domingo, 28 de fevereiro de 2021

Siga a linha e não olhe para trás


Nunca entendi - e, honestamente, morrerei sem entender - o fascínio de parte da humanidade pela guerra. Ela não produz absolutamente nenhum legado útil para a nossa própria subsistência e não bastasse isso ainda por cima se esconde atrás da fachada hipócrita de "única solução viável para resolvermos problemas de difícil solução". Ou seja: não passa de uma demagogia fabricada por setores cínicos de nossa sociedade que se locupletam da miséria alheia enquanto faturam os tubos com a indústria bélica.

E o pior: tem quem admire essa faceta social, bata palmas, exalte a necessidade dela existir simplesmente porque não consegue viver numa pátria onde existam pessoas que pensem diferente do que elas acreditam. 

Me peguei pensando nisso enquanto assistia o drama Relatos do mundo, do diretor Paul Greengrass - famoso aqui no Brasil pelos longas que fez da franquia Jason Bourne e o ótimo Voo United 93, que tem como pano de fundo a tragédia do 11 de setembro - e cheguei à conclusão de que a guerra, como a conhecemos, nunca acabará. Ela apenas muda sua abordagem e seus personagens sórdidos. 

O filme de Greengrass traz o Capitão da reserva Jefferson Kidd (Tom Hanks, interpretando um personagem o qual jamais imaginei que ele pudesse fazer ao longo da carreira), um homem repleto de cicatrizes, que viveu o pior do conflito bélico de forma brutal e dilacerante. Tipógrafo antes da guerra, ele agora vive viajando de cidade em cidade onde lê para seus habitantes recortes de jornal com notícias sobre há quantas anda o mundo. Em outras palavras: para muitos cidadãos ele é o último resquício de esperança ou o último, digamos, bote salva-vidas em meio a um mundo destroçado por escolhas infelizes. 

E aqui cabe uma observação minha: nesse sentido seu personagem me fez lembrar o carteiro vivido por Kevin Costner no filme O mensageiro, de 1997. E a população esperava, tanto as correspondências quanto a chegada do capitão com as histórias que rodeavam o mundo, com gigantesca ansiedade. Tanto que multidões se reuniam para recebê-los. 

Entretanto, sua jornada será impactada de forma severa quando seu caminho cruza com o da jovem Johanna (Helena Zengel), uma garota que foi sequestrada por uma tribo indígena e teve toda sua história de vida apagada por quem a sequestrou. Como seus pais biológicos encontram-se mortos, o capitão precisa levá-la à cidade onde moram seus tios. Só que para isso terá que reviver velhos demônios dos tempos de guerra e aprender a se comunicar com a menina, que praticamente se transformou numa selvagem. 

Mas é preciso, de minha parte, enaltecer um aspecto que me parece mais interessante do que o próprio roteiro do filme: falo das entrelinhas presentes nas discussões, nos duelos e monólogos presentes na trama. É praticamente uma aula de história não oficial dos EUA (refiro-me àquela parte da história que não iremos encontrar nos livros escolares, não importa o quanto procuremos). 

Tudo está presente aqui, se você tiver mente aberta para apreender os sinais: a eterna postura imperialista dos homens brancos, que se acham mais donos de qualquer tipo de direito do que mexicanos, índios e negros; a eterna divergência entre os estados do norte e do sul norte-americano e o legítimo sentimento de que a guerra não passa de um negócio da china para favorecer as velhas elites de sempre e transformar seres humanos em zumbis sociais, que não fazem a menor ideia de como (e por que) devem seguir em frente, quando tudo parece não ter mais o menor sentido. 

Ao final da jornada o diretor até encontra um meio termo para agradar aos espectadores que ansiosamente esperam por um final minimamente feliz, mas acreditem: é praticamente impossível acreditar em felicidade num cenário tão desolador e que parece prometer que dias ruins continuarão existindo ainda por um bom tempo. 

Talvez minha única ressalva em todo o projeto tenha sido a escolha de Hanks como o protagonista. Confesso que gostaria de ver um ator com mais vocação para interpretar um homem dúbio ou, quem sabe, alguém a um passo de se tornar um mau caráter por ter perdido tudo o que mais amava. Peguei-me pensando o que um artista como Gary Oldman ou John Malkovich teria feito com o mesmo personagem. E, além disso, Tom sempre me vendeu a imagem do bom pai de família. Mas entendo sua presença aqui, pois do contrário a adaptação do livro de Paulette Jiles dificilmente tivesse conseguido financiamento. 

Críticas à parte (e são vários os comentários negativos sobre o filme na internet), é preciso paciência para assistir Relatos do mundo. Trata-se de um filme arrastado, no qual o espectador precisa montar um quebra-cabeça complexo sobre a história de um país que não necessariamente é aquilo que vende para o mundo. Em determinado momento o capitão diz para a jovem Johanna: "siga a linha e não olhe para trás". E essa é a melhor reflexão que você pode fazer sobre essa história. É como se ele nos dissesse que, no final das contas, nunca vale a pena viver no passado eternamente. 

