segunda-feira, 28 de junho de 2021

O comunicador acanhado


Num país de maioria não-leitora como o nosso quem decide resistir e ler procura sempre por bons textos e autores. Ficcionistas, jornalistas, ensaístas, intelectuais, não importa... Você, leitor de carteirinha, sempre procura quem valha a pena dedicar o seu tempo livre. Quando um autor de quem você gosta muito, por quem tem admiração aberta, parte é uma dor aguda. E sua primeira pergunta, na maioria das vezes, é: "o que é que eu faço agora para substituir essa senhora ou senhor extraordinário?". E quase sempre você não encontra substitutos à altura. 

Hoje, mais uma vez, será um desses dias...

Na noite de ontem desliguei o computador, fui para a sala, falei com minha tia e me deparei com a notícia (dada no Fantástico) da morte do jornalista Artur Xexéo, aos 69 anos. Ele havia recentemente descoberto que tinha um câncer do tipo Linfoma não-Hodgkin e vinha lutando bravamente contra a doença. Uma pena. 

Eu disse jornalista? Isso somente não explica quem foi Xexéo. Jornalista, colunista, cronista, dramaturgo, comentarista, jurado... Era difícil explicar esse senhor de jeitos tímidos e inteligência aguçada. Porém, antes de tudo isso acontecer ele precisou descobrir que a faculdade de Engenharia definitivamente não era para alguém como ele. Seu acanhamento e desejo de falar sobre arte e cultura falaram mais alto e se encontrou no jornalismo. 

Jornal do Brasil, Veja, Isto é e O Globo tiveram a honra de ter em suas páginas seu faro aguçado e seu jeito ímpar de escrever. Enquanto ouvia declarações emocionadas de quem o conhecia e chorou por sua perda, ouvi muitos deles dizendo que Xexéo reinventou a crônica e implantou um novo tipo de jornalismo cultural no país. E eu me peguei pensando: "eu sempre tive exatamente essa mesma impressão". 

Xexéo provou por a mais b que o coloquialismo também cabia naquele espaço. Falou de figuras do cotidiano, do dia-a-dia, dessas com quem você, eu e a torcida do flamengo esbarramos nas calçadas, avenidas, becos e viadutos. Para ele, tudo poderia ser assunto para um bom artigo. E foi por causa dessa característica que eu decidi lê-lo sempre que pude. Ele com certeza também ajudou a formar culturalmente esse arremedo de crítico que por aqui escreve de forma quase doentia. 

No JB foi editor do Caderno B e reformulou a revista de domingo, suplemento cultural da publicação. Em O Globo foi responsável pelo Rio Show e posteriormente o Segundo caderno, justamente a minha parte preferida do jornal desde sempre. Não bastasse isso foi comentarista da cerimônia do Oscar e de cultura e cotidiano do programa Estúdio i, na Globo News (em ambos, ao lado da também jornalista e amiga Maria Beltrão). E ainda arranjou tempo para participar da bancada de jurados do quadro Dança dos famosos, no Domingão do Faustão.  

E antes que vocês, leitores, digam que já está de bom tamanho... Não, não acabou. Xexéo também enveredou pelo teatro e a literatura. Para os palcos, escreveu os musicais A garota do biquíni vermelho (2010), Nós sempre teremos Paris (2012) e Minha vida daria um bolero (2018), além da dramaturgia de Cartola - minha vida é um moinho e a adaptação para o português do clássico de Alice Walker, A cor púrpura

Já para o mercado editorial ele publicou Janete Clair - a usineira de sonhos, sobre nossa maior novelista; O torcedor acidental, compêndio de crônicas sobre suas coberturas para as copas do mundo e seu volume mais famoso, a biografia sobre a cantora e apresentadora de tv Hebe Camargo, que virou um fenômeno de vendas, chegando a render uma série televisiva.  

E isso tudo porque era um "comunicador acanhado", como muitos que trabalharam com ele gostavam de nomeá-lo! Só faltou dirigir um longa-metragem. 

Em uma postagem de Merval Pereira, colega de O Globo, para o instagram, ele diz que com a partida de Xexéo o Brasil - esse que tem se esmerado, nos últimos anos, em destruir a cultura de forma covarde - piora. E eu concordo de olhos fechados. O país que lê (e esse é o que mais me interessa) perdeu bons textos, boa leitura, ficou mais pobre culturalmente. E nós não merecíamos isso. De novo, não. 

Fica com Deus, Xexéo. Você fez por onde!    


sábado, 26 de junho de 2021

A alma encantadora do Rio de Janeiro


É 23 de junho de 1921. 100 mil pessoas, homens e mulheres, populares como eu, você e todos os demais que leem este artigo, saem da Cinelândia em direção ao cemitério São João Batista, em Botafogo. Realizam um grande e emocionado cortejo em homenagem à Paulo Barreto, falecido aos 39 anos após um enfarte sofrido dentro de um téxi quando saía do trabalho. "Mas peraí", você me pergunta, "quem diabos é Paulo Barreto?". E eu me desculpo com os leitores na mesma hora. Trata-se do jornalista e escritor João do Rio, um dos maiores nomes da nossa literatura, tão maltratada nos últimos tempos. 

