sexta-feira, 31 de julho de 2020

O diretor que me transformou em cinéfilo


Provavelmente já disse isso em outros artigos que fiz sobre cinema, mas não custa nada enfatizar: minha relação com a sétima arte começa através daquilo que o mercado audiovisual costuma chamar rotineiramente de filme B. E acreditem: eu vi de tudo um pouco nesse sentido. Desde filmes sobre kickboxing sem pé nem cabeça até os famigerados midnight movies. E quem, como eu, acompanhou os anos 1990 e a famosa sessão das dez no SBT (que sempre começava depois da meia-noite) certamente acompanhou de perto o "melhor do pior" da arte cinematográfica. O que, claro, não significa que essas produções deixaram de ganhar a pecha de cult. 

Contudo, há um momento divisor nessa minha jornada cinéfila e ele acontece quando conheço de perto a cinematografia do diretor Alan Parker. Com ele entendi, enfim, a chamada política de autor que povoou a cabeça de diretores como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Brian de Palma e toda a geração da nova hollywood dos anos 1970 (em alguns livros você encontrará essa rapaziada classificada também como geração easy rider). E olha que nem americano ele era! Mas reafirmo: pouquíssimos são mais autorais do que ele. 

Dito isto, é com enorme pesar que abro o computador e descubro que o diretor faleceu hoje aos 76 anos. Poucas vezes disse isso nos "obituários" que fiz até hoje sobre diretores de cinema, mas o cinema mundial perdeu - eu, pelo menos, entendo assim - um de seus artistas mais versáteis. 

Parker era um diretor completo, capaz de trabalhar com qualquer gênero ou narrativa e percebi isso logo de cara no primeiro filme dele que vi. Tratava-se de Quando as metralhadoras cospem, com uma Jodie Foster ainda criança. Era um filme de máfia infantil. Não, é isso mesmo que vocês leram. Procurem na internet quando puderem. É sensacional! 

Eu era moleque viciado na sessão da tarde da Globo e sempre que a película era reexibida eu a reassistia. Mas no ano seguinte eu me deparo com O expresso da meia-noite (naquela sessão das dez no SBT, lembra?) e tudo mudou. Eu me tornei um obcecado pelo seu trabalho. 

A seguir vieram as VHS - DVD não havia ainda nessa época - do musical Fama, com a voz inesquecível de Irene Cara, e Pink Floyd - the wall, sobre o álbum seminal da banda de rock. Mas eu cortei foi um dobrado mesmo para assistir The Commitments - loucos pela fama (detalhe puramente fanático: eu tenho uma playlist no spotifiy com as músicas que eu ouço o tempo todo e nela consta a canção "mustang sally", que faz parte da trilha sonora desse filme).

Acham que acabou, que já está de bom tamanho? Que nada. Como eu poderia terminar este texto sem mencionar os extraordinários Coração satânico e Mississipi em Chamas. Dois filmes obrigatórios a meu ver na formação cinéfila de qualquer espectador que se preze. 

O Oscar que ele merecia infelizmente não veio (na verdade, o Oscar sempre custa a vir para os melhores, isso quando vem) e confesso que ele acabou perdendo o fôlego com o passar dos anos. Evita, seu polêmico musical sobre Eva Perón estrelado pela cantora Madonna, e A vida de David Gale - seu último longa, rodado em 2003 - são a prova viva disso. Resultado: ele se afastou dos sets e eu acabei órfão da ausência de seu talento nas telas. 

De oficial sobre sua morte só se sabe que estava doente (já qual doença, especificamente, não há detalhes). Entretanto, fica eternamente o legado de um estupendo artista que não se rendeu a formatos ou mesmo franquias. E tenho a sincera impressão de que ele não se encaixaria nesse mercado audiovisual de hoje. Talvez o considerasse gigantesco ou sobrenatural demais. Enfim... 

Que dirija seus longas fantásticos agora lá do céu (que, por sinal, tem ótimos atores lá em cima, alguns inclusive acabaram de chegar). 

Fica com Deus, mestre!

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Zoológico à beira-mar


Copacabana é a eterna princesinha do mar, é o bairro que embalou a bossa nova, Tom, Vinícius e João Gilberto, é também o Rio de Janeiro que serviu de base para que o escritor Fausto Fawcett explicitasse de forma poderosa seu "purgatório da beleza e do caos" como bem o fez na canção Rio 40 graus. E isso só para falar o mínimo necessário nesta abertura (pois ela, vocês sabem, é bem mais do que isso!)

Em suma: Copacabana é múltipla, é duas ao mesmo tempo, lutando entre si com unhas e dentes. A primeira, maravilhosa, de dia, praias lotadas, sol a pino, mulheres deslumbrantes em micro biquínis, surfistas na praia do diabo, o arpoador, o leme, os quiosques, frescobol, futevôlei na areia, o Copacabana Palace (que já abrigou milhares de estrelas nacionais e estrangeiras), etc etc etc. Já a segunda, mórbida, escusa, começa a dar as caras assim que a noite vem chegando, enxerida, travestis e prostitutas disputando espaço na orla pelo melhor cliente, o Frank's bar cheio de turistas, a outrora danceteria Help (hoje extinta), point dos que procuravam uma noite de prazer. E, claro, punguistas, michês, bandidos de todas as espécies e etnias. Para dar e vender.

Sempre me perguntei se conseguiriam traduzir o bairro em outros tons, transpô-los para outras plataformas. Rogério Sganzerla a desenhou de maneira interessante em Copacabana mon amour, um de seus longas mais emblemáticos. Mas anteontem, ao terminar de ler a graphic novel Copacabana, da dupla gaucha Lobo e Odyr, me dei conta de estar diante de um retrato preciso e coeso desse bairro contraditório por natureza. 

Diana, a prostituta que "protagoniza" esta narrativa quase pulp, é apenas um mero detalhe, um fio condutor dessa saga, esse quase ensaio sobre o desespero humano. Digo isso porque os leitores deste trabalho precisam mesmo é prestar atenção na grande fauna que circula pelo bairro, tramando planos sórdidos e estratagemas antiéticos, fazendo o que podem (e o que não podem também) para sobreviver a qualquer custo. 

Não se trata de uma história sobre a elite carioca e a sua realidade privilegiada, muito menos algo na linha Edifício Master, do documentarista Eduardo Coutinho. Não, meus caros amigos. Copacabana fala mesmo é daqueles que muitos moradores autênticos do bairro adoram rotular de invasores ou intrusos. Daqueles que necessitam do bairro para sobreviver ou, ao menos, chegar vivo ao dia seguinte e ao próximo e ao que virá depois deste. Pois para estes só existe a máxima "um dia de cada vez". 