Porém, difícil mesmo é fazer a própria humanidade entender isso...      

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

O último beatnik


Eu comecei a ler a beat generation novo e por acidente. Um exemplar de Tristessa, do autor Jack Kerouac, apareceu numa lixeira do prédio onde eu morava nos anos 90 (e eu sempre achei um crime cultural quem joga livros no lixo!). Comecei a folheá-lo sem a menor expectativa e me peguei surpreso com o estilo narrativo. Terminada a leitura, fui à biblioteca pública mais perto de casa e perguntei ao atendente se ele possuía outros volumes do mesmo autor. E então ele me disse: "você é fã da beat generation?". 

Foi assim, desse jeito, que eu fiquei sabendo da existência daquele grupo de escritores revolucionários que bateram de frente com o conservadorismo americano nos anos 1950. De Tristessa eu migrei para O uivo, de Ginsberg e de O uivo para Almoço nu, de Burroughs e On the road, também de Kerouac. E desde então eu não parei mais. E digo mais: foi a primeira vez na minha vida como leitor que eu me interessei por reler autores. Sim, porque a beat generation precisa ser relida, e muito. Quantas vezes forem necessárias. 

Logo, qual não foi minha triste surpresa ao ler ontem, numa série de sites da imprensa, sobre o falecimento do poeta Lawrence Ferlinghetti, aos 101 anos, e constatar que o grupo do qual ele fez parte perdeu seu último expoente. Isso mesmo: ele era o último dos beatniks vivo. 

Mais do que os livros que publicou (e foram muitos!), certamente a maior contribuição de Ferlinghetti foi a criação, ao lado de Peter D. Martin, em 1953, da City Lights Booksellers and Publishers, responsável pela democratização da literatura americana, oferecendo livros mais baratos de forma acessível ao público, bem como editou muitos dos clássicos que a beat generation eternizou. 

Que o diga o poema O uivo, que o levou ao banco dos réus por conta do seu conteúdo, visto na época como obsceno. Resultado: foi imediatamente censurado e perseguido pelo Estado e também pela mídia conservadora da época. Quando publicou o manuscrito original de On the road, cheio de erros ortográficos - como bem queria o seu autor - foi chamado de maluco pelo mercado editorial. Mas eles simplesmente não entendiam que Ferlinghetti estava (sempre esteve) à frente do seu tempo. 

Poeta, artista visual, editor, anarquista, embaixador cultural, guru da cena artística de São Francisco, papa da contracultura, pioneiro do movimento hippie... Difícil catalogar uma mente fervilhante como a de Lawrence Monsanto Ferlinghetti. De concreto mesmo apenas uma certeza: segundo o relatório oferecido por seu filho, Lorenzo, aos jornais, a causa mortis do artista foi uma doença pulmonar que já vinha consumindo-o há algum tempo. 

Por incrível que pareça, embora tenha lido muito sobre a vida do poeta, dos seus trabalhos literários só tive contato com um: Um parque de diversões na cabeça, publicado em 1958. O livro, que é uma crítica direta e irônica à cultura dos Estados Unidos, está entre os mais vendidos de toda a história americana e faz jus a isso. Detalhe: eu o encontrei por míseros oito reais num sebo no Catete. Não sei se chamo de sorte ou desrespeito ao autor!

Com Um parque de diversões na cabeça descobri logo de cara que a poesia de Ferlinghetti é um misto de ritmo e imagem. E no quesito ritmo, mesmo este é variado. É possível ver do Bebop ao Rap, passando por referências à Walt Whitman e Apollinaire. Com forte influência surrealista, seu texto é repleto de cenas delicadas, cotidianas, bem como jogos de luz e cor. Em outras palavras: é possível ao leitor, mais do que apenas ler, ver o que as suas palavras dizem. Trata-se de uma poesia quase hipnótica nesse sentido. 

Entretanto, sua poesia também está cheia de temas sociais e políticos, narrados de forma profunda, porém não menos poética. Ferlinghetti era, no fundo, um inconformado com os EUA do seu tempo. E teve razões para isso, principalmente quando o país entrou numa enorme catarse cultural e política por conta da derrota na Guerra do Vietnã. Ele fez parte da geração que bateu de frente com a Casa Branca e culpou Nixon pela abordagem frustrada durante o conflito. 

Eu poderia ficar aqui o dia inteiro falando de Lawrence e ainda assim não terminaria esse obituário, tamanha a capacidade mental e artística desse homem extraordinário. Não à toa ele fez, faz e sempre fará parte da minha formação cultural enquanto eu estiver vivo. Portanto, só me resta dizer "fica com Deus" e " muito obrigado por tudo". 