Na última quarta-feira a cidade do Rio de Janeiro "celebrou" (as aspas são por conta da pandemia, que não nos permitiu homenagear o autor do jeito que ele realmente merecia) o centenário da morte de João do Rio. E quando eu assisti a matéria feita sobre ele no RJTV eu quase fui as lágrimas, pois sou um grande fã do autor. Lembro-me da primeira vez em que tive em minhas mãos um livro de sua autoria. Era o inteligentíssimo A alma encantadora das ruas. E o meu mundo parou diante de tanta genialidade e classe. "Que fenômeno!", eu disse para mim mesmo.

João do Rio era dessas figuras que quem é leitor de verdade não esquece jamais e quando pode o relê, para não perder o costume ou não esquecer de seu estilo inconfundível. Sempre antenado com tudo e todos, fuçando a lama da hipocrisia social onde quer que ela estivesse. 

Negro, homossexual, vítima do racismo que nunca abandona este país covarde e tendencioso, João poderia perfeitamente - se vivo - ser mais um dentre tantos influenciadores digitais que andam tanto na moda atualmente (e acreditem: isso não é um clichê, mas uma constatação). Onde quer que a notícia estivesse, lá estava ele com seu bloco, caneta e faro apurado. Abandonou as redações para criar a reportagem de rua e a crônica carioca e com elas se manter mais próximo de onde os problemas e o povo estavam. 

O Rio de Janeiro daquele período passava por fortes transformações sociais. Eram tempos de cortiços sendo demolidos, pobres sendo jogados na rua da amargura para que a classe privilegiada pudesse morar em seus casarões luxuosos. E ainda por cima tinha quem chamasse isso de revitalização ou reurbanização (Pois é... Brasil). E João, que de bobo não tinha nada, muito menos a cara, subiu morros, foi ao cais do porto conversar com estivadores, pediu o voto feminino e o direito das mulheres ao divórcio, falou com a classe menos favorecida cara a cara, conheceu seus problemas, deu voz a eles. E isso foi mais um motivo para ser perseguido. Cobriu a inauguração do Theatro Municipal e escreveu até sobre carnaval. No final das contas, é melhor até perguntar o que ele não fez em sua curta vida. Em uma palavra: múltiplo.

A mesma matéria do jornal que quase me faz chorar ao lembrar de tão magnífico escritor, também me deixa triste. Mostra a placa da rua com o seu nome, em Botafogo, sem uma descrição sequer de seus feitos. Apenas o nome Paulo Barreto. Ou seja: quem por ali passa não faz a menor ideia - ainda mais num país de não-leitores como o nosso - de quem ele seja. Vergonha! 

João do Rio nos entregou obras memoráveis e atualíssimas que merecem ser redescobertas pelas novas gerações. Além de A alma encantadora das ruas, recomendo aos leitores desse texto os também ótimos Dentro da noite, Vida vertiginosa e As religiões do Rio. Neles, percebe-se claramente um homem de visão ímpar, que via as ruas como entes vivos, pensantes, capazes de tomar suas próprias decisões e não corroborava a ideia fanática dos tempos atuais que confundem fé com dogmas atrasados e preconceituosos. 

Chegou à Academia Brasileira de Letras, vestiu seu fardão glorioso, mas quando procuramos sua história com afinco vemos com clareza e nitidez que ali não foi necessariamente o seu lugar. Teve de enfrentar muito conservadorismo e intriga para se impor com suas ideias por vezes reacionárias. Enfim: ele não era apenas mais um engravatado. Seu lugar era narrando a luta do povo e o cotidiano carioca. 

Passado um século sem João do Rio, o que posso dizer de mais verdadeiro sobre ele é que era a alma encantadora do Rio de Janeiro e está fazendo muita falta no atual cenário literário, repleto de intelectuais metidos a besta, bobagens narrativas, livros de colorir, auto-ajuda e outras modinhas descartáveis que de tempos em tempos dão as caras nas prateleiras das megastores. Nunca foi tão difícil encontrar um bom autor contemporâneo. E pior: até encontrar grandes nomes do passado, como João, se tornou uma façanha. Culpa desse maldito politicamente correto que invadiu as ruas, as casas, as escolas, o país. 

Ah João! Tem certeza que não dá pra você reencarnar, não? Volta, pelo amor de Deus! O Brasil está precisando (e muito) de gente como você. Mas tem que ser agora.


terça-feira, 22 de junho de 2021

As outsiders


Por ter nascido do sexo masculino nunca entenderei de fato o que significa ser mulher num mundo tão machista como o nosso. E não adianta eu defender aqui a ideia de que fui criado por mulheres extremamente bem resolvidas, que me ensinaram que lugar de mulher não é só na cozinha e que elas não são uma categoria ou uma caixa a qual você mantém guardada 24 horas por dia e só abre quando lhe interessa. Não, não é a mesma coisa. Ter nascido mulher - acreditem! - é outro departamento. E por demais complexo para conseguir explicá-lo em poucas palavras. 

Dito isto, é engrandecedor ver todo esse movimento do empoderamento feminino e as mulheres dessa nova geração brigando por seus direitos e espaços. Se minha mãe e minha avó ainda estivessem vivas certamente estariam orgulhosas de ver toda essa revolução, essa luta diária. Mesmo que o machismo articulado e o feminicídio em massa dos últimos anos faça parecer a priori que a luta esteja um tanto quanto perdida. Não está. 

