A quarentena começou e todo mundo acreditava que era coisa de poucas semanas, que logo, logo a tal "gripezinha" iria embora e nos devolveria a paz e o conforto da rotina. Infelizmente a realidade, que é bem outra, desmentiu os esperançosos em excesso. A Covid-19 continua por aí, matando. E a decisão de como lidar com ela é sua, meu caro leitor (e minha também, é claro!).
Nós devemos decidir que escolha fazer, como enfrentá-la. Fugir, encarar de frente, fingir que ela não existe, repetir o mantra de certas pessoas que preferem acreditar que "tudo não passa de uma grande conspiração", etc, etc, etc. Enquanto uns aguardam, outros escrevem, há aqueles que fazem lives na internet. E tem quem produza boa música. Esse último caso foi a escolha da cantora Adriana Calcanhotto (que eu adoro desde sempre).
E como resultado desse "exílio forçado" ela cria o genial Só, todo composto, gravado e mixado durante sua reclusão. Espertinha essa moça!
São míseras 9 canções, menos de 30 minutos de áudio, mas de um deleite sem igual. E o mais importante: testemunho oral de tudo o que estamos vivendo nesse exato momento no país, por causa da pandemia e também de nossas autoridades fajutas.
Detalhe: há um sentimento legítimo de aprender com a solidão (na verdade, é o tema do álbum), de transpormos esse período a uma grande reflexão, que permeia as faixas do álbum. Ele está cheio de frases pontuais, que servem como consciência para os ouvintes que se recusam a entender o tamanho da crise que enfrentamos.
Que o diga a faixa de abertura, "ninguém na rua" e a mensagem que ela passa quando diz a nós eu e você, na imaginação. Não é momento para encontros muito menos aglomerações e sim de guardar na memória nossos entes queridos e esperar um momento mais propício para um reencontro.
Com a dupla "era só" e "eu vi você sambar", ela recorre ao piano jazzístico e ao nosso ritmo mais popular para falar de dificuldade, de amor à distância (eu amava por nós, sozinha) e também de impaciência (eu vivo querendo te ver outra vez). É quase um desabafo para os inconsequentes, os que desdenham da doença.
Pois o que temos neste exato momento, a própria Adriana diz, são apenas janelas (suportes que vêm ganhando fama nos últimos meses ao redor do mundo) e também panelas. Aliás, a canção terminando num grande panelaço - referência às manifestações contra o governo - é uma tirada de gênio. E logo na faixa seguinte ela mete o dedo na cara de corruptos e seus crimes de longa data. Com "sol quadrado", a canção mais política do álbum, ela realiza quase que um ensaio sobre a podridão que rege o país, mas um ensaio poético, muito bem construído, como só ela sabe fazer. E dá um aviso para os pilantras que acham que sempre irão escapar da cadeia: levanta que agora é chegado o teu dia.
Mas minha preferida de todo o disco é "bunda lê lê" ou, popularmente, como acabará ficando conhecida, "o funk da quarentena". Se puder, procure o clipe, que eu vi no facebook, e é transgressão pura! Aqui a cantora e compositora dá um extraordinário puxão de orelha nos funkeiros e no seu universo gratuito e devasso. Enquanto nos bailes as mulheres sentam vocês sabem bem para o quê, aqui ela faz um convite diferente, mais importante: senta a bunda e estuda, senta a bunda e lê, senta a bunda e vai à luta. Em outras palavras: pede que acordemos, que paremos com tanta futilidade.
Ao final, com "corre o munda", uma homenagem a Coimbra, em Portugal (onde a cantora vive atualmente). É praticamente uma faixa bônus, para relaxarmos um pouco depois de tantas dicas preciosas.
Só, no final das contas, é uma ode ao silêncio e à reflexão, algo do qual o povo brasileiro nunca gostou (pois está acostumado mesmo a tumultos, ruído em excesso e festas intermináveis). Pode ser visto também como um inteligente kit de sobrevivência para tempos amargos. Depende - assim como disse lá no segundo parágrafo acerca de como lidar com a pandemia - de como você prefira enxergar o trabalho musical proposto. Que é magnífico em suas intenções, não há a menor dúvida.
Para quem acha que a MPB acabou e se resume a Anittas, Ludmillas e sertanejos universitários, proponho que dêem uma passadinha no spotify ou em qualquer outra agregadora de conteúdo para conferir essa pequena relíquia.
Sim, ainda existe vida inteligente na música popular brasileira. O problema é a preguiça e o mau gosto de certos fãs...
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