Ah! Faltou uma coisa: o senhor não sabe a falta que vai fazer para o mercado editorial daqui pra frente!


domingo, 21 de fevereiro de 2021

O terror que foi redescoberto


Tem muita gente que não concorda comigo quando eu digo isso, mas vou repetir mais uma vez: nada é mais natural no mundo dos filmes de terror que viram clássicos ou cults do que produções que foram um fracasso retumbante de bilheteria e crítica arrebanharem gerações de fãs alucinados posteriormente. Perguntem a qualquer fã do gênero para vocês verem só! E a lista é imensa. Dentre esses hoje épicos que foram redescobertos com o passar do tempo e, claro, a ajuda do home video e das exibições em tv, O enigma de outro mundo, de John Carpenter, lançado em 1982, é um caso à parte. E ele tinha tudo para ser um fenômeno de bilheteria. 

Digo isso porque antes de Carpenter realizar o longa ele se notabilizou por produções independentes que levaram o público ao delírio (falo mais especificamente de Halloween e Fuga de nova york, com Kurt Russell, um clássico eterno dos meus tempos de Sessão das Dez, no SBT). Logo, O enigma de outro mundo foi seu primeiro filme de estúdio. Pensarão então os mais fanáticos: "agora é que ele vai detonar mesmo!". Pois é... Não foi bem isso o que aconteceu. 

A trama acontece dentro de uma estação de pesquisa na Antártida cujos cientistas veem a chegada de um cachorro que foge de um helicóptero que está tentando matá-lo. Os integrantes da aeronave não conseguem abater o animal e ele é levado para dentro da instalação. Passados alguns dias começam a acontecer uma série de situações inusitadas e perturbadoras. Motivo: dentro do cão há uma criatura alienígena capaz de copiar as células de qualquer espécie, inclusive seres humanos. E ela, a criatura, começa a eliminar um por um os cientistas e assumir sua forma. 

Bizarro, eu sei. Digo mais: para fãs do terror gore ou do giallo italiano a película é um deleite à parte. Cheia de efeitos práticos e um trabalho de maquiagem visto por muitos como visionário até hoje. Então por que tamanho desinteresse pelo filme na época? Primeiramente: a culpa dos distribuidores, que decidiram lançá-lo na mesma época de E.T - o extraterrestre, de Steven Spielberg e Blade Runner - o caçador de androides, de Ridley Scott, no auge de suas nostalgias e exuberâncias tecnológicas. Sim, isso foi definitivamente um tiro no pé. 

Contudo, há quem diga na época que o fato do longa trazer como discussão em suas entrelinhas o status quo dos EUA pós-vietnã (uma guerra cujo povo americano nunca aceitou a derrota) contribuiu e muito para o insucesso do projeto. Mais que simplesmente uma história sobre o convívio entre pessoas retidas em isolamento, o filme de Carpenter também fala da incapacidade humana diante de um adversário praticamente imbatível. Assunto ao qual os norte-americanos normalmente preferem evitar, pois gostam de se ver na tela na pele de heróis indestrutíveis.  

O diretor não deixou de beber na fonte do clássico O monstro do ártico, dirigido por Howard Hawks em 1951, que adapta o conto original publicado por John W. Campbell Jr. E eu recomendo aqui aos leitores dessa crítica que vejam a versão dos anos 50, pois eu tive a impressão de que me ajudou, em muitos sentidos, a enxergar a trama de forma mais abrangente. Sem contar que é um clássico em preto-e-branco de carteirinha! 

O projeto tem, entre seus feitos, a façanha de - acreditem! - dar ao mestre das trilhas sonoras Ennio Morricone uma indicação ao Framboesa de Ouro. Não, meus amigos. É isso mesmo que vocês leram... O gênio por trás da música de Era uma vez no Oeste e A missão foi nomeado à honraria de pior música do cinema por este, hoje, clássico pop. Contudo, eu prefiro acreditar que mesmo essa notícia acabou por contribuir para o charme da produção com o passar das décadas. Tem quem ache isso até estiloso. 

E quase me esquecia de mencionar as inúmeras teorias criadas sobre o longa com o passar dos anos (procurem vídeos no you tube sobre o tema) acerca de McCready - personagem de Kurt Russell - ser a criatura no final do filme. Acreditem: dá muito pano pra manga e debate até dizer chega.  

Em 2011 o diretor Matthijs van Heijningen Jr realizou a prequel A coisa e trouxe de volta o universo do longa de Carpenter, desta vez narrando os fatos que antecederam o longa de 1982. Contudo, ele não acrescentou em nada ao fenômeno no qual o filme se tornou. Teve até quem achasse a produção desnecessária, chamando-a de "puro caça-níqueis em tempos de falta de criatividade". 