Leio na internet a notícia de que Thelma & Louise, longa hoje cult do diretor Ridley Scott, está completando três décadas de existência e no momento em que leio a matéria o meu cérebro relembra de todo o filme, de toda a experiência e do dia exato em que fui ao cinema para vê-lo. E ele continua mais atual do que nunca! 

Thelma (Geena Davis) e Louise (Susan Sarandon) chegaram naquele ponto da vida em que você se pega dizendo para si mesmo "já deu!" e precisam urgentemente de um novo caminho. Principalmente Thelma, que não bastasse a rotina insuportável e as agruras da vida familiar, ainda tem de aturar um marido autoritário que acredita piamente que ela deve seguir as diretrizes do que ele acredita ser o mais correto ou sensato. Incentivada pela amiga transgressora elas saem juntas numa aventura e tudo parece seguir o plano que elas imaginaram. Entretanto, numa parada num bar de beira de estrada uma fatalidade acontece e elas se tornam, do dia para a noite, fugitivas da justiça. 

É nesse momento que entra em cena o agente Hal (Harvey Keitel), responsável por caçá-las e prendê-las. Mais do que isso, ele representa o eterno senso de moralidade que a sociedade vive imputando em nós dia a dia. Não há de fato um interesse legítimo dele em averiguar a história real por trás da tragédia que as acometeu. Ele precisa, isso sim, prender as duas assassinas. É assim que a a sociedade, a mídia, o sistema em geral as enxerga agora. Qualquer outra informação ou versão dos fatos é meramente coadjuvante.  

Apenas dois homens são capazes realmente de entender Thelma e Louise. J.D. (Brad Pitt, em início de carreira), o perfeito amante que Thelma precisa para encarar aquela "nova realidade" e o exato oposto do seu marido mandão, e por isso mesmo descartável e Jimmy (Michael Madsen), um homem do passado de Louise que nunca entendeu totalmente as escolhas dela nem porque ambos não ficaram juntos lá atrás, mas a respeita bem como suas decisões. No mais, todos veem a dupla como o problema e não a solução. Logo, elas fogem. 

Contudo, mais importante do que a fuga em si e as desventuras pelas quais elas passam, é o fato de que precisamos entender que ambas são, no fundo, outsiders. Não pertencem a nenhum grupo pré-determinado desta sociedade que só sabe rotular as pessoas e ainda por cima cansaram de jogar segundo as regras incômodas da boa conduta. Para elas, todo esse discurso moral e castrador, a cabeça baixa, o "sim, senhor e não, senhor" diários não atendem em nenhum nível a necessidade de serem livres, donas de seus próprios narizes. E por conta desse choque de valores elas são transformadas em exemplo, para que futuras mulheres não tenham a mesma ideia que elas e se rebelem. 

Você pode até me dizer ao final da película que Ridley Scott não teve de fato esse pensamento, que ele não criou a dupla visando essa postura, mas quando acompanhamos o jeito com que ele narra a história, como esmiuça o texto de Callie Khouri (vencedora do Oscar de melhor roteiro original pelo longa) e permite a Geena e Susan que falem abertamente, sem rodeios, cansadas de serem apenas a esposa, a companheira, a amante, putz!, é inegável que havia ali toda uma abordagem feminista e, não somente isso, precursora de uma era. Que me critiquem os moralistas, se quiserem, mas vejo Thelma & Louise, sim, como um grande libelo pela emancipação feminina. E realizado de forma elegante, sem caricaturas ou clichês óbvios. 

Impossível não se deparar com filmes recentes como Bela Vingança, Adoráveis mulheres e As sufragistas e não levar em consideração a importância do discurso dessas duas mulheres perseguidas, que não tiveram o menor direito de se defender ou mesmo explicar suas razões. E tudo isso por simplesmente pertencerem ao tal "sexo frágil", expressão execrável criada com o único intuito de determinar quem pode o que, quando, onde e como na atual sociedade. 

No final das contas o filme de Ridley Scott é mais um a entrar para uma lista de obras cinematográficas indispensáveis, que não envelheceram com o tempo e precisam ser vistas (pelas novas gerações) e revistas (pelas que já a assistiram pelo menos uma vez) sempre que possível. Pois como todos sabemos, ou deveríamos saber, o preconceito ao tema mulher continua por aí. E pior: lutando contra de maneira cada vez mais brutal e covarde. Logo, desistir nunca foi uma opção para elas. 

E diferentemente dos outros homens, eu acredito que essa covardia também deveria ser um assunto nosso... Do contrário, nada muda. Nunca.        



sexta-feira, 18 de junho de 2021

O oráculo da alienação


Não é de hoje que a sociedade procura pela ajuda de salvadores da pátria ou de oráculos e suas insólitas previsões acerca do futuro. Os de Delfos e Tebas se tornaram famosos no passado por reunirem milhares de pessoas à procura de dias melhores ou soluções futuras para seus problemas imediatos. E acreditem: às vezes eu tenho a impressão de que a humanidade tem mais interesse por aquilo que ainda vai acontecer do que por aquilo que está acontecendo neste exato momento. Que o diga o Brasil no qual estamos vivendo atualmente, cheio de negadores e criadores de teorias da conspiração as mais diversas! 