Portanto, a melhor analogia que eu consigo fazer sobre a recriação desse local em formato hq é a seguinte: trata-se de um zoológico à beira-mar, repleto de almas perdidas, sufocadas, procurando ar para respirar e, muitas vezes, não encontrando a quantidade necessária de oxigênio que as sustente. Triste, não? Pois é: a realidade também. O típico caso a arte imita a vida ou vice-versa. 

Não se iludam com a crueza dos quadrinhos em preto-e-branco, distorcidos, quase versões opacas de seres humanos. Acredito piamente que isso seja intencional da parte do desenhista Odyr (que, por sinal, pegou esse projeto - que levou sete anos para sair do papel - no meio do caminho). Para mim ele quis fugir da questão estética, da beleza superficial, para que nós, leitores, conhecêssemos o lado b do bairro, a parte suja que os tabloides e programas televisivos, quando mostram, é volta e meia de forma suavizada, não tão gritante. 

Já a narrativa de Lobo é impecável, cheia de expressões de baixo calão, gírias as mais diversas, o coloquialismo puro e simples como protagonista brilhante - e necessário - desse que é um trabalho praticamente underground. 

E enquanto nos deparamos com cafetões macabros chantageando suas "funcionárias", contadores inescrupulosos bolando um novo plano antiético para enriquecerem ainda mais e a lente nua e crua que sobrevoa o mundo da prostituição e das drogas, eu me pego em êxtase com a coragem e o brilhantismo da dupla de artistas  (e já começo a procurar no google para saber se há outros álbuns feitos a quatro mãos por eles). 

Ao fim de mais este deleite literário (sim, os puristas que se danem: quadrinhos também é literatura) me pego novamente pensando no quanto nossos leitores mais jovens, a priori público-alvo deste formato, perdem tempo lendo baboseiras sobrenaturais com heróis de plástico e acabam por deixar de lado pequenas joias como essa. Graphic novels como Copacabana deveriam ser levadas para a sala de aula, serem estudadas por especialistas em antropologia social, e não simplesmente ficarem escondidas em estantes de megastores em locais onde, muitas vezes, jamais serão encontradas para beneficiar as majors do setor. Pois isso, sim, é uma calhordice. 

domingo, 26 de julho de 2020

Essa confusão sou eu


Eu me tornei cinéfilo e consequentemente um interessado em escrever sobre filmes - embora não me considere um crítico especializado - para poder enxergar além da própria sétima arte. Sempre fui um fascinado pelo set de filmagem e a todo momento procuro no mercado editorial livros contendo histórias sobre os bastidores dos grandes longa-metragens. E nessas procuras me dou conta, às vezes, de que a película, o resultado do projeto, é um reles detalhe. Quero mesmo é conhecer a história desses artistas e o que eles fizeram de suas próprias vidas e carreiras. 

Pois bem: volta e meia me pego pensando na reflexão proposta por este parágrafo e chego à conclusão de que o melhor exemplo que eu poderia dar para explicar de forma cinematográfica o que escrevi é a obra-prima Oito e meio, do cineasta italiano Federico Fellini. E digo mais: em se tratando de um filme em que o próprio diretor confessava em entrevistas estar incompleto - daí o título da obra, que é seu nono longa-metragem -, é impressionante a genialidade dele. Fellini era realmente um mestre que deixará saudades eternas, na Itália e no resto do mundo. 

Guido Anselmi, protagonista desta jóia rara (e interpretado por Marcello Mastroianni), é um cineasta que foi da glória e o reconhecimento à crise de inspiração - ou, como costumam chamar alguns, o bloqueio criativo - e agora sente-se sugado em todos os sentidos. Contudo, ele promete um novo filme à seus produtores e é justamente nesse momento que os problemas começam. 

Sempre envolto por belas mulheres e fazendo a todo momento digressões que remetem à sua infância, uma época em que era mais livre e não precisava dar satisfações sobre cada passo que dava, ele se vê engolido por um mercado exibidor que o enxerga apenas como  uma reles engrenagem dentro de um processo criativo. E à medida que o tempo passa e o roteiro ou mesmo uma ideia geral do que seja o projeto não surge sua angústia atinge um nível nunca antes alcançado em toda a sua carreira. 

Logo, ele precisa ganhar tempo. E faz isso através de sucessivas mentiras ou evitando contatos e conversas mais longas sobre tudo o que verse a respeito do "novo e genial filme que virá".

Há pontos interessantíssimos a serem evidenciados no longa, que não somente refletem bem a personalidade de Guido, mas também o fato de ele ser um grande alter-ego do diretor. Em primeiro plano destaco a trilha sonora, belíssima, que ilustra bem o clima nonsense, de preocupação constante do diretor em crise (cheguei a acreditar, em alguns momentos, estar diante de uma "ópera do absurdo"). Logo a seguir, cabe aqui o meu elogio à maneira como Fellini flerta com o surrealismo nesta narrativa visual. Ele, que sempre viu sua obra associada ao sonho e ao delírio, aqui - a meu ver, pelo menos - realiza o seu projeto que mais remete ao mestre Salvador Dalí. Talvez muitos que leiam esta crítica achem um exagero da minha parte, mas honestamente tive de fato essa impressão. E finalmente, a presença da figura das musas (são muitas!) de Guido, uma referência clara aos gregos, mas também às paixões do próprio Fellini. 

Há um embate claro entre o filme que Guido deseja realizar, um trabalho apaixonante, autobiográfico e sem licenças poéticas, e toda a expectativa gerada por aqueles que o cercam e fazem a máquina da indústria cinematográfica girar. Em outras palavras: Oito e meio é um filme sobre bastidores. sobre aquilo que não vemos, mas acontece em todas as produções do gênero. 

Refiro-me às brigas entre a equipe de filmagem; a dificuldade do realizador em manter seu casamento vivo; as difíceis, quase insuportáveis, audições para escolha de elenco; a crítica e a imprensa em geral perseguindo o realizador de forma insistente, à procura de informações sobre o que ele fará a seguir, etc etc etc e hajam incômodos e desnecessários etcs que só contribuem para atrasar ainda mais o projeto. 

O que vemos antes das câmeras serem ligadas e o diretor gritar "ação!" está tudo ali, de forma nua e crua, sem rodeios ou invencionices. Toda a bagunça da pré-produção, as ideias primárias que não funcionam, não se concretizam nas telas, os atores cheios de pitis e exigências constantes... Tudo aquilo capaz de enlouquecer o mais normal dos mortais e, no entanto, faz parte da rotina de qualquer realizador da sétima arte, pois não fosse assim não iríamos apreciar sua saga nas salas de cinema. Em suma: uma confusão generalizada que visa um espetáculo posterior. 

