falando do mundo real, não do "tiro, porrada e bomba", cantado pela Valesca Popozuda ou da fábula televisiva conhecida como Big Brother. 

Voltando às tragédias, vejo no monitor de tv na sala a notícia sobre a morte do ator de Chiquititas (aquele do comercial "eu quero brócolis") pelas mãos do pai de sua própria namorada. O repórter da emissora de tv fala em "pai obsessivo". E obsessão virou um tema pertinente neste Brasil dos últimos anos. Olhe ao seu redor, escute o papo das outras pessoas, e você entenderá rapidamente o que estou dizendo. 

Adoecemos. E adoecemos num nível nunca antes visto na história deste pais e também do mundo. Não conseguimos viver uma vida além de bens materiais, consumismo, status, poder. E quem não fala essa língua mesquinha e usurária é visto como um pária na sociedade, alguém a ser eliminado o quanto antes (só para constar: já se fala na internet até em redução populacional no mundo, a "nova ordem mundial". Mas o que é a internet, essa terra de ninguém, não é mesmo?). 

Logo, como disse quatro parágrafos antes: um corredor polonês interminável. 

Enquanto alguns rezam desesperadamente e outros procuram lucrar em meio à desgraça promovida pelos setores mais nobres da sociedade, eu continuo tentando decifrar aquelas entrelinhas. Continuo à procura de um caminho que me represente (ao contrário de certas figuras midiáticas opacas, que se escondem atrás de contas bancárias e roupas de grife). 

Procuro uma maneira de cortar caminho, de não cruzar com o corredor polonês, mas ele é terrível. Mais terrível do que o Big Brother (agora o do George Elliot, não o reality show da Rede Globo). E seus tentáculos tiram a minha possibilidade de ir e vir. 

Enfim... Está cada vez mais difícil seguir em frente. 

segunda-feira, 10 de junho de 2019

A semente da dúvida


Vivemos neste século XXI uma cultura da indiferença atroz, nunca antes vista desta forma. "Aquilo que atinge aos outros não me interessa", dizem a todo momento os homens e mulheres que se dizem cidadãos de bem nesta civilização globalizada. Contudo, trata-se de uma indiferença cretina se levarmos em consideração que quando o atingido é o indiferente ele cria uma série de distorções e situações confusas, sempre tentando colocar os outros em xeque. Como se ele nunca fosse de fato o culpado e sim a vítima.

Esta semana assisti em dvd um longametragem que me mostrou de forma clara e objetiva um pouco desta cultura confusa e torpe que vêm ganhando mais e mais adeptos dia-a-dia. Trata-se de Todos já sabem, do diretor iraniano Asghar Farhadi, vencedor de dois Oscars de melhor filme estrangeiro. E desde já adianto: moralistas de carteirinha ficarão indignados com o desfecho. 

Todos já sabem conta a história de Laura (Penélope Cruz), que chega à sua cidade natal - que não visita há anos - para assistir o casamento de sua irmã. Com ela, vem seus dois filhos. E a princípio tudo leva a crer que se tratará de uma festa alegre, do reencontro com familiares e amigos. Entretanto, é perceptível no clima da festa antigas cicatrizes à mostra, como por exemplo, a da atual esposa de Paco (Javier Bardem), com quem Laura namorou no passado. Naquela época, Paco era apenas um reles empregado da vinícola de seu pai. Já hoje, um empresário bem sucedido, sua presença incomoda a muitos membros da mesma família. 

Durante a cerimônia sua filha mais velha, Irene, desaparece e todos começam a procurá-la desesperadamente. Minutos depois, Laura recebe uma mensagem pelo celular. Trata-se de um sequestro e seus perpetradores avisam que caso ela avise à polícia sua filha será assassinada. E neste exato momento nasce uma semente de dúvida que irá pairar por todo o seio familiar. 

As trocas de acusações entre parentes são as mais diversas. E com a chegada do marido de Laura, Alejandro (Ricardo Darín), um homem falido com histórico de alcoolismo que quase tirou sua própria vida, o clima acirra ainda mais por conta da descoberta da real paternidade da moça sequestrada. 