Contudo, é preciso fazer um grande aparte para incluir na discussão um tema que não era tão premente em outras épocas históricas. Falo da tecnologia e do "mundo de facilidades" que ela supostamente criou. Talvez muitos leitores deste texto me acusem de covarde ou presunçoso, mas uma verdade é nítida: nunca vendemos tanto gato por lebre na atual sociedade, sob a desculpa de que "este ou aquele seria o caminho mais fácil para atingirmos nossos objetivos mais urgentes". Inclua nesse pacote a famigerada literatura de auto-ajuda e seus manuais de regras fajutos e a cegueira muitas vezes proposta pela cultura nerd (e digo cegueira quando ela só está interessada em que olhemos para um único caminho ou vejamos apenas uma única possibilidade de escolha) e bum! está criado um conflito. Na verdade, está instaurada a bíblia do caos pós-moderna. 

Precisei de dois parágrafos para introduzir o espinhoso tema, mas ainda assim faltou acrescentar uma informação importantíssima: sempre desconfiei de tudo, absolutamente tudo, que ganha ares de fenômeno da mídia com muita facilidade. Para mim, nada que explode ou ganha fama com muita rapidez é realmente necessário para nossa subsistência. Só serve mesmo para aumentar ainda mais a já descartável por natureza indústria da vaidade, que rege nossos passos, nossos caminhos e, se deixarmos, até mesmo a nossa fé. E eis então que me deparo com o Tik Tok, a rede social do momento, onde podemos postar vídeos sobre tudo. Tudo mesmo. 

Para quem acreditava que facebook, twitter, instagram, tumblr e outras redes já eram suficientes para aplacar o desejo de "eu quero ser mais, muito mais, agora" da coletividade humana, acreditem nisto então: a situação pode piorar. E muito. Andy Wahrol dizia que no futuro "todos teriam os seus 15 minutos de fama". Ele só não disse que fama seria tão efêmera e inútil na maior parte do tempo.  

Entro no site e logo de cara entendo o porquê de tanto alarde e tanta mídia falando dele. É vazio, artificial, cheio de pequenas manias e delicadezas que são a cara dessa nossa sociedade sem referências. Em poucas palavras: um grande totem onde a idolatria é mais importante do que o conteúdo em questão. E são vários os exemplos que ilustram o quão desnecessário é realmente o site: piadinhas inúteis por onde quer que se olhe, anônimos e suas dancinhas sem noção que grudam na mente de qualquer um com a maior facilidade (e acreditem: de dancinha sem finalidade alguma o brasileiro médio entende como poucos!), bichinhos fofinhos - e não me refiro somente à cães e gatos - prontos para arrancar um ahnnn... do espectador mais apaixonado por animais e frases de efeito do tipo "não romantizem a pobreza" ou "chega de mimimi" são o máximo que você encontrará de narrativa por aqui, tendo em vista o nível intelectual de quem produz tais vídeos em sua grande maioria. 

Para completar o cenário vazio, mas não menos melancólico, a terrível fauna dos adoradores de políticos, receitas gastronômicas sobre praticamente tudo, famosos, famosos e mais famosos. Atualmente quem tem ganhado muito destaque por aqui é a Juliette, vencedora da última edição do BBB, mas procurem! Vocês certamente irão encontrar muito "famoso quem" dando sopa pelas páginas do Tik Tok. Até porque essa rede social foi criada justamente com essa intenção. E, claro, faturar em cima de anunciantes os mais diversos. 

O maior legado produzido por esta "invenção" certamente foi a certeza de que caminhamos para um futuro negro e niilista, no que diz respeito à evolução da humanidade. Lembro-me de uma declaração anos atrás proferida pelo cantor Guilherme Arantes num talk show em que condenava a postura da sociedade mundial que só pensava em festas e comemorações, sem o menor comprometimento com a realidade. Pois bem: vejo o Tik Tok e o que porventura possa aparecer depois dele como um grande glamurizador dessa realidade. 

Uma matéria do jornal El País fala abertamente sobre os contra-apocalípticos, uma geração atual que não quer saber de ouvir sobre catástrofes, prefere permanecer na zona de conforto oferecida por seus casulos festivos e evasivos. É triste, eu sei... Mas atual. Muito atual. E tenho certeza que muitos desses possuem conta no Tik Tok, postam regularmente suas bobagens.  Memes, aplicativos que envelhecem, que transformam pessoas em animações... Tudo está lá, com a maior facilidade. Difícil mesmo é saber se algum deles consegue falar corretamente o próprio idioma. "Mas aí também", alguns irão me dizer, "já é querer demais". 

E diante de uma declaração dessas decido sair da página o quanto antes. Definitivamente não é a minha praia. Mais: não é o meu mundo.

Quem quiser saber mais, só entrando. Só não prometo aos lúcidos que não irão ficar viciados nisso! Porque sim, é viciante. Tenho um vizinho, inclusive, que chama as redes sociais em geral de "a cocaína do século XXI". E eu confesso a vocês que em muitos sentidos ele parece estar coberto de razão. O que é terrível. 