De concreto mesmo apenas que O enigma de outro mundo foi de lixo descartável (chegando a receber críticas até difamatórias) à fenômeno pop incontestável. E figura hoje em dia, mais do que nunca, em centenas de listas de "filmes de terror que você não pode deixar de assistir antes de morrer". E isso, você, fã de terror como eu, sabe que não é pouca coisa. 

P.S: eu nunca deixei de acreditar que em Alien 3, de David Fincher, a cena em que a criatura alienígena entra pelo corpo do cachorro na colônia penal, é uma homenagem direta ao filme de Carpenter. Que me corrijam aqueles que tiverem uma opinião melhor ou mais lúcida do que a minha! 


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Ainda com cheiro de espírito jovem


O site da revista Rolling Stone traz uma lista interessante de discos que estão completando datas comemorativas nesse ano de 2021 e vejo logo de cara Nevermind, do Nirvana, entre eles. E imediatamente meu cérebro se transporta para o dia em que o ouvi, em formato vinil, pela primeira vez. Foi nonsense, brutal, mas verdadeiro até a última vírgula. 

O álbum do nirvana antecipa em três décadas o que o século XXI se tornou de tão assustador e maquiavélico (e muito provavelmente o público para o qual ele foi feito não se deu realmente conta disso!). Nevermind é álbum para se ouvir em altíssimo volume, quase um esporro ou um grunhido, um desabafo sobre uma geração que não aguenta mais a monotonia e a mesmice. 

O disco abre com o eterno clássico "Smells like teen spirit" e ainda é fácil entender porque a canção se tornou um hino para aquela geração de desajustados. Dos riffs de guitarra ácidos à frase "eu sou pior no que faço de melhor" ainda ecoam acerca de uma legião de fãs perdida em meio a tantos referenciais e ainda assim sem nenhum objetivo concretizado. 

Em "In bloom" Cobain correlaciona os fãs de suas músicas com a sociedade megalomaníaca daqueles anos 90. Uma sociedade que vende crianças por comida. Ele próprio chama a natureza de prostituta, de tanto que ela é usada por nós, seres humanos, de forma indiscriminada.  

Com "Come as you are" a banda pede que a sociedade seja ela mesma e não aquilo que o sistema quer que ela seja. "Venha como você é, como você era, mas vá com calma. Não se apresse!". Entretanto, na canção seguinte, "Breed", ela parece retroceder e volta a mostrar um compêndio de jovens confuso, que não sabe o que faz ou o que quer de fato. Perdidos. Só pensando em procriar. 

Chega a sensacional "Lithium" e com ela, o desespero, o medo da morte, as amizades frágeis, a certeza de não se encaixar dentro de um padrão de beleza (e para eles, os jovens, isso é tão devastador quanto morrer). E ainda assim ele repete: "eu não vou pirar!". Contudo, parece exatamente o contrário. A seguir o violão magnífico traz "Polly", que pode ser um pássaro ou uma mulher. Quem sabe até ambos, uma forma híbrida. Mas fala também de dependência, de desconforto. 

"Só porque você é paranoico /Não significa que eles não estão atrás de você", diz Cobain em "Territorial pissings" e isso diz muito sobre a música que mistura a tentativa de unificar a sociedade com um discurso que expõe a incomunicabilidade entre seres humanos. Obs: a guitarra distorcida que abre a música já vale metade do seu tempo ouvindo-a. 

Egolatria, pessoas sugando pessoas, inconformismo... Tudo isso acompanha "Drain you", provavelmente a música mais perturbadora do disco. É possível - eu, pelo menos, tive essa sensação - ouvir o sofrimento do vocalista, sua decepção com o futuro que ainda está por vir. E a música seguinte, "Lounge act", acompanha esse mesmo sentimento derrotista.  

Quando chega "Stay Away" os moralistas de plantão terão todos os motivos do mundo para odiar a canção. E não é para menos. Uma música que termina ao som de "Deus é gay" tem tudo para irritar os mais conservadores e certinhos. E não somente isso. Cobain agride a moral como nós a conhecemos desde o primeiro verso. "Melhor morto do que legal", "o amor é cego", além de chamar a moda abertamente de merda. É sem dúvida a faixa mais polêmica de todo o disco. Mas quando você pensa que não tem como descer mais fundo no poço, ele acrescenta "On plain" e todos os seus sonhos ficam destruídos de vez. 

Então você pensa: o disco acabou, é a última faixa. Não. Você não pode deixar de ouvir "Endless, nameless". É a sentença final dessa grande catarse em forma de álbum musical, uma ode à distorção e ao barulho. Cobain se rende à inevitabilidade da morte e meio que profetiza tudo o que aconteceria com ele posteriormente. É, mais do que um simples desfecho, um momento mediúnico. 

