É 23 de junho de 1921. 100 mil pessoas, homens e mulheres, populares como eu, você e todos os demais que leem este artigo, saem da Cinelândia em direção ao cemitério São João Batista, em Botafogo. Realizam um grande e emocionado cortejo em homenagem à Paulo Barreto, falecido aos 39 anos após um enfarte sofrido dentro de um téxi quando saía do trabalho. "Mas peraí", você me pergunta, "quem diabos é Paulo Barreto?". E eu me desculpo com os leitores na mesma hora. Trata-se do jornalista e escritor João do Rio, um dos maiores nomes da nossa literatura, tão maltratada nos últimos tempos.
Na última quarta-feira a cidade do Rio de Janeiro "celebrou" (as aspas são por conta da pandemia, que não nos permitiu homenagear o autor do jeito que ele realmente merecia) o centenário da morte de João do Rio. E quando eu assisti a matéria feita sobre ele no RJTV eu quase fui as lágrimas, pois sou um grande fã do autor. Lembro-me da primeira vez em que tive em minhas mãos um livro de sua autoria. Era o inteligentíssimo A alma encantadora das ruas. E o meu mundo parou diante de tanta genialidade e classe. "Que fenômeno!", eu disse para mim mesmo.
João do Rio era dessas figuras que quem é leitor de verdade não esquece jamais e quando pode o relê, para não perder o costume ou não esquecer de seu estilo inconfundível. Sempre antenado com tudo e todos, fuçando a lama da hipocrisia social onde quer que ela estivesse.
Negro, homossexual, vítima do racismo que nunca abandona este país covarde e tendencioso, João poderia perfeitamente - se vivo - ser mais um dentre tantos influenciadores digitais que andam tanto na moda atualmente (e acreditem: isso não é um clichê, mas uma constatação). Onde quer que a notícia estivesse, lá estava ele com seu bloco, caneta e faro apurado. Abandonou as redações para criar a reportagem de rua e a crônica carioca e com elas se manter mais próximo de onde os problemas e o povo estavam.
O Rio de Janeiro daquele período passava por fortes transformações sociais. Eram tempos de cortiços sendo demolidos, pobres sendo jogados na rua da amargura para que a classe privilegiada pudesse morar em seus casarões luxuosos. E ainda por cima tinha quem chamasse isso de revitalização ou reurbanização (Pois é... Brasil). E João, que de bobo não tinha nada, muito menos a cara, subiu morros, foi ao cais do porto conversar com estivadores, pediu o voto feminino e o direito das mulheres ao divórcio, falou com a classe menos favorecida cara a cara, conheceu seus problemas, deu voz a eles. E isso foi mais um motivo para ser perseguido. Cobriu a inauguração do Theatro Municipal e escreveu até sobre carnaval. No final das contas, é melhor até perguntar o que ele não fez em sua curta vida. Em uma palavra: múltiplo.
A mesma matéria do jornal que quase me faz chorar ao lembrar de tão magnífico escritor, também me deixa triste. Mostra a placa da rua com o seu nome, em Botafogo, sem uma descrição sequer de seus feitos. Apenas o nome Paulo Barreto. Ou seja: quem por ali passa não faz a menor ideia - ainda mais num país de não-leitores como o nosso - de quem ele seja. Vergonha!
João do Rio nos entregou obras memoráveis e atualíssimas que merecem ser redescobertas pelas novas gerações. Além de A alma encantadora das ruas, recomendo aos leitores desse texto os também ótimos Dentro da noite, Vida vertiginosa e As religiões do Rio. Neles, percebe-se claramente um homem de visão ímpar, que via as ruas como entes vivos, pensantes, capazes de tomar suas próprias decisões e não corroborava a ideia fanática dos tempos atuais que confundem fé com dogmas atrasados e preconceituosos.
Chegou à Academia Brasileira de Letras, vestiu seu fardão glorioso, mas quando procuramos sua história com afinco vemos com clareza e nitidez que ali não foi necessariamente o seu lugar. Teve de enfrentar muito conservadorismo e intriga para se impor com suas ideias por vezes reacionárias. Enfim: ele não era apenas mais um engravatado. Seu lugar era narrando a luta do povo e o cotidiano carioca.
Passado um século sem João do Rio, o que posso dizer de mais verdadeiro sobre ele é que era a alma encantadora do Rio de Janeiro e está fazendo muita falta no atual cenário literário, repleto de intelectuais metidos a besta, bobagens narrativas, livros de colorir, auto-ajuda e outras modinhas descartáveis que de tempos em tempos dão as caras nas prateleiras das megastores. Nunca foi tão difícil encontrar um bom autor contemporâneo. E pior: até encontrar grandes nomes do passado, como João, se tornou uma façanha. Culpa desse maldito politicamente correto que invadiu as ruas, as casas, as escolas, o país.
Ah João! Tem certeza que não dá pra você reencarnar, não? Volta, pelo amor de Deus! O Brasil está precisando (e muito) de gente como você. Mas tem que ser agora.
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