No final da contas, fiquei com uma certeza: Second Life e The Sims perto disso aqui é brincadeira de criança. Sério.   


segunda-feira, 14 de junho de 2021

O arqueólogo mais famoso do cinema


"O cinema precisa de heróis. Sem eles, a sétima arte não teria a menor graça". A frase é do meu pai que já se encontra no andar de cima e me ensinou a admirar os clássicos e também o bom cinema. E ele estava coberto de razão. Por mais que, em alguns momentos, Hollywood tenha se perdido com a cultura excessiva dos super-heróis e a eterna batalha contra a destruição do mundo, ela também nos ensinou a acompanhar a jornada de grandes homens e mulheres imbuídos do desejo de fazer a coisa certa. E, como sempre, fazer a coisa certa nunca é uma tarefa fácil. Que o diga o arqueólogo mais famoso da história do cinema, Indiana Jones. 

Quando o diretor Steven Spielberg trouxe às telas o hoje cult professor de arqueologia que, nas horas vagas, entre uma aula e outra, enveredava por missões quase impossíveis, ele já era um cineasta renomado. Fosse pelo arrasa-quarteirão Tubarão ou pelo exuberante Contatos imediatos do terceiro grau, meu filme favorito dele. Contudo, ele ainda não havia trabalhado com o ator Harrison Ford, que chegou a ser rotulado pela indústria por um bom tempo como o "astro do século" e homem por trás de personagens célebres da história do cinema americano, como Han Solo e Deckard do também cult Blade Runner - o caçador de androides. A parceria tinha tudo para dar certo, tanto que deu e os fãs agradecem por isso até hoje. E seu pontapé inicial, Indiana Jones e os caçadores da arca perdida, está completando quatro décadas em 2021. 

Na produção, o arqueólogo e desbravador procura pela arca da aliança, que contém as pedras com os dez mandamentos. E foi, com certeza, uma saga hercúlea encontrar o tão cobiçado objeto, alvo do interesse também de nazistas que fizeram de tudo para atrapalhar Indy e sua sócia, Marion (Karen Allen). Como eu era bem pequeno nessa época, tinha menos de cinco anos, não tive a honra de assisti-lo numa sala de cinema. E confesso aqui: me ressinto disso até hoje. Se o hoje clássico já é notável nos formatos DVD e Blu-Ray, imagina então na tela grande. 

Três anos se passam e por conta do sucesso de bilheteria do longa original Spielberg e Ford retomam o projeto em 1984 com Indiana Jones e o templo da perdição, até hoje meu favorito de toda a franquia. Nele, Jones precisa encontrar as três pedras sagradas de uma tribo na Índia que foram roubadas por um inescrupuloso feiticeiro, também responsável pelo sequestro das crianças da mesma tribo e também por uma série de cultos malignos que envolvem sacrifício humano. Houve um período em que eu era tão fanático pelo filme, que era reexibido exaustivas vezes na Sessão da tarde, que cheguei a vê-lo mais de 20 vezes sem enjoar um segundo sequer! 

Resultado: mais um sucesso de público e após mais um hiato, desta vez de cinco anos, Spielberg e Ford realizam em 1989 - no que se esperava, um encerramento de uma trilogia - Indiana Jones e a última cruzada. Aqui, Jones acompanhado de seu pai (vivido pelo eterno James Bond, Sean Connery), procuram pelo lendário Santo Graal enquanto tentam escapar, mais uma vez, de nazistas também loucos para pôr a mão na relíquia. Esse foi o primeiro filme da franquia a que eu assisti, pois na época acabara de completar 13 anos e fui correndo ao cinema para conferir. Obs: havia uma fila gigantesca na entrada da sala de projeção, fãs notórios e eternos da franquia. 

E parecia que o legado proposto pela dupla havia chegado ao seu término. Pois é,.. Era realmente o que parecia. Mas não. Quase 20 anos depois eles reúnem, cabelos grisalhos, para realizar em 2008 o longa mais fraco da parceria, Indiana Jones e o reino da caveira de cristal, com direito a presença de um filho para Indiana Jones (interpretado pelo ator Shia Labeouf), fruto de seu relacionamento com a antiga sócia e amada Marion. Eles procuram pela estatueta que dá nome ao longa, enquanto cruzam de tempos em tempos com a maléfica Irina Spalko (Cate Blanchett) e seus lacaios soviéticos, sempre aptos a matar o professor e sua prole. 

E para os que acham que acabou... Nada disso, meus caros leitores! Vem aí um quinto longa para o herói, mas dessa vez sem Spielberg na cadeira de diretor, que cede o lugar para o também interessante James Mangold, responsável por filmes como Logan, Copland e Ford vs. Ferrari. Mas não se preocupem, pois o herói original repetirá seu personagem, para júbilo dos fãs. 

Ah! Acabei de me lembrar. E para que não me acusem de esquecimento, a franquia ainda teve entre os anos de 1992 e 1993 uma série televisiva derivada que durou duas temporadas e 28 episódios com o ator Sean Patrick Flanery na pele do arqueólogo e professor. Foi exibida aqui no país pela Rede Globo.  

O melhor legado que consigo extrair de Indiana Jones foi o fato dele ter transformado minha adolescência num lugar muito mais divertido. Indy caçou tesouros ao redor do mundo, fugiu de tiros, encarou duelos (alguns de forma um tanto inusitada), pilotou aviões, saiu na porrada meio que de 15 em 15 minutos, brigou com o pai, foi traído por mulheres que amou, correu, se arrastou, sujou as mãos, cruzou com Hitler, esmurrou alemães e russos por onde passou, ufa!, acho que é mais fácil dizer o que o herói não fez. Ou AINDA não fez. Porque pelo andar da carruagem ele ainda tem muito o que aprontar e como bem disse um artigo que eu li sobre a chegada do quinto filme da franquia: "os heróis não envelhecem".

