quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

O último beatnik


Eu comecei a ler a beat generation novo e por acidente. Um exemplar de Tristessa, do autor Jack Kerouac, apareceu numa lixeira do prédio onde eu morava nos anos 90 (e eu sempre achei um crime cultural quem joga livros no lixo!). Comecei a folheá-lo sem a menor expectativa e me peguei surpreso com o estilo narrativo. Terminada a leitura, fui à biblioteca pública mais perto de casa e perguntei ao atendente se ele possuía outros volumes do mesmo autor. E então ele me disse: "você é fã da beat generation?". 

Foi assim, desse jeito, que eu fiquei sabendo da existência daquele grupo de escritores revolucionários que bateram de frente com o conservadorismo americano nos anos 1950. De Tristessa eu migrei para O uivo, de Ginsberg e de O uivo para Almoço nu, de Burroughs e On the road, também de Kerouac. E desde então eu não parei mais. E digo mais: foi a primeira vez na minha vida como leitor que eu me interessei por reler autores. Sim, porque a beat generation precisa ser relida, e muito. Quantas vezes forem necessárias. 

Logo, qual não foi minha triste surpresa ao ler ontem, numa série de sites da imprensa, sobre o falecimento do poeta Lawrence Ferlinghetti, aos 101 anos, e constatar que o grupo do qual ele fez parte perdeu seu último expoente. Isso mesmo: ele era o último dos beatniks vivo. 

Mais do que os livros que publicou (e foram muitos!), certamente a maior contribuição de Ferlinghetti foi a criação, ao lado de Peter D. Martin, em 1953, da City Lights Booksellers and Publishers, responsável pela democratização da literatura americana, oferecendo livros mais baratos de forma acessível ao público, bem como editou muitos dos clássicos que a beat generation eternizou. 

Que o diga o poema O uivo, que o levou ao banco dos réus por conta do seu conteúdo, visto na época como obsceno. Resultado: foi imediatamente censurado e perseguido pelo Estado e também pela mídia conservadora da época. Quando publicou o manuscrito original de On the road, cheio de erros ortográficos - como bem queria o seu autor - foi chamado de maluco pelo mercado editorial. Mas eles simplesmente não entendiam que Ferlinghetti estava (sempre esteve) à frente do seu tempo. 

Poeta, artista visual, editor, anarquista, embaixador cultural, guru da cena artística de São Francisco, papa da contracultura, pioneiro do movimento hippie... Difícil catalogar uma mente fervilhante como a de Lawrence Monsanto Ferlinghetti. De concreto mesmo apenas uma certeza: segundo o relatório oferecido por seu filho, Lorenzo, aos jornais, a causa mortis do artista foi uma doença pulmonar que já vinha consumindo-o há algum tempo. 

Por incrível que pareça, embora tenha lido muito sobre a vida do poeta, dos seus trabalhos literários só tive contato com um: Um parque de diversões na cabeça, publicado em 1958. O livro, que é uma crítica direta e irônica à cultura dos Estados Unidos, está entre os mais vendidos de toda a história americana e faz jus a isso. Detalhe: eu o encontrei por míseros oito reais num sebo no Catete. Não sei se chamo de sorte ou desrespeito ao autor!

Com Um parque de diversões na cabeça descobri logo de cara que a poesia de Ferlinghetti é um misto de ritmo e imagem. E no quesito ritmo, mesmo este é variado. É possível ver do Bebop ao Rap, passando por referências à Walt Whitman e Apollinaire. Com forte influência surrealista, seu texto é repleto de cenas delicadas, cotidianas, bem como jogos de luz e cor. Em outras palavras: é possível ao leitor, mais do que apenas ler, ver o que as suas palavras dizem. Trata-se de uma poesia quase hipnótica nesse sentido. 

Entretanto, sua poesia também está cheia de temas sociais e políticos, narrados de forma profunda, porém não menos poética. Ferlinghetti era, no fundo, um inconformado com os EUA do seu tempo. E teve razões para isso, principalmente quando o país entrou numa enorme catarse cultural e política por conta da derrota na Guerra do Vietnã. Ele fez parte da geração que bateu de frente com a Casa Branca e culpou Nixon pela abordagem frustrada durante o conflito. 

Eu poderia ficar aqui o dia inteiro falando de Lawrence e ainda assim não terminaria esse obituário, tamanha a capacidade mental e artística desse homem extraordinário. Não à toa ele fez, faz e sempre fará parte da minha formação cultural enquanto eu estiver vivo. Portanto, só me resta dizer "fica com Deus" e " muito obrigado por tudo". 

Ah! Faltou uma coisa: o senhor não sabe a falta que vai fazer para o mercado editorial daqui pra frente!


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