quarta-feira, 2 de junho de 2021

Esse bravo povo miscigenado


Olho para a rua toda vez que saio nesse último ano, ano e meio, impactado pela pandemia, e vejo rostos tristes em todos os lugares. Semblantes cansados, amargurados; outros raivosos, indignados com a situação atual do país. E fico admirado de ver também pessoas completamente mal informadas dizendo: "nunca passamos por algo igual". Não é verdade. 

O Brasil já passou por muitos revezes. Em 1929, por exemplo, com a queda da bolsa de Nova York, o mundo ruiu e nós, brasileiros, também sentimos a pancada forte por aqui. Isso sem contar a Gripe Espanhola que matou milhões ao redor do mundo e não deixou de dar as caras em nossa terra. Contudo, as pessoas sempre preferem não lembrar do passado ou rotulá-lo de mentiroso. Adoram mesmo é ficar presas à sua zona de conforto. 

Por que estou falando tudo isso? Porque esta semana eu vi aleatoriamente num site da internet sobre história da arte a imagem do quadro Operários, pintado em 1933 pela artista Tarsila do Amaral, musa da Semana de Arte Moderna de 22 (que ano que vem completa seu centenário) e fiquei boquiaberto com as semelhanças que ela me trouxe com o país atual, também perdido, à deriva em meio a tantas incertezas. 

Operários traz uma série de rostos (mais especificamente, 51) fatigados, perdidos, temendo pelo futuro, em frente a uma fábrica cuja chaminés expelem monóxido de carbono a toda força. São pessoas das mais diferentes etnias e nacionalidades. E digo isso porque a tela remete a um fenômeno que aconteceu em nossas terras nesse período. 

Em 1933 São Paulo vivia o boom da industrialização e muitos migrantes deram as caras por lá, desesperados à procura de emprego. Eram milhares de indivíduos sonhando ardentemente com dias melhores. Muitos viam naquela a última chance de um emprego digno, em meio a tantos desafios e a um país que, como o resto do mundo, lutava para se reerguer da crise que assolara o planeta e tirou a vida de tantas pessoas. 

Entre brancos, negros, pardos, asiáticos, indígenas e tantos outros, é possível identificar aquilo que o nosso povo tem de mais característico e, entretanto, muitos preferem negar ou varrer para debaixo do tapete. Falo da miscigenação. 

Os conservadores e arianos que habitam nossa terra há priscas eras vão mentir, fingir, xingar, fazer de tudo para ocultar esta informação, mas não adianta. Ainda somos - e provavelmente sempre seremos - um país de mestiços. De mulatos, morenos, mamelucos, cafuzos (alguém por aqui ainda lembra daquela aula na escola? Acho que eu tinha meus 12 anos quando ouvi falar da mistura entre brancos e negros, brancos e índios, negros e índios, etc etc etc). E qualquer habitante desta pátria que prefira pensar o contrário no fundo não passa de um tolo ou um ignorante.

Esqueçam por um breve momento a paleta de cores, a textura, o plano de fundo... Na verdade, mais do que um quadro, Operários é uma aula de história por si só. Mais ato político do que muitas manifestações que andam em voga hoje em dia. Fala de um passado que ainda está incrustado dentro de nós. A miséria, a luta de classes, a falta de oportunidades para uma grande parte da sociedade, a labuta diária dos que ainda sobrevivem em meio ao caos, está tudo ali, sem rodeios, desculpas esfarrapadas ou militância midiática. 

O quadro de Tarsila - ela própria, uma artista que sempre fez questão de mostrar as nuances do nosso povo, nossas distorções; que o diga Abaporu, sua tela mais famosa - deveria ser assunto das salas de aula quando a pandemia acabar, mesmo antes, nas aulas online. É um estudo de caso sobre a desigualdade que move esse país. E também o retrato vivo desse nosso povo múltiplo que adora se fingir de internacional e nega suas próprias raízes.  

Espero que um dia a sociedade cega e alienada acorde e veja o pais com os olhos de Tarsila: de forma mais lúcida e coerente. Enquanto isso não acontece, para quem quiser ver o quadro com os próprios olhos ele faz parte do acervo dos palácios do governo do estado de São Paulo, mais especificamente do Palácio Boa Vista, em Campos do Jordão. 

Procurem! Pois vale a pena tanto a referência como o fato da realidade do país não ter mudado tanto assim...   


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