Quanto a vocês, jovens cinéfilos, que não pertencem à geração que acompanhou as aventuras e desventuras de Jones na devida época e acham que heróis mesmo quem produz com exclusividade é a Marvel e a DC, fica aqui o meu convite: procurem. Tenho certeza que se derem uma chance ao velho professor (e ele não parece demonstrar o menor interesse pela aposentadoria) não irão se decepcionar. 

Agora é com vocês!


quinta-feira, 10 de junho de 2021

Vizinhança amarga


Tem quem chame os quadrinhos de arte marginal até hoje (e eu nunca vou conseguir entender de fato as pessoas que pensam o formato dessa forma, diminuindo-o). Will Eisner, mestre da arte sequencial, é o maior exemplo do quanto esse preconceito é injusto e equivocado. Criou um personagem - o detetive Spirit - que o tornou célebre para o resto da vida e obras monumentais que em nada deixam a desejar à grandes clássicos da literatura universal. Ele próprio, inclusive, adaptou para a nona arte muitos desses clássicos, chegando em alguns momentos a reinventá-los, como fez por exemplo com Oliver Twist no seu último grande álbum, Fagin, o judeu

Contudo, há um ponto na obra de Eisner que para mim é incontestável no que diz respeito à genialidade do artista. Digo mais: é praticamente uma pedra fundamental de todo o seu currículo. E ela se chama Avenida Dropsie. Sei que gosto não se discute e qualquer leitor que porventura venha a ler este mísero artigo tem o devido direito a escolher o seu próprio álbum favorito dentro de tão extraordinária obra. Porém, considero às vezes um perjúrio quem não consegue enxergar Avenida Dropsie como uma grande obra-prima de sua lavra. 

A graphic novel, que teve como referência direta a deterioração imobiliária e cultural do sul do Bronx no início da década de 1960, trata da ascensão e queda de uma comunidade norte-americana lá pelos idos de 1870 até quase o final do século XX. E há inclusive quem veja margem para defender a ideia de que a região era amaldiçoada desde a sua fundação, por conta das inúmeras e sucessivas tragédias ocorridas ali. 

Da eterna rivalidade entre Tim O'leary e Sean O'brien até a chegada dos primeiros imigrantes vindos para a América na época da primeira guerra mundial, Eisner delineia uma grande crônica cheia de requintes macabros e dolorosos, bem no estilo "a vida como ela é". Americanos, irlandeses, judeus, latinos, as mais diferentes etnias e nações disputando com unhas e dentes o seu território, apegando-se à vida como quem luta contra uma doença terminal. Assim é a vida nessa vizinhança amarga e cruel.  

Há uma fauna social das mais degradantes ditando o ritmo e a vida deste lugar: sindicatos, fundação de partidos visando às práticas mais inescrupulosas, corrupção, chantagem, prostituição, suicídios encomendados, pessoas metralhadas no meio da rua, oportunistas por todos os lados, o eterno apego cego às antigas tradições, casais de religiões divergentes que não podem ficar juntos, venda ilegal de bebida alcoólica, charlatães metidos a místicos e profetas, viciados em drogas, traficantes etc... 

E o resultado desta equação maléfica é o crescimento da barbárie e, por conseguinte, da desesperança. Logo, quem tem juízo mete o pé o quanto antes. E quem não pode por falta de recursos para tal se transforma em refém desse quase calabouço das almas. 

E como pano de fundo, de forma inteligente, Eisner insere elementos históricos que ajudam a explicar melhor o quanto ser norte-americano foi extremamente difícil em muitos momentos. A queda da bolsa de Nova York, que deixou o país numa profunda depressão; a segunda guerra mundial e o ataque à Pearl Harbor e a guerra do Vietnã com todas as mentiras que a Casa Branca criou para convencer jovens sonhadores a lutar pela pátria complementam todo o cenário de catástrofe e meio que antecipam o que aquela comunidade acabou se tornando com o tempo.

Do ponto de vista visual falar qualquer coisa aqui é como chover no molhado. Trata-se de um dos maiores gênios da história dos quadrinhos em todo mundo. O cara que inventou o conceito de graphic novel e se dizia, em entrevistas, um escritor que trabalhava com imagens. Precisa dizer mais alguma coisa? Ah precisa! Toda vez que eu leio Eisner - e essa é apenas a segunda vez que eu resenho um álbum dele por aqui - me dá uma extrema inveja. Sempre quis ser desenhista, mas nunca tive a menor aptidão ou talento para tal. E ver seus traços precisos, a grandiosidade com que compõe cenários, é magnífico. Ele consegue fazer tudo parecer tão fácil. Mas não é. E por isso tão poucos chegaram tão longe quanto ele!

À medida que vamos nos aproximando do final da história e entendemos que o desfecho será amargo, o autor acerta de novo mostrando que não importam as decisões que sejam tomadas por especuladores e políticos dispostos a revitalizar uma região, um bairro ou uma cidade, pois é o preconceito dos moradores que acaba com qualquer lugar. O verdadeiro problema é a falta de respeito da humanidade por quem é culturalmente diferente. Essa é que precisa ser a verdadeira transformação da vizinhança e não simplesmente reconstruções ou gentrificações (um termo, aliás, que anda muito na moda nos últimos tempos). 