E como o próprio Guido/Fellini diz ao final do longa: "essa confusão sou eu". Esse acúmulo de experiências, memórias e derrotas as mais diversas dão, de certa forma, um caráter quase metalinguístico ao filme. E Fellini, de uma maneira ou outra, sempre perseguiu isso em sua carreira. 

E passados 57 anos sem envelhecer uma vírgula sequer e ao final dos mais de 130 minutos de projeção impecável só me resta, orgulhoso, ver meu rosto encher de lágrimas e levantar para aplaudir de pé essa obra-prima do cinema italiano. 

P.S: em 2009 o diretor Rob Marshall dirigiu Nine, que se pretendia uma nova visão sobre essa história. Fui ao cinema na época para assisti-lo e saí meio desapontado. Mais uma vez hollywood moralizou uma história consagrada pela sétima arte de um outro país transformando-a naquilo que ela não era (no caso, um musical). Eles adoram fazer esse tipo de coisa. E eu espero sinceramente que um dia eles parem com isso!  

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Magistério não é para principiantes


Sou formado em comunicação social há uma década, mas antes disso cheguei a fazer dois anos de Licenciatura em Letras (português-inglês). E o principal motivo que me fez desistir do curso na época foi a terrível realidade pela qual milhares de professores passam dia a dia. Entra ano, sai ano e não vejo o nosso país se tornar modelo de educação. Longe disso! Preferimos ser uma reles fábrica de diplomas e acredito piamente que este problema começa no ensino fundamental e médio, ambos extremamente mal-estruturados (com vistas a piorar no futuro). Logo, nunca me vi com vocação para encarar essa batalha. 

Dito isto, foi com grande deleite - mas sem perder a preocupação - que assisti pelo you tube, em tempos de pandemia nos oferecendo grandes oportunidades teatrais online, o excelente Conselho de classe, espetáculo da Cia. dos atores escrito pelo dramaturgo Jô Bilac e dirigido pela dupla Bel Garcia e Susana Ribeiro.   

A história se passa na Escola Dias Gomes, localizada no centro do Rio, e vive os dias posteriores ao afastamento de sua diretora (o motivo: uma confusão envolvendo alunos vândalos e depredação do patrimônio público). A direção-geral envia ao local um substituto, que se reúne com as poucas professoras dispostas a voltar à instituição para tratar do futuro (da escola, bem como dos alunos). 

São elas: Eliomara (César Augusto), Célia (Leonardo Netto), Paloma (Marcelo Olinto) e Mabel (Thierry Trémouroux). Não, meus caros leitores! Vocês não estão lendo nada errado. As professoras em cena são interpretadas por atores, do sexo masculino. E desde já adianto: achei de uma sacada genial, pois leva a discussão sobre a falência do magistério a um patamar muito maior do que mera discussão de gênero.  

Como definir uma pauta que abranja pais e filhos, que os faça participar da rotina escolar de maneira mais próxima; disputa de egos entre professores carreiristas (ou seja: aqueles que visam unicamente seus diplomas e futuros profissionais) e aqueles que ainda vêem um futuro digno para a educação brasileira; o funcionalismo público ultrapassando a barreira do bom senso e agindo como se fosse o detentor da verdade quando o assunto é educação (em outras palavras; quando se perde a noção do que é público e o que é privado)... Todas essas e outras tantas questões que versam sobre as micro e macro políticas educacionais estão presentes aqui sem perder, é claro, o bom humor. 

Digo mais: o humor - aqui, mais do que sarcástico - cai como uma luva dentro da narrativa ácida de Bilac, pois sinceramente não acredito que conseguiria assistir a peça até o fim se ela fosse simplesmente um drama seco, amargo. São os momentos de gargalhada e ironia fina que me mantiveram presos ao tema, bem como a encenação. 

Esqueci de mencionar uma passagem importante: o espetáculo abre com a voz em off da atriz Drica Moraes destilando um monólogo acre sobre a maneira desastrada como nosso sistema educacional vem lidando com o problema do ensino no país. O texto em questão contou com a colaboração pedagógica de Cléa Ferreira, e é de uma atualidade assustadora (embora a montagem tenha sido realizada em 2014, logo antes da última eleição presidencial e das discussões sobre a maneira como os estudantes brasileiros vêm sendo instruídos - na visão de parte da sociedade). 

Também gostei muito dos cenários criados por Aurora dos Campos, pois tive a sensação, em alguns momentos, de estar vislumbrando uma grande bagunça. Pareceu-me que ela quis dar uma conotação de baderna ao local. Não sei se foi isso mesmo ou apenas eu, como sempre, enxergando demais e tirando conclusões prematuras...

Ao fim, enquanto os espectadores ovacionam o elenco (ovação, é bom que se diga, merecidíssima!), chego mais uma vez - assim como aconteceu na época da faculdade - à conclusão de que magistério não é para principiantes, que dirá para alguém  como eu, pouco afeito à guerras ideológicas e partidarismos ganhando força num terreno onde, honestamente, eles não deveriam se meter. Pelo menos, não desse jeito. 

Esta é a quinta peça de Jô Bilac que eu assisto, em êxtase. É um de nossos melhores dramaturgos contemporâneos e sempre está à procura de temas que mexam com os brios do público, mas sem soar taxativo ou panfletário. E não vejo a hora dessa pandemia acabar de vez para voltar aos teatros e ver o que ele irá aprontar a seguir. 

Criem logo essa vacina, pelo amor de Deus!

P.S: para quem quiser conferir o espetáculo online, entre em https://www.youtube.com/watch?v=BK-Wyu2FYaI

domingo, 19 de julho de 2020

Tabloide Junkie


Quando devorava alucinadamente os romances do escritor norte-americano James Ellroy (autor de, entre outras façanhas literárias, os notáveis Los Angeles: cidade proibida e A Dália negra) havia, volta e meia, a presença da revista Hush-hush na trama. Tratava-se de uma publicação sensacionalista, que vivia de escândalos em hollywood e da vida das chamadas pseudocelebridades. E já naquela época - eu tinha pouco mais de 20 anos nesse período - alguns segmentos de hollywood reclamavam e muito da abordagem do autor sobre os artistas e famosos. 

O tempo passou, Ellroy envelheceu (e continuou um autor brilhante dentro do gênero policial) e hollywood aprendeu a conviver com suas distorções comportamentais. Mais do que isso: passou a inserir em suas histórias as celebridades fake, os excluídos, renegados e também os junkies - que, a meu ver, rendem em muitos momentos grandes personagens. Quem quiser tirar uma prova dos nove sobre isso, assista ao extraordinário Réquiem para um sonho, de Darren Aronofsky. 

