quinta-feira, 10 de junho de 2021

Vizinhança amarga


Tem quem chame os quadrinhos de arte marginal até hoje (e eu nunca vou conseguir entender de fato as pessoas que pensam o formato dessa forma, diminuindo-o). Will Eisner, mestre da arte sequencial, é o maior exemplo do quanto esse preconceito é injusto e equivocado. Criou um personagem - o detetive Spirit - que o tornou célebre para o resto da vida e obras monumentais que em nada deixam a desejar à grandes clássicos da literatura universal. Ele próprio, inclusive, adaptou para a nona arte muitos desses clássicos, chegando em alguns momentos a reinventá-los, como fez por exemplo com Oliver Twist no seu último grande álbum, Fagin, o judeu

Contudo, há um ponto na obra de Eisner que para mim é incontestável no que diz respeito à genialidade do artista. Digo mais: é praticamente uma pedra fundamental de todo o seu currículo. E ela se chama Avenida Dropsie. Sei que gosto não se discute e qualquer leitor que porventura venha a ler este mísero artigo tem o devido direito a escolher o seu próprio álbum favorito dentro de tão extraordinária obra. Porém, considero às vezes um perjúrio quem não consegue enxergar Avenida Dropsie como uma grande obra-prima de sua lavra. 

A graphic novel, que teve como referência direta a deterioração imobiliária e cultural do sul do Bronx no início da década de 1960, trata da ascensão e queda de uma comunidade norte-americana lá pelos idos de 1870 até quase o final do século XX. E há inclusive quem veja margem para defender a ideia de que a região era amaldiçoada desde a sua fundação, por conta das inúmeras e sucessivas tragédias ocorridas ali. 

Da eterna rivalidade entre Tim O'leary e Sean O'brien até a chegada dos primeiros imigrantes vindos para a América na época da primeira guerra mundial, Eisner delineia uma grande crônica cheia de requintes macabros e dolorosos, bem no estilo "a vida como ela é". Americanos, irlandeses, judeus, latinos, as mais diferentes etnias e nações disputando com unhas e dentes o seu território, apegando-se à vida como quem luta contra uma doença terminal. Assim é a vida nessa vizinhança amarga e cruel.  

Há uma fauna social das mais degradantes ditando o ritmo e a vida deste lugar: sindicatos, fundação de partidos visando às práticas mais inescrupulosas, corrupção, chantagem, prostituição, suicídios encomendados, pessoas metralhadas no meio da rua, oportunistas por todos os lados, o eterno apego cego às antigas tradições, casais de religiões divergentes que não podem ficar juntos, venda ilegal de bebida alcoólica, charlatães metidos a místicos e profetas, viciados em drogas, traficantes etc... 

E o resultado desta equação maléfica é o crescimento da barbárie e, por conseguinte, da desesperança. Logo, quem tem juízo mete o pé o quanto antes. E quem não pode por falta de recursos para tal se transforma em refém desse quase calabouço das almas. 

E como pano de fundo, de forma inteligente, Eisner insere elementos históricos que ajudam a explicar melhor o quanto ser norte-americano foi extremamente difícil em muitos momentos. A queda da bolsa de Nova York, que deixou o país numa profunda depressão; a segunda guerra mundial e o ataque à Pearl Harbor e a guerra do Vietnã com todas as mentiras que a Casa Branca criou para convencer jovens sonhadores a lutar pela pátria complementam todo o cenário de catástrofe e meio que antecipam o que aquela comunidade acabou se tornando com o tempo.

Do ponto de vista visual falar qualquer coisa aqui é como chover no molhado. Trata-se de um dos maiores gênios da história dos quadrinhos em todo mundo. O cara que inventou o conceito de graphic novel e se dizia, em entrevistas, um escritor que trabalhava com imagens. Precisa dizer mais alguma coisa? Ah precisa! Toda vez que eu leio Eisner - e essa é apenas a segunda vez que eu resenho um álbum dele por aqui - me dá uma extrema inveja. Sempre quis ser desenhista, mas nunca tive a menor aptidão ou talento para tal. E ver seus traços precisos, a grandiosidade com que compõe cenários, é magnífico. Ele consegue fazer tudo parecer tão fácil. Mas não é. E por isso tão poucos chegaram tão longe quanto ele!

À medida que vamos nos aproximando do final da história e entendemos que o desfecho será amargo, o autor acerta de novo mostrando que não importam as decisões que sejam tomadas por especuladores e políticos dispostos a revitalizar uma região, um bairro ou uma cidade, pois é o preconceito dos moradores que acaba com qualquer lugar. O verdadeiro problema é a falta de respeito da humanidade por quem é culturalmente diferente. Essa é que precisa ser a verdadeira transformação da vizinhança e não simplesmente reconstruções ou gentrificações (um termo, aliás, que anda muito na moda nos últimos tempos). 

Enfim... De certeza mesmo apenas uma. A de que eu preciso trazer mais do mestre Will Eisner para este espaço aqui. O mundo das artes visuais nunca precisou tanto de talentos como o dele quanto agora, em tempos de crise e negação. E olha que este fenômeno editorial que já tem mais de um quarto de século de vida é apenas o pilar de uma obra extremamente reflexiva, que precisa ser conhecida pelas novas (e alienadas) gerações o quanto antes.

P.S (na verdade duas dicas): já que eu mencionei que Eisner é o pai da graphic novel, quando tiverem tempo procurem também por Um contrato com Deus, que deu o pontapé inicial em toda essa jornada. E em 2005 o diretor Felipe Hirsch - responsável pelos longa-metragens de cinema Severina e Insolação - fez uma montagem teatral de Avenida Dropsie que foi muito elogiada pela crítica. Procurem. Vocês não vão se arrepender!


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