Farhadi, que é mestre em transpôr para o cinema dilemas morais (vide o que ele fez nos longas A separação e O apartamento) realiza aqui sua trama mais intrincada, cheia de reveses os mais distintos. Desde a mulher que está se separando do marido e cria sozinha a filha até a figura do pai, um homem destruído pelo tempo, e que vive aprisionado ao passado de glórias, quando seu patrimônio era muito maior do que é hoje, o que se vê na tela é uma grande ciranda de estereótipos os mais preconceituosos possível. E por conta disso é fácil entender o porquê de todos acusarem todos a todo momento. 

Trata-se de uma família que passou boa parte da vida vivendo de privilégios conquistados por anos e anos de trabalho duro. A partir do momento em que o padrão de vida geral cai (algo que não é problema exclusivo da América Latina e sim do mundo contemporâneo como um todo), fica notório e visível o ressentimento daqueles que não querem ficar por baixo ou admitir suas dificuldades financeiras e sempre acusam os outros de seus próprios problemas ou frustrações. Na verdade, o que a película parece dizer em suas entrelinhas muito bem justapostas é que o que todos parecem saber de fato é que os dias de glória já se foram, o mundo já não é mais o mesmo e é preciso encarar a realidade dos fatos. O problema é: como?

Estamos falando de burguesia e burguesia nunca gosta de dar um passo atrás e vislumbrar novos horizontes. 

É fácil entender por que um longa desses foi tão mal distribuído em nosso circuito exibidor. Lembro que quando foi lançado em nossas cinemas eu desisti imediatamente de ir assistí-lo, por conta dos horários e salas de projeção extremamente inacessíveis. Nada mais comum hoje em dia em se tratando de um circuito mais afeito à produções fantásticas e sobrenaturais. Porém, mesmo assim, é preciso desabafar aqui: as redes de cinema perderam uma grande chance de exibir um filme que é a cara dos tempos atuais, marcados por discursos idiotas e por vezes inverossímeis por se esconderem atrás de velha e arcaica moral monetária. 

Como para nossa felicidade (e aqui me refiro aos cinéfilos de fato e não aos meros espectadores de fim de semana) também possuímos a facilidade de adentrar o mundo da internet, com seus Googles, You tubes, fóruns de cinema e outras interfaces que volta e meia disponibilizam material para download, convido os leitores deste artigo a procurarem o longa na rede e o quanto antes. 

Mais do que um mísero drama, Todos já sabem é um exemplo pós-moderno de ótima qualidade do clássico e ainda atuante teatro de máscaras que rege nossa vil sociedade até hoje. E aos que ainda acreditam no mundo real, estão esperando o quê para ir atrás dessa pequena jóia que passou despercebida no  nosso circuito comercial?

segunda-feira, 3 de junho de 2019

O Hércules do rock


"Certas pessoas vieram ao mundo para brilhar", li certa vez num livro sobre cultura pop de autoria de um famoso pesquisador do gênero. Eram os anos 90 e muitas pessoas da antiga me diziam que o que era bom já havia passado há anos e eu não tivera a oportunidade de apreciar. Não concordei com o argumento (até hoje não concordo), mas mesmo assim o ouvi por uma questão de educação e respeito aos mais velhos (embora nem sempre eles estejam certos!). 

O tempo passou, meus cabelos infelizmente se foram (por minha culpa, confesso) e continuei lendo e absorvendo a cultura pop como um lunático, um delirante, um apaixonado pelo tema. E dentre as inúmeras pessoas que povoaram - e povoam até hoje - a minha cabeça há um capítulo especial reservado à Reginald Dwight. "Eu não sei quem é", você está doido para dizer. Mentira. Você sempre soube quem era, só não conhecia o seu nome de batismo. Falo de Sir Elton John, o mago do piano ou, como gosto de chamar toda vez que o ouço no you tube, capitão fantástico (nome de um de seus álbuns mais foda!).

Pois bem: há anos quero ler uma biografia dele, mas nossas editoras não me ofereceram esta oportunidade até agora (parecem mais preocupadas e interessadas em auto-ajuda, livros místicos, de colorir, entre outras bobagens editoriais que povoam nosso mercado atualmente). Quem sabe agora, após a realização da cinebiografia Rocketman, do diretor Dexter Fletcher, também responsável por consertar muitas das asneiras contadas no longa Bohemian Rhapsody que concorreu ao Oscar esse ano, eles  - os editores - enfim tomem coragem.