Em suma: o que Nevermind tem de assustador, tem também de visionário em suas intenções, digamos, radicais. Ele antecipa muito desse mundo distorcido, repleto de fake news, revisionismo histórico, neoliberalismo fraudulento e outras ideologias que só servem para manobrar o indivíduo, transformando a sociedade num enorme marionete. Não à toa ele morreu da forma como morreu, mas sem se dobrar ao sistema. E esse, com certeza, foi seu maior legado para o mundo do rock n' roll.

Não conhece o disco? Então corra agora ao Spotify, ao Deezer ou a qualquer outra plataforma musical de seu interesse e ouça. E mais do que ouvir a banda, sinta o que ela tem a dizer, sinta o cheiro do espírito jovem. Ele ainda está lá. Acredite: esse álbum ainda é das narrativas mais atuais sobre o mundo contemporâneo e o que fizemos com ele. Mas é para poucos! 

Logo, você está por sua conta e risco... 

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Recomeçar do zero


Você não faz a menor ideia do que o tempo - ou a vida - é capaz de fazer com os nossos sonhos. Não importa o quanto você tenha a sua vida planejada, o quanto tenha se preparado para realizar aquilo que tanto sonhou, a vida aparece e ela tem seus próprios planos, seu próprio ritmo. Em 1984 Virginie Boutaud, vocalista da banda nacional new wave Metrô, estava certa ao cantar que "no balanço das horas tudo pode mudar". Sim. Nisso ela acertou em cheio. E esse balanço acontece quando você menos espera. Que o diga a vida de Ruben (Riz Ahmed). 

Ele é baterista de uma banda que ainda busca a trilha do sucesso e sabe que o trabalho é duro. São horas e horas de dedicação e muito ensaio para subir ao palco e dar o seu melhor. Até que percebe, durante um desses ensaios. que perdeu sua audição completamente. E para ele isso é um baque difícil de engolir. Sua primeira reação ao ocorrido é o óbvio "meu mundo acabou". 

A única que o ampara nesse momento é a namorada, Lou (Olivia Cooke), que o leva para conhecer uma instituição de amparo à pessoas surdas. Ruben, reticente à primeira vista, decide aceitar o desafio muito por insistência dela. E a rotina desse novo mundo é para poucos: aprender uma nova língua, aprender a lidar com suas próprias limitações e, enfim, aprender a ouvir de uma outra forma. 

O problema: ele acredita que tudo aquilo não passa de uma perda de tempo quando descobre que é possível fazer uma cirurgia que coloque um implante em seu cérebro, trazendo de volta a possibilidade de audição. E é nesse milagre que ele embarca com unhas e dentes, porém esquece que sua relação com o novo mundo que acabou de conhecer sairá estremecida do processo. 

O som do silêncio, filme do diretor Darius Marder, é um longa sobre recomeços e o quanto eles podem ser difíceis e dolorosos, ainda mais sabendo que seres humanos são falhos e imediatistas.

Ruben faz parte de uma geração que simplesmente não aguenta a ansiedade oferecida pelo amanhã. Ele almeja a glória e não consegue imaginar a sua vida sem ela. Mais: ele a almeja no menor tempo possível. Entretanto, não consegue entender que nem sempre o tempo do mundo é o nosso tempo, corrido, arbitrário, feito de improviso em alguns momentos. E o choque entre essas duas realidades pode ser extremamente autodestrutivo para pessoas como ele. 

A produção da Amazon, que vem chamando a minha atenção nos últimos anos com bons projetos, já me ganhou desde o início da projeção muito por conta disso, dessa batalha que atravessará todo o século XXI - podem ter certeza! - entre os impacientes e o ciclo da vida. Vivemos uma era de transformações constantes, mas não significa que elas ocorrerão na velocidade que queremos ou desejamos. Longe disso! 

Fiquei tentando me lembrar de outros filmes com a presença de personagens surdos e me veio à mente logo de cara o extraordinário Filhos do silêncio, de Randa Haines, com William Hurt na pele do professor e Marlee Matlin, vencedora do Oscar de melhor atriz em 1987, como a extraordinária aluna surda. E se no filme de Randa já era difícil para Marlee conviver com a presença do professor, pois ela simplesmente optou por não falar, no caso de Ruben a situação é ainda mais grave por que ele sempre desdenhou desse mundo, por acreditar que se aceitasse aquela realidade se transformaria num covarde. E ele precisa acreditar que será capaz de retomar sua vida, bem como sua carreira. 

Alguns críticos de cinema que andei fuçando na internet veem a possibilidade de Riz beliscar uma vaga entre os indicados ao Oscar desse ano e confesso: seria merecido. O trabalho dele é realmente muito bom e, principalmente, humano. Mas ele, com certeza, terá concorrentes de peso. 