E não é que nesta última sexta-feira encontro numa banqueta de dvds piratas, dessas que vocês vêem rotineiramente nas feiras livres, um exemplar surreal dessa vertente, provavelmente um dos filmes mais loucos que eu assisti nos últimos dez anos? Trata-se de The Acid House, o primeiro longa-metragem do diretor Paul McGuigan.

The Acid House traz aos espectadores uma grande crônica (melhor dizendo: um tabloide) sobre a vida miserável dos excluídos e viciados da América - e também, por que não dizer, do mundo. E não me refiro exclusivamente aos viciados em entorpecentes e psicotrópicos, não! Quem dera fosse fácil interpretar todos os tipos de vícios existentes na sociedade contemporânea... 

Seguindo uma toada que lembra em alguns momentos o clima de Trainspotting: sem limites, de Danny Boyle, McGuigan constrói sua narrativa em torno de três "protagonistas" (as aspas são intencionais, na medida em que eles não se encontram sozinhos nessa rotina desesperadora que eles chamam de vida!): são eles Boab (Stephen McCole), Johnny (Kevin McKidd) e Coco (Ewen Bremner, que por sinal trabalhou com Boyle em Trainspotting). 

Boab vê sua vida virar um caos após ser expulso do time de futebol no qual jogava e ser abandonado pelos pais e pela namorada. E quando se depara com a figura de Deus, dizendo que vai lhe transformar numa reles mosca, pois ele precisava aprender com seus próprios erros da pior maneira possível, ele entende que o inferno de fato ainda não começou. Já Kevin precisa lidar com um casamento frustrado com uma mulher de vida fácil, a última pessoa na face da terra indicada para iniciar um relacionamento desses. Pior: eles tiveram um filho. Enquanto isso, Coco, um viciado em ácido, se depara com um revés terrível em sua jornada quando um raio cai sobre sua cabeça ao mesmo tempo que atinge um bebê recém-nascido e seus cérebros mudam de lugar. Agora, vê seu intelecto preso a uma criança pequena enquanto seu corpo vaga pelas ruas, conduzido pelo cérebro da criança (esta é, certamente, a mais louca do trio de histórias). 

Para aqueles que não são afeitos a filmes em episódios, talvez o clima proposto pelo longa incomode em alguns momentos, pelo seu teor pessimista (embora o filme tenha um senso de humor bastante ácido). Até as músicas que acompanham a vida de cada protagonista dialogam no sentido de mostrarem que são pessoas que convivem com o niilismo e a falta de expectativas para um futuro melhor. Mas enfatizo: não se trata de uma trama autodestrutiva. Longe disso. Há, inclusive, quem consiga enxergar a película como uma grande comédia de humor negro. 

No final das contas, o que sobra para os espectadores mais interessados no gênero paranoia, é uma interessante reflexão sobre o mundo caótico no qual estamos vivendo atualmente. Mais do que outros filmes mais famosos sobre o tema vício, como por exemplo Drugstore Cowboy, de Gus Van Sant e New Jack City - a gangue brutal, de Mario Van Peebles, o que percebo aqui é o resultado final de anos e anos de carências humanas substituídas por "curas milagrosas" (no caso, o ácido, o casamento e a procura de muletas existenciais - família, namoro, amigos, etc - para suprir uma falta de interesse em tomar as rédeas da própria vida. 

Boab, Johnny e Coco, têm em sua gênese, um mesmo princípio ativo: o de empurrar suas vidas com a barriga, pois não tem coragem ou mesmo forças para buscar algo melhor. E o resultado disso é a eterna procura por paliativos e mecanismos de defesa que justifiquem suas inércias. 

Nada mais século XXI do que isso, não é mesmo? (e olha que o filme é do século passado!). 

P.S: após terminar este artigo, me lembro de que o cantor Michael Jackson no álbum History - past, present and future gravou uma canção com o mesmo título. Não há relação alguma entre ambos (embora Michael ao longo da sua carreira tivesse que conviver com muitos sanguessugas e "viciados" pelo poder). 

quinta-feira, 16 de julho de 2020

O time dos sonhos


Era 1992 e em Barcelona, na Espanha, acontecia a XXV edição dos jogos olímpicos da era moderna. A pira fora acendida durante a cerimônia de abertura por um atleta que atirou uma flecha em chamas e, aqui no Brasil, houve uma polêmica discussão, pois muitos acreditavam que a flecha havia ultrapassado a pira (e que ela havia sido acendida eletronicamente). Porém, nada que afetasse o brilho do espetáculo. 

E entre os muitos atletas que se destacaram nessa edição - e eu, por conseguinte, esperava por grandes novidades já que adorara a edição anterior, realizada quatro anos antes em Seul, na Coréia do Sul - houve um grupo de homens extraordinários que conseguiram, por um momento, me provar até mesmo que seriam capazes de voar (se quisessem de fato). 

Refiro-me à seleção norte-americana masculina de basquete, que ficou eternizada como Dream team (ou, em português, o "time dos sonhos"). Detalhe importante: era a primeira vez na história das olimpíadas que atletas profissionais, oriundos da NBA, podiam disputar a competição. Até então, somente jogadores amadores ou da liga universitária poderiam representar suas seleções. E teve quem visse essa articulação promovida pela FIBA (a federação que rege o esporte) como puro oportunismo, pois poderia levar o basquete made in USA a um patamar jamais igualado por qualquer outro país. 

Polêmicas e dissensões à parte, eles chegaram e promoveram a maior revolução da história do basquete olímpico até hoje. E quem eram eles? Christian Laettner, David Robinson, Patrick Ewing, Larry Bird, Scottie Pippen, Michael Jordan, Karl Malone, Clyde Drexler, John Stockton, Chris Mullin, Charles Barkley e Magic Johnson. Só a estrutura criada para fazer a segurança da equipe já renderia um blockbuster de cinema na linha action movie. Eles não ficaram hospedados na vila olímpica, mas em quartos de hotel exclusivos e caríssimos. A desculpa dada na época pela delegação é que eles queriam evitar tragédias como a ocorrida nas olimpíadas de Munique em 1972, quando 11 atletas foram mortos num dos atentados terroristas mais famosos da história mundial (e para quem ficou curioso, procurem pelo filme Munique, do diretor Steven Spielberg, e sabiam mais detalhes).   

Os EUA começam sua campanha rumo ao título e logo de cara deixam claro sua discrepância e talento em relação aos demais times. Abrem os trabalhos metendo um humilhante 116 x 48 em Angola, seguidos de um 103 x 70 na seleção da Croácia (que, pasmem, faria a final com os americanos!). 

Completando a primeira fase, seguiram-se um 111 x 68 na Alemanha, 127 x 83 na seleção brasileira (e cabe aqui um breve aparte: eu me lembro até hoje do final desse jogo, quando as lendas americanas fizeram questão de cumprimentar nosso ídolo maior, Oscar Schmidt. Não é à toa que ele faz parte do Hall da fama do basquetebol!) e, finalmente, 122 x 81 na Espanha (que, naqueles tempos, ainda não tinha a força esportiva que tem atualmente).