Mais do que uma mera cinebiografia, Rocketman é um grande musical (algo que eu vinha sentindo falta há algum tempo, pois hollywood anda confundindo o gênero com tolices na linha La la land). Trata-se, no caso da história do cantor, de uma grande viagem do céu ao inferno com toques de fábula e surrealismo, e mostrando o quanto o tão alardeado e idolatrado show business pode ser maléfico e destrutivo. 

Fui ao cinema com um ponto de interrogação na minha cabeça, pois já sabia que o ator Taron Egerton (que interpreta Elton John) cantava todas as canções no longa e eu queria ouvir a voz do próprio Elton. Podem me chamar de chato ou antipático, mas às vezes críticos são cheios de pequenas manias incômodas. Acreditava eu que o filme poderia ser estregado por qualquer um cantando. Ledo engano! Taron se mostra sublime com uma voz precisa, que me surpreendeu. E não somente isso: fiquem de olho no rapaz, pois acredito que sua carreira deslanchará de vez a partir de agora. 

Desfeita a primeira má impressão, é com olhos marejados de lágrimas que vejo o diretor passear por nuances do artista, sem a preocupação de seguir uma cronologia exata ou metódica. O que importa aqui é a jornada pela qual o jovem Reginald teve que passar para se transformar em Elton John e chegar ao estrelato. Elton é fruto de uma família disfuncial, cheia de problemas, um pai omisso, uma mãe preocupada única e exclusivamente com a própria vida. E tudo o que ele viveu pós-relacionamento familiar foi meio que uma extensão desses problemas. 

A parceira com Bernie Taupin (vivido por Jamie Bell, não mais o garoto de Billy Elliot), o romance escandaloso com o  opressor John Reid, a luta para se impor como homossexual (algo que, no início da carreira, impossibilitou sua jornada), a incerteza sobre o futuro, já que acreditava que seu talento só era possível por conta do envolvimento com o álcool e as drogas... Ser Elton John nunca foi fácil. Na verdade, uma tarefa para um verdadeiro Hércules (sobrenome que ele próprio assume no filme). 

Alguns espectadores enjoados reclamarão da abordagem do filme (a história é contada do ponto de vista do artista numa clínica de reabilitação, procurando refazer sua vida após tantas más escolhas). Eu, confesso, gostei da postura de Fletcher porque durante anos li matérias sobre Elton John em que ele se dizia "lutando contra demônios pessoais" para se manter de pé dia a dia. E, além disso, somente alienados e fanáticos sem conteúdo esperam realmente que a trajetória de um artista desse gabarito seja feita só de alegria e satisfações. 

Em outras palavras: nunca acreditei na vida artística sem deslizes ou tropeços. E quando me deparo com a terrível tentativa de me convencerem disso, fico achando que o mundo ou a sociedade está tentando me lobotomizar, isso sim. E isso, meus amigos, é perda de tempo. 

Sempre vai ter algo ou alguém faltando na história de um ídolo para que os fãs mais xiitas possam dizer: "está vendo? ele escondeu...". Dêem tempo ao tempo e os detratores do filme aparecerão. Eles sempre aparecem. 

Para os demais espectadores, os não interessados na polêmica (grupo do qual faço parte), recomendo Rocketman com euforia. Se em Bohemian Rhapsody reclamaram da falta de coragem em abordar certos aspectos da vida de Freddie Mercury, aqui o que vejo é uma produção cheia de ousadia, com números musicais esplendorosos e preocupada em retratar as aflições de um dos maiores artistas do século passado (e deste também). Que o diga as cenas de sexo cuja exibição foi proibida em alguns países. Que babacas! Querem transformar Elton John em algo que ele não é. E ainda se dizem democráticos. 

Ao final da sessão, leio que o cantor está sóbrio há 28 anos, casado e com dois filhos adotivos. Ou seja: venceu a batalha, decidiu seguir em frente, contra tudo e contra todos. Bem fez ele. Somente um Hércules do rock n' roll para vencer uma batalha dessas! 

Longa vida a ele.