Em meus comentários e artigos sobre cinema na internet costumo dizer, reiteradamente, que sétima arte é ritmo. Se você (no caso, a equipe de filmagem) não mantém a cadência sob controle perde completamente o interesse do espectador. E ele, por sua vez, nunca mais terá a mesma confiança no seu trabalho, não importa o quanto você insista. E sempre vi na música, nas trilhas sonoras, um papel fundamental nesse sentido. Uma boa música, na hora e lugar certos, diz mais sobre o cinema em alguns momentos do que a própria narrativa em si. Mais: chega a se apossar da história.
Por que estou falando tudo isso? Porque, infelizmente, os fãs de cinema perderam aquele que, para mim, é o grande gênio da história das trilhas sonoros. Falo de Ennio Morricone, que nos deixou aos 91 anos, por consequência de uma queda que ele sofreu em casa, levando a fratura do fêmur.
É dificílimo escrever este epitáfio, pois é praticamente impossível definir em tão poucas palavras o que foi Ennio. Com ele aprendi que um simples assobio pode ser de uma grande exuberância. Capaz de aliar o suspense ao jazz sem perder a ternura ou mesmo o brilhantismo técnico. E principalmente: transformou o western, o gênero cinematográfico pelo qual mais ficou conhecido, numa obra de arte de proporções gigantescas e, até hoje, indecifráveis.
Contudo eu disse acima que o western foi o gênero pelo qual ele ficou mais famoso, não sua única matéria-prima. Trabalhou com diretores consagrados em todos os gêneros possíveis. Bernardo Bertolucci, Giuseppe Tornatore, Brian de Palma, Roland Joffé, até mesmo Quentin Tarantino (e a priori, essa pode ser uma combinação um tanto inusitada), todos tiveram o privilégio de ver a música de Morricone em seus filmes.
Certa vez, ao ir a uma edição do Festival do Rio no Odeon, durante a exibição de um filme que tinha em sua trilha sonora a música de Ennio Morricone, um senhor de seus 70 e tantos anos que sentara perto de mim me falou: "às vezes, quando ouço as canções desse moço (referindo-se ao compositor), tenho a sensação de estar adentrando as portas do paraíso, tamanha a grandiloquência e a sensação de plenitude que a sua música me transmite".
Foi a melhor definição sobre o mestre Ennio Morricone que eu ouvi até hoje. Suas músicas tinham uma aura de cântico, pareciam nos conduzir rumo ao infinito, falavam de fé, de esperança, faziam com que pensássemos num mundo melhor (e não essa grande zona que virou o planeta terra nos últimos anos). E só mesmo um mestre da música - e do ritmo - poderia nos entregar uma obra desse tamanho.
Sempre ficarei na dúvida sobre seu melhor trabalho até hoje (foram mais de quinhentos, e eu sinceramente recomendo aos leitores deste texto que passem pelo seu perfil no IMDb e conheçam sua obra, que é vastíssima). A trilha de Os intocáveis, de Brian de Palma, mexe com a minha cabeça até hoje. Me sinto meio que invadido por ela, por sua agressividade contida. E simplesmente lembrar que ele é o responsável pela música de obras-primas como Era uma vez na América, de Sérgio Leone, 1900, de Bertolucci e Cinema paradiso, de Tornatore, já é motivo o suficiente para não abandonar as salas de cinema nunca.
Entretanto, todas as vezes que outras pessoas - também cinéfilos de carteirinha como eu - me perguntaram qual a minha favorita eu dei uma resposta dupla: A missão, de Roland Joffé (um longa o qual eu estou querendo rever já faz um tempo, mas não tive oportunidade ainda) e, claro, o eterno Três homens e um conflito, também de Leone. E ratifico o que mencionei no terceiro parágrafo: eu nunca mais vou me esquecer daquele assovio!
O oscar, a meu ver, não o reconheceu realmente da maneira como merecia. Apenas um de carreira, por Os oito odiados, em 2016, depois de tantas relíquias apaixonantes? Sacanagem! Vejo o compositor como um John Ford da música, era para ser um dos maiores nomes reconhecidos no segmento, ao lado de John Williams. E no entanto... Como eu sempre digo: coisas de Oscar, que eu sempre vi como um prêmio tendencioso. Pelo menos os fãs, a crítica especializada e a vida souberam lhe colocar no lugar que lhe era de direito.
Dito tudo isto, só nos resta o consolo de saber que sua obra é eterna e de fácil localização em tempos de internet (ao contrário da época em que precisávamos comprar vinis e cassetes e nem sempre encontrávamos o que queríamos nas lojas). Salve you tube e spotify, vocês são demais!
E quase ia me esquecendo: fica com Deus, mestre! A sua música é para sempre!
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