Eu ligo a tv. Eu ouço as estações de rádio. Eu vejo as ruas grafitadas, os outdoors pichados. Eu testemunho as brigas nas esquinas, nos botequins, nos supermercados. Eu acompanho os desabafos e manifestos nas redes sociais. E, no final das contas, após presenciar tudo isso, o que me fica como reflexão é o sentimento de que estamos perdendo a batalha. Mais do que isso: estamos perdendo a nossa própria lucidez. Parece que deixamos de ser coletivos, de sermos plurais. Parece não existir mais a tal humanidade.
Somos, isso sim, mercadorias. Baseadas em preços, tarifas, valores estratosféricos. Em suma: somos números, às vezes estatísticas. E não parece haver, pelo menos à primeira vista, uma luz no final do túnel.
Piedade, último filme do sempre ótimo diretor pernambucano Cláudio Assis - de filmes extraordinários como Amarelo manga e Febre do rato -, me fez pensar ainda mais profundamente sobre esse sentimento de niilismo que acometeu a sociedade brasileira nos últimos anos (e olha que a maior parte dessa mesma sociedade sequer se apercebeu disso!). Quando os créditos finais começam a passar na tela, me sinto devastado por uma dor invisível, porém pungente. E ela me faz bambear, me tira do eixo. E, cá entre nós, eu precisava (e muito) disso.
Em Piedade nos deparamos com uma cidade litorânea que vive um embate regido por forças extremamente desiguais: de um lado, a poderosa companhia Petrogreen, com seus tentáculos ferozes, capaz de destruir pouco a pouco o meio ambiente da região, deixando os moradores à míngua. E não bastasse isso, ainda oferece a esses mesmos moradores uma compensação ridícula, com direito a realocar (leia-se: expulsar) a população para um lugar bem distante dali. Do outro, a família Bezerra, que possui um pequeno bar na região, que sobrevive com enorme dificuldade.
O responsável - ou mediador - que deve fazer com que essa "negociação" renda frutos é o inescrupuloso Aurélio (Matheus Nachtergaele). E mais do que um mero representante da empresa, ele é o retrato vivo do que significa a classe dominante desse país: um homem evasivo, com um discurso rebuscado e inverossímil, apto as mais infelizes práticas para conseguir o que o seu empregador deseja. Pois o que importa mesmo, no fim, é que as corporações vençam a batalha.
Enquanto isso, reféns de um sistema podre, a família Bezerra capitaneada pela matriarca Carminha (Fernanda Montenegro) e seu filho Omar Sharif (Irandhir Santos), que se recusa terminantemente a vender o terreno, lutam desesperadamente contra a moral inescrupulosa daqueles que querem destruir de vez o local. Contudo, é uma batalha que parece já nascer inglória em suas raízes.
Percebendo que sua abordagem não está surtindo efeito, Aurélio parte para a velha filosofia do "dividir para conquistar" e após descobrir um segredo do passado desta família, investe de maneira feroz nessa partilha, usando a única arma que conhece: o dinheiro e o seu poder de sedução junto aos mais fracos.
Nesse momento a narrativa de Piedade lembra um pouco o também excelente Aquarius, de Kléber Mendonça Filho. Ambas trabalham bem a ideia da destruição familiar para atingir objetivos escusos.
E esses homens de negócios, que não passam de meros tubarões do mercado corporativo, apelam para qualquer sentimento dúbio que possa aparecer para confundir os menos favorecidos. Detalhe: há uma correlação que achei muito inteligente entre os tubarões marítimos, aqueles que impedem que os cidadãos da localidade possam sequer entrar no mar para surfar e os "tubarões de carne e osso", corpo e voz do que conhecemos ordinariamente como capitalismo selvagem.
Ambos estão à espreita, aguardando o momento exato para dar o bote e transformar vidas simples em objetos a serem descartados.
Um pequena confissão típica deste cinéfilo e crítico por vaidade excessiva: quando vi os créditos de abertura do filme, não sei por que cargas d'água veio-me à mente a música "blues da piedade", consagrada na voz de Cazuza. E achei - na verdade, continuo achando - que ela dialoga de forma intensa com o longa. Principalmente em seu refrão poderoso: "vamos pedir piedade, senhor piedade!, pra essa gente careta e covarde". E assim como na canção, os intragáveis donos do poder também se comportam como "insetos em volta da lâmpada".
O problema é que aqui, no filme de Cláudio, a lâmpada é bem maior: ela corresponde a todo um Estado, quiçá um país, que vê suas riquezas serem vilipendiadas dia a dia, e nada pode fazer para mudar esta situação.
O filme termina num tom de desesperança e nos faz encarar de forma nua e crua o modus operandi desta covardia secular, deste país onde todos - ou quase todos - preferem ter um preço a uma identidade ou caráter. E não fazemos a menor ideia de onde iremos parar num futuro próximo.
P.S: eu nunca vou entender o espectador de cinema no Brasil. Malha sua própria produção audiovisual a torto e a direito, mesmo quando ela realiza grandes êxitos como este filme aqui. E quando enfim comparece às salas de exibição para ver algo Made in Brasil é sempre uma comédia babaca com Ingrid Guimarães ou Leandro Hassum ou um favela movie. Depois o povo daqui reclama do rótulo de alienado que volta e meia a crítica especializada lhes impõe!
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