Obs: nunca me esqueço de uma jogada específica - não me recordo exatamente em que partida ocorreu - em que Magic Johnson finge que vai enterrar a bola na cesta, joga-a para trás e eis que surge Michael Jordan "quase voando" e a enterra de forma devastadora, levando a plateia ao delírio. É uma das minhas lembranças eternas de todas as olimpíadas que assisti. 

Na segunda fase da competição, os EUA mantém o ritmo avassalador e provam por a mais b que não havia outra seleção que se igualasse a eles. Na quartas, enfiam 115 x 77 em Porto Rico; na semifinal, emplacam um 127 x 76 na Lituânia (que contava com o gênio Sabonis em seu time) e repetem o massacre na Croácia (117 x 85 na finalíssima). Resultado: medalha de ouro mais do que garantida e merecida. E eu, claro, preso ao sofá da sala boquiaberto em todas as partidas. 

Mais do que o resultado em si, assistir a esses homens jogando foi um espetáculo à parte, com direito a assistências eletrizantes, enterradas inesquecíveis, voos antológicos e um senso de organização e marcação descomunal. O técnico do time, Chuck Daly, chegou a afirmar no período que treinar aquela seleção era como "ter Elvis e Beatles juntos no palco". E ele realmente não estava exagerando! 

Em poucas palavras (se é possível explicar algo assim): se você não viu a seleção de 1992 jogar porque não era nascido ou não curte basquete, não faz a menor ideia do que perdeu. Foi um momento único, que não se repetiu, embora a delegação americana tenha tentado, mandando grandes equipes nas olimpíadas de Atlanta, em 1996 e Sydney, em 2000. Porém, quando uma das equipes posteriores levou 100 pontos de um adversário na mesma partida, viu-se claramente que o encanto, a magia, havia se perdido de vez. 

Ou seja: quem viu, viu; já quem não viu, só pode se contentar mesmo com vídeos antigos no you tube e no vimeo (o que, claro, nunca será a mesma coisa). 

Até hoje, confesso, aguardo por uma nova geração tão brilhante quanto aquela de Barcelona. E me parece muito longe ainda o dia em que aquilo tudo se repetirá. Contudo,  mesmo os jogos olímpicos, com o passar dos anos, ganharam uma outra conotação para mim (mais política, vamos dizer assim) e confesso que não vejo mais a competição com o mesmo prazer. O que é uma pena. 

Mas mesmo assim, como é bom saber que eu fui testemunha ocular de tudo aquilo. Dá até vontade de gritar, berrar, pedindo para que aqueles dias nunca acabassem... Volta, Dream team! Volta! Pelo amor de Deus!!! O basquete nunca mais foi a mesma coisa. 

domingo, 12 de julho de 2020

A fama é passageira


Eu nunca entendi - e provavelmente nunca entenderei - a fixação da humanidade com a fama. Sempre a considerei transitória, um estágio dentro da existência "de algumas pessoas", algo com prazo de validade definido. E qualquer pessoa que construa sua vida em torno dela sempre me pareceu, à primeira vista, um louco, um insano total. Digo isso porque faz parte disso que chamamos de vida os altos e baixos, os percalços. Do contrário, não aprenderemos nada em nossa passagem por esse plano. 

Infelizmente esse primeiro parágrafo é o suficiente para que muitos adoradores desse meio por vezes mesquinho me vejam como um inimigo, um traidor ou um derrotado. Mas honestamente... Eles não me assustam mais. Na verdade, são dignos de pena isso sim. 

E por que decidi falar sobre isso justo hoje? Porque o canal brasil (a cada dia me torno mais fã de sua programação!) passou essa semana na mostra In-Edit Brasil, dedicada à documentários musicais, o interessantíssimo e elucidativo Strike a pose - a vida após Madonna, dos diretores Ester Gould e Reijer Zwaan. E fez com que eu, mais do que nunca, prefira permanecer afastado do mundo das celebridades efêmeras. 

Strike a pose nos traz a história - melhor dizendo: o reencontro após duas décadas e meia - de Luis Camacho, Jose Gutierrez, Kevin Alexander Stea, Salim Gauwloos, Carlton Wilburn, Oliver Crumes Jr. e Gabriel Trupin, todos eles membros da trupe de dança da cantora Madonna durante a turnê Blond Ambition em 1991 (que gerou também o documentário Na cama com Madonna, do diretor Alek Keshishian). 

A turnê em questão é até hoje considerada o ponto alto da carreira da diva do pop e levou seus dançarinos a um patamar nunca antes visto. Eles eram tão exaltados no meio quanto a própria cantora. E até aí, nenhum problema nisso. Afinal de contas, eram artistas de uma extrema competência e habilidade. Contudo, no mundo do show business é preciso estar preparado para o dia seguinte (e acreditem: por mais que os artistas não queiram, ele sempre dá as caras). 

A temporada com Madonna, e todos os luxos e privilégios possíveis e imagináveis, passa e o que vêm a seguir é o ostracismo e um hiato que se prolongou por praticamente toda a vida deles. E, para algumas pessoas que não entendem nada do ramo, parece chegar aquele momento em que eles, os dançarinos, precisam "ser gratos por tudo o que conquistaram e aceitar a derrota". Falar é fácil. Agora pergunte aos dançarinos. 

Resultado: brigas nos bastidores, processos, o uso de drogas, a AIDS (que dizimou grande parte daquela geração), o fato de serem quase todos homossexuais num país que simplesmente os abominava - e abomina até hoje, a falta de perspectiva para prosseguir a carreira num meio tão competitivo como esse, enfim, as desilusões típicas de quem viu o paraíso de perto e agora não consegue um novo trabalho no setor. Ou em outras palavras: o sonho acabou, e agora? O que fazer a seguir?

A parte dos testemunhos dos dançarinos - menos o de Gabriel, já falecido - lembra em muitos aspectos o dos atores de Cidade de Deus - 10 anos depois, de Cavi Borges e Luciano Vidigal. Eles também viveram uma revolução do dia para a noite com o filme homônimo de Fernando Meirelles, que chegou a concorrer a quatro categorias no Oscar, mas logo a seguir precisaram conviver com a triste realidade de que, para muitos do elenco, não houve propostas posteriores de trabalho. E teve até gente que entrou para o mundo do crime. Detalhe: ainda por cima advogava contra eles o fato de não serem, naquela época, atores profissionais. O que dificulta ainda mais o processo. 

E bem ou mal, a maioria dos dançarinos de Madonna tinha formação em balé, em dança clássica (salvo apenas um deles, cria do hip-hop). 