E ao final de duas horas de angústia e luta por superação a certeza que fica é a de que recomeçar do zero não é uma batalha simples e corriqueira. Pelo contrário: ela envolve discernimento e força de vontade para entender que as perdas fazem parte da vida. E não é porque as sofremos, de tempos em tempos, que não possamos seguir em frente, tentar de novo, mesmo que o plano original já não nos sirva mais como antes. 


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

O dia em que o homem de aço tombou


Enquanto os fãs mais entusiasmados da DC Comics aguardam ansiosos o Snyder Cut do longa da Liga da Justiça, lançado originalmente em 2017, e as mulheres apaixonadas por Henry Cavill, autor que interpreta Superman no filme, babam por seus músculos e beleza, eu me pego viajando no tempo enquanto procuro por um tema para escrever mais um dos meus textos sobre quadrinhos e relembro da façanha que foi chegar por aqui o kit da Editora Abril trazendo a edição de A morte de super-homem, em 1993. 

Lembro como se fosse hoje de ir a, pelo menos, umas 15 bancas de jornal (naquela época, diferentemente de hoje, as HQs eram mais facilmente encontradas em bancas e apenas uma ou outra livraria vendia edições especiais ou específicas.) até encontrar o tal kit. Todo mundo foi pego de surpresa ao saber do lançamento do projeto, o que gerou uma imensa curiosidade dos fãs. 

A DC, que vinha apanhando miseravelmente da Marvel em termos de vendas naquela época, precisava de um grande evento que a trouxesse de volta para o campo de batalha urgentemente. E eis que a editora Louise Simonson e um grupo de argumentistas e desenhistas talentosíssimos pensaram: por que não uma história sobre a morte do homem de aço? O que, acredito, deve ter gerado no mínimo uma pulga atrás da orelha da editora. Afinal de contas, trata-se de um evento ímpar e revolucionário em todos os sentidos. 

Logo, ficava a pergunta sobre quem seria o algoz de um dos heróis mais poderosos da nona arte. Surge então o temível Apocalipse, uma criatura tão poderosa e cruel que foi capaz de dizimar a Liga da Justiça (uma liga completamente diferente da que vemos no longa de 2017) com extrema facilidade, com um braço preso às costas.  Super-homem, que concedia uma entrevista naquele momento, fica sabendo da batalha entre o grupo de heróis e a criatura e parte para lá na mesma hora. 

E isso, meus caros leitores, é o máximo que você precisa saber sobre a narrativa que não tem nada de complexa. Na verdade, o grande mérito da HQ está justamente nas batalhas memoráveis.

Primeiro destaque disparado: a arte magnífica de Dan Jurgens, seja da paleta de cores ao visual e anatomia dos personagens. Um artista, aliás, que eu li muito nos meus tempos de leitor de gibis de super-heróis (hoje em dia eu ainda leio graphic novels, mas deixei os superpoderosos de lado!). Outro ponto que merece meu elogio: a visceralidade com que o homem de aço sofre e apanha na história é louvável. A princípio pensei que eles fossem aliviar um tanto por se tratar do Superman, mas não... Eu raras vezes vi o herói - e não somente ele, mas todos os que enfrentaram Apocalipse - apanhar tanto numa história. 

Lembro que quando cheguei ao capítulo final da história (que é dividida em seis partes), senti um misto de orgulho e tristeza. Orgulho pelo arrojo estético empregado - e na última parte cada página resume a batalha final em cenas épicas, sem divisões em quadrinhos menores - e tristeza por saber que o herói mais poderoso da DC iria sucumbir. Lógico, naquele momento, pois tudo era uma grande jogada de marketing para atrair os leitores que andavam sumidos.

Depois de A morte de Super-homem a DC Comics teve que manter o herói de Krypton afastado de suas páginas por um tempo, mas planejou seu retorno com garbo e lançou tempos depois O retorno de Super-homem (este dividido, na edição nacional, em três volumes), trazendo inclusive personagens como Aço e Superboy, que chegou a ganhar gibi próprio por aqui. E ao fim dessa saga zerou a numeração do gibi oficial do herói em nossas terras, levando o super para outras aventuras insólitas. 

Só para não deixar de fora o meu momento memoriográfico o kit vendido nas bancas trazia, além da edição de capa preta com o logotipo do herói sangrando, um pôster caprichado com a cena do funeral do Super e uma versão fac-símile da edição em formato americano com as cenas finais da batalha. E, claro, que relançamentos com o passar dos anos também geraram um burburinho junto ao público, tanto que muitos deles encontram-se esgotados. 

