quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Errar é humano


Errar é humano e ainda assim lidamos mal com nossos erros. No final das contas, somos seres repletos de dúvidas e desvios morais, que preferem fingir que o mundo se resume a certo ou errado, bem ou mal, esquerda ou direita. Ah quem dera fosse fácil assim trilhar a vida! 

Na procura por programações culturais e opções de lazer (e eu estou sempre atrás delas, ainda mais em tempos de pandemia, isolamento social e uma sociedade louca - ou cafajeste, o que muitas vezes dá no mesmo - que adora desrespeitar regras) me deparo com um convite que aparece em minha página no facebook. Uma peça. Seu nome: Ítaca 365, apto 23

Trata-se de um monólogo dirigido e protagonizado pelo ator Cacá Carvalho, mais conhecido no país pelo papel que fez de Jamanta em duas telenovelas na Rede Globo. O texto, inspirado em A odisseia, de Homero, é de autoria da dupla Vinícius Calderoni e Guilherme Gontijo Flores. Mas não exijam deles a fidelidade precisa à tragédia grega, embora ela dite o tom da agonia sofrida pelo protagonista. A proposta aqui é bem outra. 

Esqueçam as viagens e a saga vivida na tragédia. O tormento aqui gira em torno de um mísero apartamento. Nele, Odisseu (Cacá Carvalho) rói e ao mesmo tempo se alimenta de suas perdas e dores. Ele é a testemunha viva das escolhas infelizes que fez ao longo da vida. E por causa delas, perdeu a mãe - provavelmente sua maior lástima -, Penélope (Vera Sala), o grande amor da sua vida e seu filho Telêmaco (Theo Retti). 

Agora, trancado entre aquelas paredes frias, em meio a estantes cheias de livros, e pertences pessoais que só lhe fazem trazer memórias amargas, ele busca respostas. Procura na sua própria aflição um hiato ou, quem sabe, um novo ponto de partida. Enquanto isso, ouvimos atabaques dilacerantes (contribuição muito bem-vinda por parte de Paulo Santos) e nos perdemos na penumbra e no vazio desse cenário inóspito. 

Vale aqui um adendo para elogiar o brilhante trabalho de Márcio Medina, que constrói uma direção de arte às vezes soturna, às vezes cheia de nostalgia. E também meus mais sinceros elogios à Junae Andreazza pela extraordinária fotografia. Talvez se o trabalho de ambos fosse feito num teatro de dimensões grandes não me chamasse tanta atenção como chamou...

Em aproximadamente 50 minutos nos deparamos de forma concisa, mas não menos precisa, com um inteligente ensaio sobre a perda e as consequências que ela nos traz. E o fato de estarmos vivendo, como sociedade, um ano de incertezas, cai como uma luva para um texto tão amargo e contemporâneo. 

Durante toda a encenação me peguei pensando num sem número de autores que li ao longo da minha vida que sempre foram rotulados de inconsequentes, antiéticos ou mal vistos. Refiro-me à Nelson Rodrigues, Charles Bukowski, Augusto de Anjos, Henry Miller, até mesmo o prêmio nobel José Saramago (que foi exaustivamente demonizado na época da publicação de seu extraordinário e não menos polêmico O evangelho segundo Jesus Cristo). 

E me dei conta de duas coisas: primeiro o diálogo entre eles e a melancolia de Odisseu, que é legítima e praticamente insuportável. E segundo que eu fiz a coisa certa ao escolhê-los como meus confidentes literários. Eles continuam atualíssimos. O mundo é que parece ter caminhado para trás. 

E é preciso que isso acabe a partir de 2021. O quanto antes. Pois do jeito que a coisa vai, se continuarmos nessa toada, não sei não! 

P.S: para quem quiser saber mais sobre outros projetos como esse, procure pela #CENAWEB no site http://teatroemmovimento.com.br/. Certamente salvou a minha noite calorenta e monótona. 


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