Entretanto, isso não foi suficiente para mantê-los no palco. E olha que tentaram! E é justamente na frustração por não conseguir essa segunda chance que nos deparamos com uma interessante reflexão sobre o legado da fama e a confirmação da frase que já se tornou clichê no meio artístico: a fama é passageira. E vou além: ela, a fama, nunca foi sinônimo de carreira. Pena que muitos não consigam entender isso!

O documentário termina num tom de acerto de contas entre esses homens talentosos que tiveram de lutar duramente com a vida e apanharam muito. E o que se percebe é que eles, enfim, entenderam sua participação nessa indústria cultural. Eles tiveram o seu propósito, deram o seu melhor, atingirem o seu ápice e agora precisam sair de cena. Because the show must go on. 

Enquanto os créditos finais são exibidos, fico me perguntando o que a cantora achou do filme. Ela não é totalmente exaltada no documentário e acredito piamente que seus produtores na época não gostaram nada de determinadas declarações dadas aqui. Eu realmente gostaria de saber qual a sua opinião sobre esse projeto. 

Mas enfim... Não se realiza um filme com essa intenção sem, de alguma maneira, deixar pontas soltas. E isso também faz parte do show business.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Tudo ao vivo o tempo todo


Certamente o maior legado que o Coronavírus trouxe para a sociedade foi a proliferação - e, sob certa medida - a banalização das apresentações ao vivo (ou, como costumamos chamar popularmente, as lives). Pronto. Com estas quatro linhas já criei território suficiente para que meus detratores me acusem de insuportável, mau caráter, entre outros "elogios modernos". 

Porém, não importa o quanto eles reclamem. Infelizmente minha percepção sobre as apresentações ao vivo mudará depois desta quarentena. E é preciso que eu me explique. 

Faço parte de uma geração que viu o Rock in Rio e que se lastimou de não poder estar presente no festival de Woodstock, apoteose máxima do quesito show. Nada superou Joe Cocker cantando "with a little help from my friends", clássico dos Beatles, ou Jimi Hendrix dedilhando sua guitarra ao som de "star-spangled banner" (ou mesmo colocando fogo nela, no hoje famigerado Monterey Pop). Isso sem contar Elvis Presley, Frank Sinatra, os doces bárbaros, Novos baianos, Renato Russo, Cazuza, etc etc etc (eu sei... são muitos etcs). 

Corta para: século XXI, uma era onde, incrivelmente, quase todos se consideram artistas ou celebridades. E não bastasse isso foi acometida por uma crise pós-pandemia que retirou de muita gente seu ganha-pão. Resultado: vamos para a internet apresentar alguma coisa, qualquer coisa. E se pudermos, vamos faturar com isso.

E tem live sobre praticamente tudo: cantor sertanejo se embebedando gratuitamente (e chamando isso de politicamente incorreto), bandas de rock, cantores de forró, palestras motivacionais, debates de cunho político, festivais de cinema online na linha #fique em casa, espetáculos teatrais polêmicos e muito, muito mais. 

E a imagem que me fica gravada na cabeça durante tantas lives que presenciei foi a dos QR codes pedindo doações para famílias que perderam sua renda. Contudo, nos bastidores, o que se vê também são muitos patrocinadores. Sim, meus amigos. Muitos não estão ali por caridade. E já existem aqueles, acreditem!, que viram no filão um grande mercado a ser explorado no futuro. Eu prefiro acreditar em "expansão da carreira". 

Acredito sinceramente que o mercado de entretenimento mudará suas diretrizes em vários setores. As peças teatrais de menor orçamento, que não vivem de patrocínios e leis de incentivo para se custear, verão no formato live uma boia salva-vidas. O streaming ganha mais força com festivais online de cinema. Até as exposições ganharam sua versão à distância (o que vem gerando atritos no mercado de arte). 

Mas como dirão muitos gestores ou formadores de opinião lá na frente: "são outros tempos, e é preciso diversificar". 

E desse fenômeno e exagero das apresentações ao vivo nasce uma cultura efêmera, de ideias que não se repercutem, que morrem na praia muito antes do tempo, que foram criadas previamente para ser instantâneas. Uma pena. Produzir cultura já foi bem melhor do que isso. 

Ano passado um colega meu, cansado desses artistas de plástico, dessas celebridades efêmeras que ganham projeção sem o menor critério, me perguntou o que aconteceu com nossa cultura que não era mais capaz de produzir talentos como Gilberto Gil, Milton Nascimento, José Celso Martinez Corrêa, Chico Buarque, Débora Colker, Plínio Marcos, entre tantas feras (a lista que ele me citou era imensa). Eu parei por um instante, levei em consideração o que era a sociedade contemporânea, e lhe respondi com uma pergunta: "você acha realmente que a atual sociedade merece uma geração artística melhor do que essa que aí está?". E ele se calou.

Vejo em muitas das pessoas - não todas, é lógico, pois há sempre exceções inteligentes - que produzem essas atuais lives uma corroboração desse pensamento. 

Vivemos numa era em que o lucro diz mais sobre o país em que vivemos do que o talento. Em outras palavras: o importante é faturar e se mostrar o tempo todo (que o diga Anitta!). E a consequência disso é uma cultura pobre, artificial, feita para melhorar contas bancárias e status sociais. E mais uma vez repito: uma pena. Que tenha de ser desse jeito. 

E pensar que ainda tem gente que acredita que a solidariedade vai proliferar depois da pandemia... Pobres cegos dessa pós-modernidade!

segunda-feira, 6 de julho de 2020

O gênio das trilhas sonoras


Em meus comentários e artigos sobre cinema na internet costumo dizer, reiteradamente, que sétima arte é ritmo. Se você (no caso, a equipe de filmagem) não mantém a cadência sob controle perde completamente o interesse do espectador. E ele, por sua vez, nunca mais terá a mesma confiança no seu trabalho, não importa o quanto você insista. E sempre vi na música, nas trilhas sonoras, um papel fundamental nesse sentido. Uma boa música, na hora e lugar certos, diz mais sobre o cinema em alguns momentos do que a própria narrativa em si. Mais: chega a se apossar da história. 

Por que estou falando tudo isso? Porque, infelizmente, os fãs de cinema perderam aquele que, para mim, é o grande gênio da história das trilhas sonoros. Falo de Ennio Morricone, que nos deixou aos 91 anos, por consequência de uma queda que ele sofreu em casa, levando a fratura do fêmur. 

É dificílimo escrever este epitáfio, pois é praticamente impossível definir em tão poucas palavras o que foi Ennio. Com ele aprendi que um simples assobio pode ser de uma grande exuberância. Capaz de aliar o suspense ao jazz sem perder a ternura ou mesmo o brilhantismo técnico. E principalmente: transformou o western, o gênero cinematográfico pelo qual mais ficou conhecido, numa obra de arte de proporções gigantescas e, até hoje, indecifráveis. 