Enfim... De certeza mesmo apenas uma. A de que eu preciso trazer mais do mestre Will Eisner para este espaço aqui. O mundo das artes visuais nunca precisou tanto de talentos como o dele quanto agora, em tempos de crise e negação. E olha que este fenômeno editorial que já tem mais de um quarto de século de vida é apenas o pilar de uma obra extremamente reflexiva, que precisa ser conhecida pelas novas (e alienadas) gerações o quanto antes.

P.S (na verdade duas dicas): já que eu mencionei que Eisner é o pai da graphic novel, quando tiverem tempo procurem também por Um contrato com Deus, que deu o pontapé inicial em toda essa jornada. E em 2005 o diretor Felipe Hirsch - responsável pelos longa-metragens de cinema Severina e Insolação - fez uma montagem teatral de Avenida Dropsie que foi muito elogiada pela crítica. Procurem. Vocês não vão se arrepender!


domingo, 6 de junho de 2021

Um conto de fadas às avessas


Embora eu não seja um fã apaixonado pelos contos de fadas (pelo contrário!), é de notório conhecimento que o gênero é um grande agregador de admiradores os mais diversos ao redor do mundo. E uma grande responsável por toda essa paixão se concretizar são os estúdios Disney. Mesmo em tempos de Pixar, 3D e outras tecnologias, os mais velhos não se esquecem da época em que fábulas como Branca de neve e os sete anões e Bambi faziam lágrimas saírem dos olhos deles quando eram crianças. 

São muitos os autores que tornaram o gênero popular nos quatro cantos do planeta terra. Os irmãos Grimm, Charles Perrault, Hans Christian Andersen e Esopo certamente fazem parte da alta cúpula deste segmento. Contudo, precisamos admitir também que os contos de fadas precisaram se diversificar e abrir sua mente para novas ideias, abordagens e conceitos. Quem não se lembra do polêmico livro Contos de fadas politicamente corretos, de James Finn Garner, que tanta dor de cabeça trouxe aos mais moralistas quando foi lançado por aqui?

Imagine então pegar uma personagem que originalmente foi vendida desde o início como uma vilã e transformá-la, a partir de um remake, numa quase anti-heroína... Pois bem: foi exatamente essa a sensação que eu tive ao final da sessão de Cruella, novo filme do diretor Craig Gillespie (responsável pelo também ótimo Eu, Tonya). 

Cruella nos traz a história de origem da clássica "vilã" Cruella de Ville. Acompanhamos a ainda criança Estella (vivida pela atriz-mirim Tipper Seifert-Cleveland e por Emma Stone - por sinal, radiante do início ao fim - na fase adulta) pela infância difícil, o bullying na escola, o grande fantasma da diferença que pairava sobre ela já naquele tempo. Quando a mulher que a criou morre numa tragédia envolvendo dálmatas, o mundo daquela pobre menina rui. E não fossem os dois garotos e, posteriormente amigos inseparáveis, que conheceu naquele tempo, Jasper (Joel Fry) e Horace (Paul Walter Hauser), ela certamente não teria chegado à adolescência. 

Pois ela chega e com ela o desejo de Estella se tornar estilista. Seu maior sonho: trabalhar para a Baronesa (Emma Thompson, espetacular!). Entretanto, uma reviravolta nos fatos a fará descobrir sua história verdadeira e com isso ela precisa tirar a patroa, rainha da moda em seu país, da jogada. Mais do que isso: ela quer ser a nova sensação do mundo fashion. E, com certeza, possui o talento e a vontade necessárias para isso. 

Destaque imprescindível: adorei o trabalho que o diretor realizou em cima da indústria da moda e dos desfiles psicodélicos e exagerados. De vez em quando eu fuço nos sites de vídeos e me deparo com desfiles criados por grandes estilistas do momento e fico impressionado, em certas ocasiões, com o nível de paranoia e surrealismo que envolve esse setor. Há, inclusive, desfiles que quase beiram o irreal. Acreditem: para aqueles espectadores que tenham a intenção de chamar esse aspecto do longa de "isso é história de filme; na vida real não é bem assim", refaçam seus julgamentos. Há muita loucura e exagero nesse mercado, sim!  

Entre o duelo de forças entre Estella (agora, Cruella) e Baronesa, acredito mesmo que o maior legado do filme foi ter criado meio que um conto de fadas às avessas. Digo isso porque sabemos de antemão - e quem não sabe, veja 101 dálmatas o quanto antes - o que Cruella se tornará com o passar dos anos. E ela não se encaixa na figura de princesa que a Disney sempre gostou de vender. Você pode até considerá-la um gênio incompreendido; já uma mocinha frágil, desprotegida, que espera ansiosamente o beijo do príncipe, jamais.

E não fiquem putos, ó amantes do maniqueísmo! Isso é justamente o que o longa de Gillespie tem de mais interessante a nos entregar. 

Termino de ver a película e me deparo com vários canais sobre cinema na internet chamando essa versão de Cruella de "o melhor live action da Disney dos últimos anos". Quer saber? Eles (ou elas) não estão muito errados, não! Depois de me decepcionar com Alladin sem a eterna voz do Robin Williams, Dumbo e o mais recente Mulan, foi extremamente gratificante me deparar com uma produção tão bem cuidada e estilosa. Ficam, aliás, aqui meus mais entusiasmados cumprimentos a dupla Jenny Beavan e Tom Davies - que fez os figurinos maravilhosos -, à Fiona Crombie, responsável pelo design de produção bem como a toda a equipe que criou a direção de arte esplendorosa.