Em 2016 o diretor Zack Snyder (de novo ele!) trouxe o personagem Apocalipse para seu longa Batman vs. Superman: a origem da justiça e também matou o homem de aço. Confesso que, na época, eu achei um tanto forçada a escolha, mas o visual da criatura era realmente assustador. Pena que a história não teve o mesmo impacto. E houve também uma versão da história em animação, dirigida pela dupla Jake Castorena e Sam Liu em 2018, mas com liberdades artísticas que diferem do material original.

Como legado para a história da nona arte é preciso dizer que A morte de Super-homem divide opiniões. Tem quem ache uma grande bobagem, um reles caça-níqueis barato, e tem quem a considere uma das melhores sacadas da DC Comics até hoje. Enfim, meus caros leitores, fica a seu critério. Mas que foi um evento que mudou a minha relação com os quadrinhos na época (e eu tinha apenas 16 anos), ah! não há a menor dúvida...


domingo, 7 de fevereiro de 2021

Parque de diversões macabro


O grande barato dos filmes de terror que marcaram época em minha infância e adolescência é que nunca houve exigência, pelo menos de minha parte, de que eles fossem exemplos de perfeição. Pelo contrário. Muitos fãs dentro das salas de cinema esperavam por defeitos, amadorismos e incorreções. E eles certamente acrescentavam um certo charme ao projeto. Infelizmente, parece que hollywood nos últimos tempos parou de entender isso e sofisticou um gênero que nasceu para ser, muitas vezes, tosco sem nem por isso perder o seu potencial de diversão. 

Estava pensando nisso essa última semana quando me deparei na internet com uma matéria sobre o hoje clássico do horror Pague para entrar, reze para sair, do diretor Tobe Hooper (mestre por trás dos eternos clássicos O massacre da serra elétrica e Poltergheist - o fenômeno). E mesmo depois de quatro décadas de existência é impressionante ver o quanto ele ainda é capaz de levar ao deleite gerações de fãs, mesmo com tantas soluções óbvias e improvisadas. 

O longa narra a história de dois casais de namorados, Amy (Elizabeth Berridge), Buzz (Cooper Huckabee), Richie (Miles Chapin) e Liz (Largo Woodruff), que decidem ir a um parque de diversões itinerante cujo último dia de apresentação é naquela noite. Os pais de Amy são contra por causa de uma mística envolvendo o lugar: numa outra cidade onde o parque esteve duas jovens foram encontradas mortas. E por isso a jovem precisa inventar uma história de que irá em outro lugar e dormirá na casa de Liz. 

O que os dois casais, que pretendiam manter relações sexuais dentro do trem fantasma, não sabiam é que toda a diversão pretendida daria lugar a uma noite de perseguições e assassinatos, com um desfecho para lá de amargo para eles. 

É preciso antes de mais nada destacar o caráter casa dos horrores do lugar, que mesclava atrações simples como jogos de azar e shows de mágica com outras um tanto perturbadoras como aberrações genéticas (feto morto, vaca de duas cabeças, etc). Isso sem contar uma falsa vidente que passa a maior parte do tempo alcoolizada. Contudo, devemos levar em consideração que o parque em si é uma desconstrução dos antigos vaudevilles (ou teatro de variedades) que fizeram muito sucesso no século XIX, justamente por trazerem atrações um tanto quanto mórbidas, pois era justamente isso que aguçava a curiosidade dos frequentadores.

Por outro lado, vale também lembrar do lado trash da produção com um adolescente de rosto deformado, que passa a maior parte do tempo usando uma máscara de Frankenstein, bem como o próprio dono do parque, o retrato típico de um sinistro psicopata. Há cenas deploráveis, como a de troca de sexo por dinheiro, e as mortes - se levarmos em consideração como são realizadas hoje em dia, com um extremo nível de sofisticação tecnológica - são primárias no nível do quase amadoresco. Mas como disse em parágrafo anterior: o charme da narrativa está justamente em não procurar perfeição ou levar tudo tão a sério. 

Ah! Quase me esqueci de um detalhe: para quem procura referências à outros clássicos do gênero o diretor faz menção aqui à Halloween e Psicose (e de uma maneira bem humorada até). Só faltou um sósia do Hitchcock como apresentador das atrações. Ele bem que poderia ter pensado nisso também...

Pague para entrar, reze para sair, mesmo trazendo Hooper na direção, não foi o sucesso de bilheteria que se apregoava (faturou pouco mais de 8 milhões de dólares). Tem até quem diga que foi um fracasso de público para a época, levando em consideração que 1981, para muitos críticos, foi o grande ano do terror para o cinema americano. Entretanto, ele acabou por se reinventar anos depois como fenômeno cult por conta do home video. 

Lembro de quando o assisti pela primeira na tv aberta e da dificuldade que tive para dormir naquela noite. E no dia seguinte minha mãe me dando esporro porque eu não queria acordar para ir à escola: "tá vendo?", ela dizia, "é nisso que dá ficar assistindo essas porcarias até de madrugada. Levanta pra não chegar atrasado, garoto!". 

