quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Ainda com cheiro de espírito jovem


O site da revista Rolling Stone traz uma lista interessante de discos que estão completando datas comemorativas nesse ano de 2021 e vejo logo de cara Nevermind, do Nirvana, entre eles. E imediatamente meu cérebro se transporta para o dia em que o ouvi, em formato vinil, pela primeira vez. Foi nonsense, brutal, mas verdadeiro até a última vírgula. 

O álbum do nirvana antecipa em três décadas o que o século XXI se tornou de tão assustador e maquiavélico (e muito provavelmente o público para o qual ele foi feito não se deu realmente conta disso!). Nevermind é álbum para se ouvir em altíssimo volume, quase um esporro ou um grunhido, um desabafo sobre uma geração que não aguenta mais a monotonia e a mesmice. 

O disco abre com o eterno clássico "Smells like teen spirit" e ainda é fácil entender porque a canção se tornou um hino para aquela geração de desajustados. Dos riffs de guitarra ácidos à frase "eu sou pior no que faço de melhor" ainda ecoam acerca de uma legião de fãs perdida em meio a tantos referenciais e ainda assim sem nenhum objetivo concretizado. 

Em "In bloom" Cobain correlaciona os fãs de suas músicas com a sociedade megalomaníaca daqueles anos 90. Uma sociedade que vende crianças por comida. Ele próprio chama a natureza de prostituta, de tanto que ela é usada por nós, seres humanos, de forma indiscriminada.  

Com "Come as you are" a banda pede que a sociedade seja ela mesma e não aquilo que o sistema quer que ela seja. "Venha como você é, como você era, mas vá com calma. Não se apresse!". Entretanto, na canção seguinte, "Breed", ela parece retroceder e volta a mostrar um compêndio de jovens confuso, que não sabe o que faz ou o que quer de fato. Perdidos. Só pensando em procriar. 

Chega a sensacional "Lithium" e com ela, o desespero, o medo da morte, as amizades frágeis, a certeza de não se encaixar dentro de um padrão de beleza (e para eles, os jovens, isso é tão devastador quanto morrer). E ainda assim ele repete: "eu não vou pirar!". Contudo, parece exatamente o contrário. A seguir o violão magnífico traz "Polly", que pode ser um pássaro ou uma mulher. Quem sabe até ambos, uma forma híbrida. Mas fala também de dependência, de desconforto. 

"Só porque você é paranoico /Não significa que eles não estão atrás de você", diz Cobain em "Territorial pissings" e isso diz muito sobre a música que mistura a tentativa de unificar a sociedade com um discurso que expõe a incomunicabilidade entre seres humanos. Obs: a guitarra distorcida que abre a música já vale metade do seu tempo ouvindo-a. 

Egolatria, pessoas sugando pessoas, inconformismo... Tudo isso acompanha "Drain you", provavelmente a música mais perturbadora do disco. É possível - eu, pelo menos, tive essa sensação - ouvir o sofrimento do vocalista, sua decepção com o futuro que ainda está por vir. E a música seguinte, "Lounge act", acompanha esse mesmo sentimento derrotista.  

Quando chega "Stay Away" os moralistas de plantão terão todos os motivos do mundo para odiar a canção. E não é para menos. Uma música que termina ao som de "Deus é gay" tem tudo para irritar os mais conservadores e certinhos. E não somente isso. Cobain agride a moral como nós a conhecemos desde o primeiro verso. "Melhor morto do que legal", "o amor é cego", além de chamar a moda abertamente de merda. É sem dúvida a faixa mais polêmica de todo o disco. Mas quando você pensa que não tem como descer mais fundo no poço, ele acrescenta "On plain" e todos os seus sonhos ficam destruídos de vez. 

Então você pensa: o disco acabou, é a última faixa. Não. Você não pode deixar de ouvir "Endless, nameless". É a sentença final dessa grande catarse em forma de álbum musical, uma ode à distorção e ao barulho. Cobain se rende à inevitabilidade da morte e meio que profetiza tudo o que aconteceria com ele posteriormente. É, mais do que um simples desfecho, um momento mediúnico. 

Em suma: o que Nevermind tem de assustador, tem também de visionário em suas intenções, digamos, radicais. Ele antecipa muito desse mundo distorcido, repleto de fake news, revisionismo histórico, neoliberalismo fraudulento e outras ideologias que só servem para manobrar o indivíduo, transformando a sociedade num enorme marionete. Não à toa ele morreu da forma como morreu, mas sem se dobrar ao sistema. E esse, com certeza, foi seu maior legado para o mundo do rock n' roll.

Não conhece o disco? Então corra agora ao Spotify, ao Deezer ou a qualquer outra plataforma musical de seu interesse e ouça. E mais do que ouvir a banda, sinta o que ela tem a dizer, sinta o cheiro do espírito jovem. Ele ainda está lá. Acredite: esse álbum ainda é das narrativas mais atuais sobre o mundo contemporâneo e o que fizemos com ele. Mas é para poucos! 

Logo, você está por sua conta e risco... 

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