Cruella não é um estudo de caso sobre a origem da maldade de um ser humano, mas realiza uma interessante reflexão sobre mudança de paradigmas e nos mostra que mesmo as pessoas geniais que tanto idolatramos tem uma história de vida a qual não necessariamente nós, seus fãs mais ardorosos, iremos nos orgulhar. E isso também precisa ser mostrado de vez em quando, e não somente heróis e vilões trocando socos e pontapés.  

P.S: eu confesso que tinha bronca da atriz Emma Stone. Acreditava que ela seria apenas mais uma invenção de hollywood. Mas aqui, para minha total surpresa e júbilo, ela queimou a minha língua. Mesmo.     


quarta-feira, 2 de junho de 2021

Esse bravo povo miscigenado


Olho para a rua toda vez que saio nesse último ano, ano e meio, impactado pela pandemia, e vejo rostos tristes em todos os lugares. Semblantes cansados, amargurados; outros raivosos, indignados com a situação atual do país. E fico admirado de ver também pessoas completamente mal informadas dizendo: "nunca passamos por algo igual". Não é verdade. 

O Brasil já passou por muitos revezes. Em 1929, por exemplo, com a queda da bolsa de Nova York, o mundo ruiu e nós, brasileiros, também sentimos a pancada forte por aqui. Isso sem contar a Gripe Espanhola que matou milhões ao redor do mundo e não deixou de dar as caras em nossa terra. Contudo, as pessoas sempre preferem não lembrar do passado ou rotulá-lo de mentiroso. Adoram mesmo é ficar presas à sua zona de conforto. 

Por que estou falando tudo isso? Porque esta semana eu vi aleatoriamente num site da internet sobre história da arte a imagem do quadro Operários, pintado em 1933 pela artista Tarsila do Amaral, musa da Semana de Arte Moderna de 22 (que ano que vem completa seu centenário) e fiquei boquiaberto com as semelhanças que ela me trouxe com o país atual, também perdido, à deriva em meio a tantas incertezas. 

Operários traz uma série de rostos (mais especificamente, 51) fatigados, perdidos, temendo pelo futuro, em frente a uma fábrica cuja chaminés expelem monóxido de carbono a toda força. São pessoas das mais diferentes etnias e nacionalidades. E digo isso porque a tela remete a um fenômeno que aconteceu em nossas terras nesse período. 

Em 1933 São Paulo vivia o boom da industrialização e muitos migrantes deram as caras por lá, desesperados à procura de emprego. Eram milhares de indivíduos sonhando ardentemente com dias melhores. Muitos viam naquela a última chance de um emprego digno, em meio a tantos desafios e a um país que, como o resto do mundo, lutava para se reerguer da crise que assolara o planeta e tirou a vida de tantas pessoas. 

Entre brancos, negros, pardos, asiáticos, indígenas e tantos outros, é possível identificar aquilo que o nosso povo tem de mais característico e, entretanto, muitos preferem negar ou varrer para debaixo do tapete. Falo da miscigenação. 

Os conservadores e arianos que habitam nossa terra há priscas eras vão mentir, fingir, xingar, fazer de tudo para ocultar esta informação, mas não adianta. Ainda somos - e provavelmente sempre seremos - um país de mestiços. De mulatos, morenos, mamelucos, cafuzos (alguém por aqui ainda lembra daquela aula na escola? Acho que eu tinha meus 12 anos quando ouvi falar da mistura entre brancos e negros, brancos e índios, negros e índios, etc etc etc). E qualquer habitante desta pátria que prefira pensar o contrário no fundo não passa de um tolo ou um ignorante.

Esqueçam por um breve momento a paleta de cores, a textura, o plano de fundo... Na verdade, mais do que um quadro, Operários é uma aula de história por si só. Mais ato político do que muitas manifestações que andam em voga hoje em dia. Fala de um passado que ainda está incrustado dentro de nós. A miséria, a luta de classes, a falta de oportunidades para uma grande parte da sociedade, a labuta diária dos que ainda sobrevivem em meio ao caos, está tudo ali, sem rodeios, desculpas esfarrapadas ou militância midiática. 

O quadro de Tarsila - ela própria, uma artista que sempre fez questão de mostrar as nuances do nosso povo, nossas distorções; que o diga Abaporu, sua tela mais famosa - deveria ser assunto das salas de aula quando a pandemia acabar, mesmo antes, nas aulas online. É um estudo de caso sobre a desigualdade que move esse país. E também o retrato vivo desse nosso povo múltiplo que adora se fingir de internacional e nega suas próprias raízes.  

Espero que um dia a sociedade cega e alienada acorde e veja o pais com os olhos de Tarsila: de forma mais lúcida e coerente. Enquanto isso não acontece, para quem quiser ver o quadro com os próprios olhos ele faz parte do acervo dos palácios do governo do estado de São Paulo, mais especificamente do Palácio Boa Vista, em Campos do Jordão. 

Procurem! Pois vale a pena tanto a referência como o fato da realidade do país não ter mudado tanto assim...