Em 2018 o diretor Gregory Plotkin realizou o filme Parque do inferno que, embora os fãs mais xiitas neguem, tem sim o longa de Hooper como inspiração. Mas é preciso avisar aos desavisados com antecedência: tratam-se de contextos e épocas completamente diferentes. Dito isto, caso queiram procurar o longa, vocês estão por sua conta e risco. 

Querem saber mais? (e eu sei que vocês querem): revejam o filme, leiam a respeito do projeto, procurem na internet cinéfilos de carteirinha fanáticos pela produção. Pois Pague para entrar, reze para sair é daquelas experiências que por mais que você ache, em algum momento, tosca ou brega, não sai de moda. Nunca. Pergunta só pra quem viveu os anos 80...


quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Errar é humano


Errar é humano e ainda assim lidamos mal com nossos erros. No final das contas, somos seres repletos de dúvidas e desvios morais, que preferem fingir que o mundo se resume a certo ou errado, bem ou mal, esquerda ou direita. Ah quem dera fosse fácil assim trilhar a vida! 

Na procura por programações culturais e opções de lazer (e eu estou sempre atrás delas, ainda mais em tempos de pandemia, isolamento social e uma sociedade louca - ou cafajeste, o que muitas vezes dá no mesmo - que adora desrespeitar regras) me deparo com um convite que aparece em minha página no facebook. Uma peça. Seu nome: Ítaca 365, apto 23

Trata-se de um monólogo dirigido e protagonizado pelo ator Cacá Carvalho, mais conhecido no país pelo papel que fez de Jamanta em duas telenovelas na Rede Globo. O texto, inspirado em A odisseia, de Homero, é de autoria da dupla Vinícius Calderoni e Guilherme Gontijo Flores. Mas não exijam deles a fidelidade precisa à tragédia grega, embora ela dite o tom da agonia sofrida pelo protagonista. A proposta aqui é bem outra. 

Esqueçam as viagens e a saga vivida na tragédia. O tormento aqui gira em torno de um mísero apartamento. Nele, Odisseu (Cacá Carvalho) rói e ao mesmo tempo se alimenta de suas perdas e dores. Ele é a testemunha viva das escolhas infelizes que fez ao longo da vida. E por causa delas, perdeu a mãe - provavelmente sua maior lástima -, Penélope (Vera Sala), o grande amor da sua vida e seu filho Telêmaco (Theo Retti). 

Agora, trancado entre aquelas paredes frias, em meio a estantes cheias de livros, e pertences pessoais que só lhe fazem trazer memórias amargas, ele busca respostas. Procura na sua própria aflição um hiato ou, quem sabe, um novo ponto de partida. Enquanto isso, ouvimos atabaques dilacerantes (contribuição muito bem-vinda por parte de Paulo Santos) e nos perdemos na penumbra e no vazio desse cenário inóspito. 

Vale aqui um adendo para elogiar o brilhante trabalho de Márcio Medina, que constrói uma direção de arte às vezes soturna, às vezes cheia de nostalgia. E também meus mais sinceros elogios à Junae Andreazza pela extraordinária fotografia. Talvez se o trabalho de ambos fosse feito num teatro de dimensões grandes não me chamasse tanta atenção como chamou...

Em aproximadamente 50 minutos nos deparamos de forma concisa, mas não menos precisa, com um inteligente ensaio sobre a perda e as consequências que ela nos traz. E o fato de estarmos vivendo, como sociedade, um ano de incertezas, cai como uma luva para um texto tão amargo e contemporâneo. 

Durante toda a encenação me peguei pensando num sem número de autores que li ao longo da minha vida que sempre foram rotulados de inconsequentes, antiéticos ou mal vistos. Refiro-me à Nelson Rodrigues, Charles Bukowski, Augusto de Anjos, Henry Miller, até mesmo o prêmio nobel José Saramago (que foi exaustivamente demonizado na época da publicação de seu extraordinário e não menos polêmico O evangelho segundo Jesus Cristo). 

E me dei conta de duas coisas: primeiro o diálogo entre eles e a melancolia de Odisseu, que é legítima e praticamente insuportável. E segundo que eu fiz a coisa certa ao escolhê-los como meus confidentes literários. Eles continuam atualíssimos. O mundo é que parece ter caminhado para trás. 

E é preciso que isso acabe a partir de 2021. O quanto antes. Pois do jeito que a coisa vai, se continuarmos nessa toada, não sei não! 

P.S: para quem quiser saber mais sobre outros projetos como esse, procure pela #CENAWEB no site http://teatroemmovimento.com.br/. Certamente salvou a minha noite calorenta e monótona.