Contudo eu disse acima que o western foi o gênero pelo qual ele ficou mais famoso, não sua única matéria-prima. Trabalhou com diretores consagrados em todos os gêneros possíveis. Bernardo Bertolucci, Giuseppe Tornatore, Brian de Palma, Roland Joffé, até mesmo Quentin Tarantino (e a priori, essa pode ser uma combinação um tanto inusitada), todos tiveram o privilégio de ver a música de Morricone em seus filmes. 

Certa vez, ao ir a uma edição do Festival do Rio no Odeon, durante a exibição de um filme que tinha em sua trilha sonora a música de Ennio Morricone, um senhor de seus 70 e tantos anos que sentara perto de mim me falou: "às vezes, quando ouço as canções desse moço (referindo-se ao compositor), tenho a sensação de estar adentrando as portas do paraíso, tamanha a grandiloquência e a sensação de plenitude que a sua música me transmite". 

Foi a melhor definição sobre o mestre Ennio Morricone que eu ouvi até hoje. Suas músicas tinham uma aura de cântico, pareciam nos conduzir rumo ao infinito, falavam de fé, de esperança, faziam com que pensássemos num mundo melhor (e não essa grande zona que virou o planeta terra nos últimos anos). E só mesmo um mestre da música - e do ritmo - poderia nos entregar uma obra desse tamanho. 

Sempre ficarei na dúvida sobre seu melhor trabalho até hoje (foram mais de quinhentos, e eu sinceramente recomendo aos leitores deste texto que passem pelo seu perfil no IMDb e conheçam sua obra, que é vastíssima). A trilha de Os intocáveis, de Brian de Palma, mexe com a minha cabeça até hoje. Me sinto meio que invadido por ela, por sua agressividade contida. E simplesmente lembrar que ele é o responsável pela música de obras-primas como Era uma vez na América, de Sérgio Leone, 1900, de Bertolucci e Cinema paradiso, de Tornatore, já é motivo o suficiente para não abandonar as salas de cinema nunca. 

Entretanto, todas as vezes que outras pessoas - também cinéfilos de carteirinha como eu - me perguntaram qual a minha favorita eu dei uma resposta dupla: A missão, de Roland Joffé (um longa o qual eu estou querendo rever já faz um tempo, mas não tive oportunidade ainda) e, claro, o eterno Três homens e um conflito, também de Leone. E ratifico o que mencionei no terceiro parágrafo: eu nunca mais vou me esquecer daquele assovio!

O oscar, a meu ver, não o reconheceu realmente da maneira como merecia. Apenas um de carreira, por Os oito odiados, em 2016, depois de tantas relíquias apaixonantes? Sacanagem! Vejo o compositor como um John Ford da música, era para ser um dos maiores nomes reconhecidos no segmento, ao lado de John Williams. E no entanto... Como eu sempre digo: coisas de Oscar, que eu sempre vi como um prêmio tendencioso. Pelo menos os fãs, a crítica especializada e a vida souberam lhe colocar no lugar que lhe era de direito.  

Dito tudo isto, só nos resta o consolo de saber que sua obra é eterna e de fácil localização em tempos de internet (ao contrário da época em que precisávamos comprar vinis e cassetes e nem sempre encontrávamos o que queríamos nas lojas). Salve you tube e spotify, vocês são demais!

E quase ia me esquecendo: fica com Deus, mestre! A sua música é para sempre!

sábado, 4 de julho de 2020

Tubarões à espreita


Eu ligo a tv. Eu ouço as estações de rádio. Eu vejo as ruas grafitadas, os outdoors pichados. Eu testemunho as brigas nas esquinas, nos botequins, nos supermercados. Eu acompanho os desabafos e manifestos nas redes sociais. E, no final das contas, após presenciar tudo isso, o que me fica como reflexão é o sentimento de que estamos perdendo a batalha. Mais do que isso: estamos perdendo a nossa própria lucidez. Parece que deixamos de ser coletivos, de sermos plurais. Parece não existir mais a tal humanidade. 

Somos, isso sim, mercadorias. Baseadas em preços, tarifas, valores estratosféricos. Em suma: somos números, às vezes estatísticas. E não parece haver, pelo menos à primeira vista, uma luz no final do túnel. 

Piedade, último filme do sempre ótimo diretor pernambucano Cláudio Assis - de filmes extraordinários como Amarelo manga e Febre do rato -, me fez pensar ainda mais profundamente sobre esse sentimento de niilismo que acometeu a sociedade brasileira nos últimos anos (e olha que a maior parte dessa mesma sociedade sequer se apercebeu disso!). Quando os créditos finais começam a passar na tela, me sinto devastado por uma dor invisível, porém pungente. E ela me faz bambear, me tira do eixo. E, cá entre nós, eu precisava (e muito) disso. 

Em Piedade nos deparamos com uma cidade litorânea que vive um embate regido por forças extremamente desiguais: de um lado, a poderosa companhia Petrogreen, com seus tentáculos ferozes, capaz de destruir pouco a pouco o meio ambiente da região, deixando os moradores à míngua. E não bastasse isso, ainda oferece a esses mesmos moradores uma compensação ridícula, com direito a realocar (leia-se: expulsar) a população para um lugar bem distante dali. Do outro, a família Bezerra, que possui um pequeno bar na região, que sobrevive com enorme dificuldade. 

O responsável - ou mediador - que deve fazer com que essa "negociação" renda frutos é o inescrupuloso Aurélio (Matheus Nachtergaele). E mais do que um mero representante da empresa, ele é o retrato vivo do que significa a classe dominante desse país: um homem evasivo, com um discurso rebuscado e inverossímil, apto as mais infelizes práticas para conseguir o que o seu empregador deseja. Pois o que importa mesmo, no fim, é que as corporações vençam a batalha. 

Enquanto isso, reféns de um sistema podre, a família Bezerra  capitaneada pela matriarca Carminha (Fernanda Montenegro) e seu filho Omar Sharif (Irandhir Santos), que se recusa terminantemente a vender o terreno, lutam desesperadamente contra a moral inescrupulosa daqueles que querem destruir de vez o local. Contudo, é uma batalha que parece já nascer inglória em suas raízes. 

Percebendo que sua abordagem não está surtindo efeito, Aurélio parte para a velha filosofia do "dividir para conquistar" e após descobrir um segredo do passado desta família, investe de maneira feroz nessa partilha, usando a única arma que conhece: o dinheiro e o seu poder de sedução junto aos mais fracos. 

Nesse momento a narrativa de Piedade lembra um pouco o também excelente Aquarius, de Kléber Mendonça Filho. Ambas trabalham bem a ideia da destruição familiar para atingir objetivos escusos. 

E esses homens de negócios, que não passam de meros tubarões do mercado corporativo, apelam para qualquer sentimento dúbio que possa aparecer para confundir os menos favorecidos. Detalhe: há uma correlação que achei muito inteligente entre os tubarões marítimos, aqueles que impedem que os cidadãos da localidade possam sequer entrar no mar para surfar e os "tubarões de carne e osso", corpo e voz do que conhecemos ordinariamente como capitalismo selvagem. 

Ambos estão à espreita, aguardando o momento exato para dar o bote e transformar vidas simples em objetos a serem descartados. 

Um pequena confissão típica deste cinéfilo e crítico por vaidade excessiva: quando vi os créditos de abertura do filme, não sei por que cargas d'água veio-me à mente a música "blues da piedade", consagrada na voz de Cazuza. E achei - na verdade, continuo achando - que ela dialoga de forma intensa com o longa. Principalmente em seu refrão poderoso: "vamos pedir piedade, senhor piedade!, pra essa gente careta e covarde". E assim como na canção, os intragáveis donos do poder também se comportam como "insetos em volta da lâmpada". 

O problema é que aqui, no filme de Cláudio, a lâmpada é bem maior: ela corresponde a todo um Estado, quiçá um país, que vê suas riquezas serem vilipendiadas dia a dia, e nada pode fazer para mudar esta situação. 

O filme termina num tom de desesperança e nos faz encarar de forma nua e crua o modus operandi desta covardia secular, deste país onde todos - ou quase todos - preferem ter um preço a uma identidade ou caráter. E não fazemos a menor ideia de onde iremos parar num futuro próximo. 

P.S: eu nunca vou entender o espectador de cinema no Brasil. Malha sua própria produção audiovisual a torto e a direito, mesmo quando ela realiza grandes êxitos como este filme aqui. E quando enfim comparece às salas de exibição para ver algo Made in Brasil é sempre uma comédia babaca com Ingrid Guimarães ou Leandro Hassum ou um favela movie. Depois o povo daqui reclama do rótulo de alienado que volta e meia a crítica especializada lhes impõe!

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Ode ao silêncio e à reflexão


A quarentena começou e todo mundo acreditava que era coisa de poucas semanas, que logo, logo a tal "gripezinha" iria embora e nos devolveria a paz e o conforto da rotina. Infelizmente a realidade, que é bem outra, desmentiu os esperançosos em excesso. A Covid-19 continua por aí, matando. E a decisão de como lidar com ela é sua, meu caro leitor (e minha também, é claro!). 

Nós devemos decidir que escolha fazer, como enfrentá-la. Fugir, encarar de frente, fingir que ela não existe, repetir o mantra de certas pessoas que preferem acreditar que "tudo não passa de uma grande conspiração", etc, etc, etc. Enquanto uns aguardam, outros escrevem, há aqueles que fazem lives na internet. E tem quem produza boa música. Esse último caso foi a escolha da cantora Adriana Calcanhotto (que eu adoro desde sempre). 

E como resultado desse "exílio forçado" ela cria o genial , todo composto, gravado e mixado durante sua reclusão. Espertinha essa moça!

São míseras 9 canções, menos de 30 minutos de áudio, mas de um deleite sem igual. E o mais importante: testemunho oral de tudo o que estamos vivendo nesse exato momento no país, por causa da pandemia e também de nossas autoridades fajutas. 

Detalhe: há um sentimento legítimo de aprender com a solidão (na verdade, é o tema do álbum), de transpormos esse período a uma grande reflexão, que permeia as faixas do álbum. Ele está cheio de frases pontuais, que servem como consciência para os ouvintes que se recusam a entender o tamanho da crise que enfrentamos. 

Que o diga a faixa de abertura, "ninguém na rua" e a mensagem que ela passa quando diz a nós eu e você, na imaginação. Não é momento para encontros muito menos aglomerações e sim de guardar na memória nossos entes queridos e esperar um momento mais propício para um reencontro. 

Com a dupla "era só" e "eu vi você sambar", ela recorre ao piano jazzístico e ao nosso ritmo mais popular para falar de dificuldade, de amor à distância (eu amava por nós, sozinha) e também de impaciência (eu vivo querendo te ver outra vez). É quase um desabafo para os inconsequentes, os que desdenham da doença. 

Pois o que temos neste exato momento, a própria Adriana diz, são apenas janelas (suportes que vêm ganhando fama nos últimos meses ao redor do mundo) e também panelas. Aliás, a canção terminando num grande panelaço - referência às manifestações contra o governo - é uma tirada de gênio. E logo na faixa seguinte ela mete o dedo na cara de corruptos e seus crimes de longa data. Com "sol quadrado", a canção mais política do álbum, ela realiza quase que um ensaio sobre a podridão que rege o país, mas um ensaio poético, muito bem construído, como só ela sabe fazer. E dá um aviso para os pilantras que acham que sempre irão escapar da cadeia: levanta que agora é chegado o teu dia. 

Mas minha preferida de todo o disco é "bunda lê lê" ou, popularmente, como acabará ficando conhecida, "o funk da quarentena". Se puder, procure o clipe, que eu vi no facebook, e é transgressão pura! Aqui a cantora e compositora dá um extraordinário puxão de orelha nos funkeiros e no seu universo gratuito e devasso. Enquanto nos bailes as mulheres sentam vocês sabem bem para o quê, aqui ela faz um convite diferente, mais importante: senta a bunda e estuda, senta a bunda e lê, senta a bunda e vai à luta. Em outras palavras: pede que acordemos, que paremos com tanta futilidade. 

Ao final, com "corre o munda", uma homenagem a Coimbra, em Portugal (onde a cantora vive atualmente). É praticamente uma faixa bônus, para relaxarmos um pouco depois de tantas dicas preciosas. 

, no final das contas, é uma ode ao silêncio e à reflexão, algo do qual o povo brasileiro nunca gostou (pois está acostumado mesmo a tumultos, ruído em excesso e festas intermináveis). Pode ser visto também como um inteligente kit de sobrevivência para tempos amargos. Depende - assim como disse lá no segundo parágrafo acerca de como lidar com a pandemia - de como você prefira enxergar o trabalho musical proposto. Que é magnífico em suas intenções, não há a menor dúvida. 

Para quem acha que a MPB acabou e se resume a Anittas, Ludmillas e sertanejos universitários, proponho que dêem uma passadinha no spotify ou em qualquer outra agregadora de conteúdo para conferir essa pequena relíquia. 

Sim, ainda existe vida inteligente na música popular brasileira. O problema é a preguiça e o mau gosto de certos fãs...